últimos artigos

A Maldição da Residência Hill e suas mulheres no sótão


The Madwoman in the Attic
é um livro escrito em 1979 por Sandra Gilbert e Susan Gubar. Nele, ambas analisam a literatura vitoriana sob a ótica feminina. O título, que mais tarde tornou-se alcunha oficial de um tropo, foi extraído do livro Jane Eyre, de Charlotte Brontë, no qual a ex-esposa de Rochester é literalmente mantida presa no sótão de sua casa ao ser intitulada como "louca", "histérica" e perigosa.

O livro em questão aborda autoras como Jane Austen, Charlotte e Emily Brontë, Emily Dickinson, Mary Shelley, entre outras. Nessa obra, vamos aprendendo o conceito da "louca no sótão". A proposta de Gilbert e Gubar é a de que as escritoras do século XIX estavam confinadas em sua escrita, no propósito de tornar suas personagens a personificação do anjo, ou monstro. Naquela época (e remanesce até os dias de hoje), os homens cometiam um hábito danoso: eles escreviam suas mulheres como angelicais ou demoníacas, rebeldes. Elas também apontam para a "ansiedade autoral" das escritoras, que não tinham exemplos de mulheres na literatura daquele século.

Gostaríamos de apontar, no momento, para a "louca no sótão" do mundo contemporâneo usando Nell e Olivia Crain como paralelos do tropo. Observem o trecho do livro a seguir:

"Imagens de enclausuramento e escape em fantasias na qual enlouquecidas dúplices funcionam como substitutos não sociáveis para suas identidades dóceis, e descrições obsessivas de doenças como anorexia, agorafobia e claustrofobia".

Seguindo a teoria, muitas escritoras sofriam de "esquizofrenia autoral", e suas personagens eram espelhos de experiências agonizantes vivenciadas em seu íntimo. Virginia Woolf é um exemplo disso, pois a todo tempo ela está projetando a si mesma em suas obras. As Brontë também possuem livros do tipo; muitos relatos corroboram que elas usavam de suas vidas e ansiedades nas produções. Emily Dickinson é outra escritora dessa linha; você pode observar isso até na série Dickinson, da Apple+. No caso de A Maldição da Residência Hill, obra baseada no livro de Shirley Jackson, A Assombração da Casa da Colina, isso é refletido na figura de Nell (Victoria Pedretti) e Olivia (Carla Gugino) — as duas projeções de Jackson na obra. Lembrando, aliás, que a análise é sobre a adaptação audiovisual feita por Mike Flanagan. Isso porque existem diferenças excruciantes entre o enredo do livro e o da série. Por enquanto, vamos nos manter na análise da série. 

Olivia Crain em A Maldição da Residência Hill

Nell é apresentada ao público como uma garotinha sensível, capaz de ver espíritos e andar no limiar dos entre mundos. Sua mãe, Olivia, detém a mesma sensibilidade. No entanto, em vez de tal recurso ser utilizado como acessório, ele se desvia para a claustrofobia e depressão que Shirley Jackson possuía. Um exemplo de uso acessório positivo é o de Theo Crain (Kate Siegel), que usa seus "dons" para finalidades práticas, mesmo existindo o sofrimento em sua vida devido a isso. Toda a família Crain sofre. Mas é em Olivia, e posteriormente Nell, que vamos encontrar "a mulher no sótão".

Ou melhor, as mulheres.

Pois ambas as personagens são um misto do que já foi definido como "esquizofrenia autoral". As duas detêm traços extraídos diretamente da vida pessoal de Jackson — uma mulher que sofria de depressão, ansiedade e agorafobia. Shirley Jackson vivia enclausurada, e essa jaula é a mesma onde colocam as personagens mencionadas na obra da Netflix. Vejamos: Nell, apesar dos pesares, consegue chegar na fase adulta com ajuda de psicoterapia, mesmo tendo visões constantes de uma mulher de pescoço quebrado. Tal figura feminina é um dos maiores terrores na vida dela, a responsável por seus pesadelos e ataques de pânico. Olivia, porém, encontra seu fim logo no início da série. Recursos de flashback são usados para demonstrar o declínio em sua saúde mental. Cada vez mais, a clausura, a claustrofobia, tornam-se elementos narrativos na matriarca dos Crain. Sua condição é tratada como "loucura", e sua obsessão pela casa aumenta exponencialmente conforme o passar dos episódios. O final de Olivia é o suicídio dentro da residência — onde todos que lá morrem, lá permanecem.

Crescida órfã e tratada com cuidados não muito gentis por sua família, Nell lida com a depressão desde jovem. Sua gaiola é a própria mente. Um lugar terrível, obscuro, onde uma figura de pescoço torto a aguarda. Quase ninguém acredita nela, apenas Theo parece inclinada a acreditar, pois, num mundo de céticos, é Theo a detentora do contato com o sobrenatural. Ainda assim, a vida segue. Nell casa, extremamente apaixonada por alguém que lhe é cúmplice e acalma suas paralisias do sono. Até o dia em que ela também o perde. Para a mulher do pescoço torto. Seu marido tem um problema cardiovascular e ela não consegue reagir ou se mexer pois sua "companheira de infância" está no quarto.

