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Sempre Vivemos no Castelo: a loucura feminina em Shirley Jackson

Ler Shirley Jackson durante a quarentena é uma experiência. Este ano, li tudo dela que possui tradução no Brasil, o que foi algo único e propício para o momento que estamos vivendo. Não sair de casa há meses, ser obrigada a lidar com minha ansiedade e ter a sensação de que não há para onde correr é basicamente um resumo de muito da ficção da autora. Porém dentre tudo que li dela até agora, é Sempre Vivemos no Castelo que mais conversou comigo nesse sentido. 

O livro é estranho e é nessa atmosfera de estranheza que adentramos no universo de Merricat, uma adolescente que vive com sua irmã, Constance, e seu tio, Julian, num casarão antigo e meio abandonado. A estética do abandono se faz presente em cada linha escrita por Shirley Jackson: o da propriedade, que está repleta de vegetação sem poda e objetos estranhos espalhados; da família, que se desfaz aos poucos; e da sanidade mental, que é praticamente inexistente dentro daquela casa. 

Sempre Vivemos no Castelo já inicia com uma frase impactante: “Meu nome é Mary Katherine Blackwood. Tenho dezoito anos e moro com a minha irmã Constance. […] Todo o resto da minha família morreu”. Mary Katherine, mais conhecida como Merricat, é a nossa guia no universo da família Blackwood, numa cidadezinha onde ela, a irmã e o tio são tratados como criminosos e párias. Merricat é a única pessoa que sai de casa para fazer as compras - momento em que aproveita para passar na biblioteca e abastecer seu estoque de livros. Constance não possui amparo emocional para lidar com as pessoas e o tio Julian tem sequelas da fatídica noite em que os pais e o resto da família Blackwood morreu. 

Quando Charles, primo de Merricat e de Constance, chega até a casa delas e instala-se como se fosse dono do local, a trama começa a desenrolar-se. A crueldade por trás dos silêncios e rituais de Merricat se faz presente, assim como a fobia de Constance. O que temos dali em diante é uma tela sobre saúde mental que nos leva a questionar quem é a vítima de quem. 

Este texto possui spoilers! 

Embora não seja considerado um livro propriamente assustador, existe algo de inquietante em Sempre Vivemos no Castelo. De início, já sabemos que a família de Merricat morreu e ela vive apenas com sua irmã e seu tio.  Logo ficamos sabendo da hostilidade do pessoal da cidade, que faz tudo para que a menina sinta-se indesejada. A saída semanal torna-se uma corrida de obstáculos na cabeça da protagonista, que trava diversos desafios consigo mesma para que o mundo continue intacto na frágil harmonia que lhe permite existir. Se pisar em determinado local, tudo ficará bem. Se pendurar objeto x na grande árvore da casa, as coisas permanecerão tranquilas. Esses pensamentos intrusivos são grande parte da base narrativa que nos conduz ao labirinto de confusão, medo e assassinato da família Blackwood. 

O leitor é levado a tentar entender Merricat. Por que ninguém gosta dela? O que aconteceu com sua família? Por que as pessoas da cidade são tão más? Demora muito tempo para que obtenhamos tais respostas, e elas são chocantes. Ao invés de uma vítima passiva, Merricat é uma assassina cruel. É provável que sua saúde mental tenha tido grande parte no assassinato de sua família? Certamente. Mas isso não modifica o fato de que ela não apenas os matou como deixou a irmã levar a culpa e anseia por ver toda a cidade morta para que seu mundo resuma-se apenas a Constance e a seus pequenos rituais diários. 

“Queria que todos vocês estivessem mortos, pensei. E tive a ânsia de dizer em voz alta.”

É amplamente sabido que Shirley Jackson sofria de ansiedade e ela mesma era reclusa e socialmente à parte do mundo. Em seu diário, há diversas entradas que falam sobre essa experiência de exclusão - e sobre como suas histórias acabam sempre refletindo sua própria ansiedade e ânsia por se ver segura, livre. 

Ainda que possamos concordar que Merricat e Constance possuíam alguma questão psicológica que as levava a agir daquela maneira, é injusto e até mesmo misógino afirmar que elas eram loucas. Uma mulher é louca por querer se isolar de um mundo construído por homens que a desprezam? Quem é mais louco: aquele que insiste em ser aceito numa sociedade violenta e que não possui respeito algum por mulheres ou quem decide livrar-se das amarras e viver só? 

No entanto, como estamos falando de uma obra de Shirley Jackson, esse "livrar-se das amarras" consiste em desbancar o poder patriarcal ao romper com aqueles que davam as ordens e controlavam a família. O pai, o irmão mais novo (único herdeiro de tudo, ainda que as meninas fossem mais velhas), a mãe, que compartilha características do pai, a tia e o tio, que não morreu, mas foi atingido pelo veneno - todos eliminados, de uma forma ou de outra, do comando da casa e das vidas delas. 

Merricat não poderia ter agido sozinha. Foi Constance quem comprou o arsênico. Ela também foi quem observou a todos caírem mortos, um a um, e lavou o açucareiro antes de ligar para a polícia por ajuda. Constance pode não tê-los assassinado, mas era cúmplice de Merricat. E quem as pode julgar? A violência por que passaram para tomarem tal atitude não está explícita no livro, que é contado pelo ponto de vista quase infantil de Merricat, mas há detalhes em lembranças e diálogos que nos mostram o quão cruel era a atmosfera da mansão Blackwood quando os homens lá comandavam. 

Gosto do final do livro, embora não haja redenção para as irmãs Blackwood - mas talvez justamente por isso ele seja tão bonito. É perturbador e desolador pensar nas duas ali, sozinhas, trancadas em casa, vivendo do que é plantado no jardim e do que os vizinhos - por medo ou pena - levam para elas, deixando pratos e assados na porta da casa e afastando-se para que elas os peguem. 

Existe uma verdade nas palavras de Shirley Jackson, que gritam crises de ansiedade, transtornos psicológicos e uma incompreensão social profunda. Seus personagens, em especial os de Sempre Vivemos no Castelo, podem ser difíceis de gostar, mas são verdadeiramente humanos. 

"Sem olhar, eu conseguia ver os sorrisos e os gestos; queria que estivessem todos mortos e eu andasse sobre seus corpos."


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Referências 

  • The Establishment and Preservation of Female Power in Shirley Jackson's "We Have Always Lived in the Castle" (Lynette Carpenter)


Texto e imagem de destaque: Mia Sodré
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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