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O pacto satânico de Doutor Fausto

A história do homem que vende sua alma ao Diabo é bastante pertinente em nossa cultura ocidental, com suas versões para televisão, teatro, músicas, filmes, livros... Não nos faltam adaptações, sejam elas modernas ou fidedignas à obra de Christopher Marlowe, Goethe ou mesmo Thomas Mann – uma sempre influenciada pela anterior. 

Neste artigo, daremos enfoque à peça A trágica história de Doutor Fausto, escrita por Marlowe entre os anos de 1589 e 1592, e publicada em 1604. Recapitulando esta narrativa secular, nos deparamos com alguns personagens canônicos: o próprio Doutor Fausto, Wagner, seu ajudante, Mefistófeles, um demônio, e Lúcifer. Fausto faz um pacto com o anjo caído, trocando sua alma por conhecimento infinito e 24 anos de serviços de Mefistófeles. 

Um pecador medieval, um curioso renascentista

A busca por conhecimento é um dos principais temas de análise de Doctor Faustus. Podemos englobar essa característica dentro de seu mundo de produção, ou seja, definir Fausto enquanto um homem que almeja o conhecimento científico e até mesmo metafísico do que o cerca, tal qual os processos de avanços metodológicos e científicos vivenciados pelo seu autor em um período de efervescência renascentista. Como bem pontua R. M. Dawkins, Fausto teve de pagar o preço medieval de ser um homem renascentista. Isso provoca, portanto, nossa indagação: estaria Fausto preso entre estes dois mundos? A resposta é positiva. Ao longo da obra, notamos aspectos intrinsecamente medievais e renascentistas no que tange o caráter e as ações das personagens. 

A ambição de Fausto por si só é uma razão pela qual, por padrões medievais, o tornaria um pecador, visto que, na mitologia cristã, o próprio Lúcifer caiu dos céus devido ao seu orgulho e ambição perpetuadas contra Deus:

“Seu coração tornou-se orgulhoso
por causa da sua beleza,
e você corrompeu a sua sabedoria
por causa do seu esplendor.
Por isso eu o atirei à terra;
fiz de você um espetáculo
para os reis. Por meio dos seus muitos pecados
e do seu comércio desonesto
você profanou os seus santuários.
Por isso fiz sair de você um fogo,
que o consumiu,
e reduzi você a cinzas no chão,
à vista de todos
os que estavam observando.” 

(Passagem sobre a queda de Lúcifer em Ezequiel 28:17-18)

Sua contínua necessidade por mais conhecimento do que o que estava disposto ao alcance humano e sua determinação em buscá-lo, mesmo que não lhe fosse permitido, nos mostra essa característica. Ele almejava ir além da capacidade do homem comum, e foi através de seu pacto com Lúcifer, através de sua procura por poderes sobrenaturais, que Fausto indubitavelmente questionou os planos divinos para com a humanidade.

Frontispício de uma edição póstuma de Doutor Fausto (1620)

A primeira cena da peça nos dá essa visão: quando, se questionando sobre qual deveria ser sua próxima área de estudos, entre lógica e raciocínio, medicina e direito, Fausto escolhe a metafísica dos mágicos e a necromancia: 

“These metaphysics of magicians/ and necromantic books are heavenly! / Lines, circles, schemes, letters, and characters!/ Ay, these are those that Faustus most desires./ O what a world of profit and delight,/ Of power, of honor, of omnipotence/ Is promised to the studious artisan.”

Aqui, Fausto deliberadamente afirma e determina que irá seguir seu grande desejo de se tornar uma pessoa extraordinária. 

O mundo renascentista, por outro lado, estimulava essa sua busca por conhecimento, oriundo do “resgate” da Antiguidade Clássica greco-romana, pejorativamente considerada perdida nos anos anteriores. Neste período, temos uma ruptura significativa com o mundo cristão, uma vez que o humanismo e os estudos científicos apontam para a centralidade no homem. 

Podemos, desse modo, analisar a dualidade que Marlowe incita em sua peça: localizada em um período histórico transicional, o autor escreve sobre a ruptura com o mundo medieval e a necessidade de transcender o vulgar. Fausto objetiva o considerado “conhecimento proibido” para os medievais, o mesmo conhecimento cuja busca é encorajada pelos renascentistas. E, embora ele siga os renascentistas e trate de obter aquilo que deseja, ele também sofre as consequências divinas por suas ações, da forma como os medievais previram. 

A última cena nos mostra um Fausto arrependido: 

“On God, whom Faustus hath abjured? On God, whom/ Faustus hath blasphemed? Ah, my God - I would weep, but the devil draws in my tears [...]”

