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Road movies para encontrar o amor


Segundo Sócrates, há quatro tipos de loucura: a profética, utilizada pelos deuses para se comunicar com os homens; a ritual, na qual o louco é conduzido ao êxtase ritualístico; a poética, inspirada pelas musas; e por fim, a loucura amorosa, produzida por Afrodite. Considerando o amor como uma espécie de loucura, em que o louco, em linhas gerais, seria aquele que é capaz de cometer atos estrambólicos de imensa coragem ou crueldade, é fácil verificar por que esse sentimento move montanhas.

Afrodite não é apenas a formosa deusa grega do Amor e responsável pela loucura amorosa, mas também é mãe de Eros, o deus do erotismo, cujo pai Ares é o deus da Guerra. Em uma mesma figura, encontramos as essências do amor e do ódio, da tranquilidade e do agito misturadas a uma figura angelical e infantil que imprudentemente carrega um arco e flecha. Como se não bastasse, Eros apaixona-se por Psique, a personificação da alma, completando o elo entre a capacidade de amar e a característica humana.

A história desse casal, aliás, é digna de destaque. Com inveja da beleza de Psique, Afrodite ordenou a seu filho, Eros, que atingisse a garota com uma de suas flechas de maneira que a fizesse se apaixonar por uma criatura monstruosa. Ao colocar os olhos em Psique, Eros apaixonou-se por ela e não obedeceu às ordens da mãe. O pai de Psique, por sua vez, ao saber do destino pretendido à filha por Afrodite, decidiu isolá-la no alto dum monte para sempre. Foi então que durante o sono, Zéfiro, o vento, conduziu a jovem até um magnífico palácio nas nuvens em que Psique experimentou todos os luxos e prazeres disponíveis aos humanos, inclusive o amor. Eros tornou-se seu amante, mas sem revelar sua identidade, já que isso implicaria em admitir que não cumpria as ordens da mãe. Psique não via o rosto de seu amado e prometeu jamais tentar descobri-lo, mas a curiosidade uma noite a dominou. Enquanto ele dormia na cama ao seu lado, com uma vela em mãos, retirou o véu que cobria seu rosto e soube quem era seu amante. No susto, derramou a cera no ombro de Eros o machucando e, por consequência, ferindo o amor. Após esse ato de desconfiança, Psique perdeu seu amado e seu castelo e partiu em uma busca extenuante e incessante por recuperá-lo. Após atravessar todo tipo de sofrimento, Psique reencontra o amor perdido e torna-se uma deusa.

A história de Eros e Psique demonstra que o amor é um campo de batalha em uma constante busca pela satisfação e realização de si. A loucura do amor é transgressora, desafia os oponentes, guia os apaixonados por caminhos inconsequentes e alimenta a inveja de quem não o possui. Como um tiro no escuro, amar é por si só um ato de confiança no futuro e na correspondência do sentimento, é se doar sem garantias.

Nesta lista, recomendo quatro road movies (filmes que se passam na estrada) noventistas protagonizados por casais embebidos na loucura da paixão que, assim como Eros e Psique, só queriam amar. A única máxima, na lista e na vida real, é que o amor acompanha a história da humanidade inspirando os mais sublimes atos de insanidade e devoção.

Amor à queima-roupa (1993)


Amor à queima-roupa é um filme de 1993 com roteiro de Quentin Tarantino e direção de Tony Scott. O filme conta a história do casal Clarence (Christian Slater), um garoto comum louco por Elvis Presley e aficionado em quadrinhos, e Alabama (Patricia Arquette), uma prostituta envolvida com Drexl Spivey (Gary Oldman), um cafetão intragável. Clarence e Alabama se apaixonam e, para livrar a amada das garras de Drexl, Clarence o mata e rouba uma mala cheia de cocaína. A partir de então, acompanhamos o casal em fuga da polícia e o verdadeiro dono da droga. Aqui, e em todos os filmes da lista, a paixão se apresenta como o ímpeto e a emoção que tira os protagonistas do marasmo.