Nell Crain em A Maldição da Residência Hill

Ela perdeu tudo para a paralisia, é isso que percebe meses após a morte do marido, o retorno do episódio depressivo profundo, e o ter de lidar com os problemas do irmão gêmeo, Luke Crain. Também fruto do ambiente onde cresceu, Luke acaba afundado no vício das drogas, entrando e saindo de reabilitações como rotina. Dessa vez, ele diz que será a última, e pede ajuda para Nell comprar sua demanda de narcóticos.

Ela percebe, ao se despedir dele, que está recebendo um chamado de volta ao casulo. É o período da escuridão em sua jornada, ela está, como diria Maureen Murdock em The Heroine's Journey, e Joseph Campbell na do herói, adentrando a "barriga da baleia". Mas o que isso significa? Isso implica que ela está passando por seu momento de maior crise. O comum, nas jornadas por aí, é que este seja o momento de atravessar o problema.

Porém, Nell acaba cedendo ao caminho do noturno. Gilbert Durand, estudioso da antropologia do imaginário, descreve o noturno como uma paralisia. A compreensão do fim do ciclo, aceitação da morte, quietude. Não há batalha entre a luz e as trevas. Existe apenas o repouso.

E a jovem Crain nunca sai da sua "barriga", lá ela permanece, e retorna para a crisálida: a própria Mansão Hill, onde sua mãe morreu. Vale ressaltar que, antes de tudo isso, ela tentou sobreviver. Tentou entrar em contato com seus irmãos e foi ignorada de forma sistêmica por todos eles.

Nell retorna para o "ventre" porque é lá que muitas pessoas em situação de tormenta na mente acabam voltando. A crisálida é quentinha, segura, paralisada. Lá você não se sente melhor, mas também não precisa encarar o mundo e tornar tudo pior. Perceba que a barriga, crisálida e ventre sugerem lugares de repouso. Nell está pronta para repousar, e ninguém ao seu redor consegue perceber a gravidade da situação. A depressão consome, ela se alimenta do indivíduo de dentro para fora, testa seus limites. E, sem um sistema de apoio, fica muito mais difícil sair do ciclo. É a ausência dos irmãos que faz Nell cair em um novo episódio, retornando para a casa onde tudo começou.


Ela ainda está presa, ela ainda está no ventre — pois é sua mãe quem a chama. Sua mãe, tão parecida em tantos aspectos. Lá, ela vê pinturas na parede que sempre estiveram ali, "bem-vinda de volta, Nell". E assim ela se sente. Desligando-se da realidade mortal e abraçando a noite. Aceitando a morte. A claustrofobia. A "esquizofrenia autoral" de Jackson, que tanto gostava de estar entre paredes conhecidas.

Sua agorafobia foi algo que marcou cada página dos seus livros, e é crucial para o desfecho de Nell Crain, que sente-se melhor entre papeis de parede antigos do que na companhia dos irmãos assim que vê a mãe. É Olivia quem a leva para a compreensão que sempre foi ela mesma impedindo seus avanços: Nell é a mulher do pescoço torto. Ao pular com uma corda no pescoço do alto de uma escadaria, Nell percebe que sempre foi ela.

E agora ela está morta. Presa na mansão que escolheu como seu sótão. Para ser esquecida e enclausurada; ao menos, em sua mente. Mas não para o restante da família, que apenas resolve suas diferenças com a morte dela. Chamar de sacrifício seria mentira, ou exagero, pois ela foi chamada e correspondeu ao chamado. Lá dentro, seu espírito sempre permanecerá. Ao lado da mãe. Duas mulheres poderiam ter permanecido vivas caso uma releitura fosse feita. Uma onde a saúde mental feminina fosse levada a sério; mas, para os fins angustiantes do próprio livro e pela assinatura de sua autora, elas deixam este mundo, um lugar onde sentiam-se atordoadas, asfixiadas, perseguidas, desconfortáveis.

Tal recurso narrativo, apesar de refletir um período da literatura, não deve ser levado como um exemplo a ser seguido. Perdemos muitas Nell diariamente para o suicídio. Para o estereótipo da mulher histérica. Não precisamos disso para saber que a saúde mental é tão importante quanto qualquer outro aspecto do seu organismo. Talvez ainda mais. Precisamos de gaiolas soltas, abrir o sótão. Libertar nossas mulheres para a vida. Para que, da crisálida, nasça uma borboleta, e ela não desapareça, eternamente presa em sua própria mente.




Arte em destaque: Mia Sodré 
Nathália Morais
Pernambucana com o sertão nas veias. Apaixonada por fantasia, true crime e escrever mundos.

Comentários

  1. Que texto maravilhoso! As duas temporadas das mansões me trouxeram muitas reflexões desse tipo, principalmente por me identificar muito. Obrigada por trazer esse paralelo e todas as referências.

    ResponderExcluir

Formulário para página de Contato (não remover)