Ele admite sua condenação e se mostra verdadeiramente arrependido por suas ações: 

“[...] for the vain pleasure of four-and-twenty years hath Faustus lost eternal joy and felicity.”

Antes de sua última redenção, no entanto, Fausto aproveita ao máximo a vida que ele próprio escolheu para si. Ele gozou de seu pacto com o Diabo, utilizando-o para obter o conhecimento mais distinto de vários assuntos importantes em seu tempo, mostrando a latente natureza humanista e moderna de seu ser. 

A transformação de Lúcifer em Satã, por Gustave Doré (1866)

Você renuncia a Satanás? Eu renuncio. 

A imagem de “Satanás” está intrinsecamente enraizada no nosso imaginário popular, seja por bem ou por mal. Sua existência interfere na conduta cultural humana, e, em uma perspectiva histórica e antropológica, seu mito, oriundo do mito cristão, já foi mui utilizado em representações culturais ocidentais. Diversos significados foram-lhe atribuídos com o passar do tempo – remetendo-se desde a figuras próprias do paganismo, como o deus Pã, até a figuras femininas. Na peça em questão, Satanás, Lúcifer, o Diabo, o demônio, representa a explicação do mundo real por meio de suas origens sagradas.

O pacto satânico (ou faustiano) trabalha, portanto, com a dramatização, a dúvida, o desafio à ordem divina imposta pela relação com “o inimigo”, o questionamento sobre os fundamentos da Igreja. Através de seu pacto, Fausto propõe-se a transpor o limite da morte, livrando-se do que a teologia prega sobre o pecado ser o preço da morte, afirma Maria Monteiro: “Se, por um lado, os humanistas, para salvar a magia, não viam o Fausto histórico como possuidor de qualquer poder, os luteranos criam que o poder que detinha era devido ao pacto que fizera com o diabo, donde o terrível desenlace do drama”

Ainda segundo Monteiro, na obra de Marlowe, Satã é o ser que fascina, e o pacto faz parte de uma celebração do próprio ser. Desse modo, mesmo que durante toda a peça Fausto tenha inúmeras chances de se redimir; ainda que o anjo bom tenha tentado inúmeras vezes fazer com que o doutor se arrependesse de suas ações e procurasse o perdão do senhor Deus; ainda que tenha questionado, por vezes, se o que fazia era realmente certo, Fausto se redime apenas no ato final de sua vida. Quando em sua sala abre-se um buraco no chão e os demônios puxam-no para o inferno, aí Fausto verdadeiramente clama pelo perdão e salvação divinos – porém, seu arrependimento vem tarde demais, e ele já estava há muito condenado a sofrer a agonia eterna. 

Por vezes, o livre-arbítrio é posto em questão na peça, devido às suas fundamentações arraigadas no Protestantismo luterano ao qual o autor se posicionava. No entanto, fica clara a concepção de que Fausto, enquanto herói trágico, constrói seu próprio caminho rumo à perdição. Ao contrário de outros personagens pares, como Othello, que tem seus defeitos estimulados por um agente exterior (Iago), Fausto busca ele próprio a tentação que vai definir seu desvio, cego por sua ambição, sem conseguir distinguir, portanto, o certo do errado naquele contexto de deveres divinos de um ser cristão. 

Portanto, Lúcifer representa a “possibilidade de evitar a postergação do prazer”, afirma Monteiro. Não estando disposto a sujeitar-se à espera da felicidade eterna em um âmbito post mortem, o Doutor nega os planos de Deus para com sua realidade. O pacto se mostra virtuoso quando lhe concede suas vontades de imediato. 

Em uma perspectiva de estilos literários, a invocação dos demônios dialoga com o gótico: “a forma como a necromancia é representada na contemporaneidade, assim como na Inglaterra renascentista, está conectada a uma escolha do ser humano por um conhecimento humanamente inacessível”, afirma Fábio Ramos Paz.

“Sint mihi dei Acherontis propitii! Valeat numen triplex Jehovae! Ignei, aerii, aquatic, terreni spiritus salvate! Orientis princeps, Belzebub inferni ardentis monarca, et Demogorgon, propitiamus vos ut appareat et surgat Mephastophilis. Quid tu moraris? Per Jehovam, Gehennam, et consecratam aquam quam nunc spargo, signumque crucis quod nunc facio, et per vota nostra, ipse nunc surgat nobis dicatus Mephastophilis.”

“Que os deuses de Acheron tenham piedade de mim! Salve o triplo deus Jeová! Salve os espíritos ígneos, aéreos, aquáticos e terrestres! Príncipe do Oriente, Belzebu, monarca do inferno ardente, e Demogorgon, deixe-nos propiciar-lhe para que Mefistófeles possa aparecer e subir. O que você está esperando? Por Jeová, Gehenna, e pela água consagrada que agora estou aspergindo, e pelo sinal da cruz que agora estou fazendo, e por meio de nossas orações, que ele mesmo se levante agora, dedicado a nós, Mefistófeles.”