A ideia para o filme surgiu em 1985, quando Tarantino e Roger Avary trabalhavam juntos em uma videolocadora. Avary escreveu um roteiro intitulado The open road que contava a história de Clarence e Alabama. Na história, a personagem de Clarence escreve um roteiro sobre o casal de assassinos Mickey e Mallory. Tarantino separou as duas partes criando o roteiro de Amor à queima-roupa e Assassinos por natureza (1994), ambos transformados em filme. Com a venda do roteiro de Amor à queima-roupa, Tarantino angariou os fundos para produzir seu primeiro filme como diretor, Cães de aluguel (1992).

Assassinos por natureza (1994)


Como mencionado, Assassinos por natureza é uma história derivada da mesma fonte de Amor à queima-roupa, escrito inicialmente por Tarantino e dirigido por Oliver Stone. Stone aproveitou a história, mas fez suas próprias alterações, tanto que o roteiro final não é atribuído a Tarantino e sim ao próprio Stone, Richard Rutowski e David Veloz. O filme acompanha Mickey (Woody Harrelson) e Mallory (Juliette Lewis), um casal de assassinos em série que atravessa os Estados Unidos em um carro cometendo diversos crimes. Ambos os protagonistas, mas sobretudo Mallory, tiveram infâncias problemáticas e sofreram diversos abusos na esfera familiar, portanto, identificam o amor como algo violento e doentio, e assim se relacionam com o mundo e entre si.

Além da relação romântica do casal, explora-se também o frutífero matrimônio entre mídia e violência, já que a televisão e outros meios cobrem de maneira sensacionalista os assassinatos cometidos por ambos, contribuindo para transformá-los em celebridades. Nesse quesito, o filme é muito bem-sucedido já que, como espectadores, também criamos um certo fascínio pelo casal, mesmo sabendo das atrocidades que cometem. A montagem frenética e as cenas de violência extrema são abundantes e exigem estômago forte para digerir, extrapolando a loucura e o desarranjo do amor.

É evidente que uma relação romântica como a de Mickey e Mallory é totalmente destrutiva, mas a metáfora amorosa vai além: a união bem-sucedida de um casal é aquela que permanece. Nesse caso, violência e mídia estão juntas há décadas.

Por uma vida menos ordinária (1997)


Por uma vida menos ordinária é um filme de 1997, dirigido por Danny Boyle, que conta a história de Robert (Ewan McGregor) e Celine (Cameron Diaz). A história tem início quando os anjos O'Reilly (Holly Hunter) e Jackson (Delroy Lindo) são encarregados de providenciar que um casal da Terra se apaixone e permaneça juntos, sob a pena de serem expulsos do céu caso não cumpram a tarefa. A oportunidade de realizar o trabalho surge quando Robert, em meio a um ato desesperado e impensado, sequestra Celine, a filha de seu ex-patrão milionário.

Embora o sequestro seja um ato terrível, Robert não pretende machucar Celine, que, por sua vez, acaba se unindo a ele e planejam juntos pedir um resgate. No desenrolar da história, os anjos aprontam diversas tramoias para garantir que os dois se apaixonem. Depois de tentativas frustradas de se esconder e sentindo os primeiros sinais da paixão, o casal precisa fugir estrada afora, assaltam um banco e trocam tiros com a polícia.

O filme não é uma obra de arte e peca em diversos aspectos. O roteiro é confuso, a história parece sem coesão em muitos momentos e às vezes chega a ser chata. A presença dos anjos é desnecessária e apenas confunde o espectador. Entretanto, é exatamente isso que faz a história legal e fofa, já que o exagero e a falta de coerência são elementos indispensáveis a uma boa história de amor.

Coração selvagem (1990)


Coração selvagem é um filme de 1990, dirigido e roteirizado por David Lynch, e narra a história de Sailor (Nicolas Cage) e Lula (Laura Dern), um jovem casal da Carolina do Norte. A mãe de Lula desaprova o relacionamento e contrata capangas para matar Sailor, motivando o casal a fugir pelas estradas estadunidenses. Como Mallory, Lula tem traumas da infância relacionados ao convívio familiar e os braços de seu amado parecem ser seu único consolo, além de uma prazeroso subterfúgio.

Como de costume na direção de Lynch, o filme parece um clipe psicodélico e os elementos apresentados nos fazem questionar se atravessamos a barreira da twilight zone. O sonho e a fantasia se materializam nessa produção e demonstram que para vivências trágicas o único alento é o amor.



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Victória Haydée
Sul-mato-grossense, cientista social por formação e escritora por vocação. Vampira oitentista fã de new wave.

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