Para além de Lúcifer e Mefistófeles, outros demônios também aparecem na peça, como os Sete Pecados Mortais e o Anjo Bom e o Anjo Mau. Estes últimos representam “a confusão mental vivenciada por Fausto perante suas práticas para o alcance do conhecimento desejado”, afirma Paz. Isto mostra que, para o homem moderno, as ideias de “certo” e “errado” sempre estiveram postas, bem como o peso do pecado e do arrependimento. 

“O arrependimento de Fausto é completamente catastrófico e o leva ao pior castigo imaginado pela sociedade cristã (a condenação ao inferno), sendo algo que, por estar inserido em um contexto trágico, não seria passivo de mudança em direção à boa fortuna.”

(Fábio Ramos Paz)

Doctor Faustus Frankenstein

Apesar de se tratar de obras distintas, escritas em períodos distintos, com estilos e propósitos distintos, podemos conectar Doutor Fausto e o (quase) Doutor Victor Frankenstein através de suas semelhanças. Afinal, ambos os protagonistas têm sua trajetória alterada de forma drástica e dramática devido à incessante busca por aprendizado. 

A revolução científica iniciada no século XVI, cujo ápice se deu entre os séculos XVIII e XIX, desenvolveu a priorização dos estudos tangentes ao ser humano, fossem tanto medicinais quanto metafísicos. Enquanto Fausto busca por seus saberes infinitos através da necromancia, Frankenstein busca a aquisição de conhecimento através da filosofia natural. Ambos almejam o proibido, o quase inalcançável, e ambos sofrem as consequências da ambição intelectual. 

Frontispício de Frankenstein, por Theodor Von Holst (1831)

Fausto, ao obter os favores de Mefistófeles, tem poderes que se equiparam ao que outrora pertencia unicamente a um só ser: Deus. Ele vira uma espécie de ser todo-poderoso, quase que um “semideus”, podendo conjurar o fantasma de Helena de Troia, ou fazer aparecer em sua frente objetos de países distantes. Seu poder de manipulação da natureza ao seu redor faz com que ele perca o próprio controle. 

Frankenstein, por outro lado, brinca com a ideia de ser Deus: seguindo os ideais científicos consequenciais da Revolução Industrial, não há, em sua época, espaço para alquimia e magia. Os experimentos se elevam ao patamar do cientificismo. A necromancia de Fausto se transfigura, na história de Mary Shelley, na química e na anatomia. 

“Não me dei por satisfeito com os estudos de anatomia que realizei. Cumpria, também, analisar os processos de deterioração e a corrupção natural do corpo humano.”

(Frankenstein, de Mary Shelley)

A partir disso, sabemos o desenrolar da história: o médico cria uma criatura a partir de partes de diversos corpos humanos, e dá vida a ela. A criatura, em determinado momento, busca vingar-se de seu criador. Inicialmente, Victor acredita que sua criação é um êxtase para a comunidade científica. Mais do que isso, o Doutor cumpre sua ambição enquanto estudioso, e enche-se de orgulho e egoísmo ao ver a criatura ganhando vida – imagine só, extrair vida a partir de matéria morta! No entanto, instantaneamente lhe ocorre que talvez isso tenha sido um erro, um pecado dos mais profundos, e se arrepende do seu feito. 

Mais uma vez, ambos desconsideram as consequências práticas de suas ações até o momento em que percebem que não há como voltar atrás. A analogia a Ícaro utilizada no início da peça Doutor Fausto pode ser equiparada com a utilização de “Prometeu moderno” no subtítulo da obra de Shelley. Ambos os autores utilizam-se de referências à mitologia grega para agregar no desenvolvimento de seus personagens. 

Referências

  • The Tragic History of Doctor Faustus (Christopher Marlowe)
  • Representações renascentistas e góticas na tragédia moderna: uma análise de A história trágica do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe (Fábio Ramos Paz e André Luis Gomes)
  • “Pursuit of knowledge”: a study of Christopher Marlowe’s Doctor Faustus and Mary Shelley’s Frankenstein (Pallavi Banerjee)
  • O pacto faustiano e o Satã inumano (Maria Conceição Monteiro)



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Ana Júlia Neves
Pernambucana nascida em 2003, amante dos clássicos da literatura, de todas as vertentes do rock e do cinema como um todo – pura cultura pop. Estudante de História pela Federal da Paraíba, vivendo sua fase "Rory Gilmore em Yale". Obcecada por um artista diferente a cada semana.

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