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Os sonhos perturbadores de David Lynch


David Lynch
espia o mundo por trás de cortinas vermelhas e fumaça de cigarros. E é puramente essa visão sobre o mundo que ele procura, obra após obra, entregar para nós. Suas obras são também reflexos, mas mais do que isso: no mundo confuso e nítido dos sonhos, a nossa existência é um enigma. E esse mistério é terrível, de todas as maneiras possíveis.

O “terrível” está nos extremos. Não significa somente algo muito ruim, mas algo muito bom também. É, simplesmente, aquilo que é extraordinário. E não há nenhum adjetivo que melhor defina os conflitos e personagens de David Lynch: todos terrivelmente bons, terrivelmente maus e terrivelmente humanos. É assim que nos tocam, pois é tudo “demais” para ignorarmos.

Há uma maneira tão pessoal de fazer cinema em Lynch que suas obras poderiam constituir um gênero próprio. Algumas características comuns entre elas podem ser ressaltadas: personagens que relatam um sonho, elementos místicos ou surreais, jogo de cores entre azul e vermelho, uso frequente e exemplar da edição de som. Mas um elemento central de seu estilo narrativo – considerando, é claro, que David Lynch é também roteirista e produtor, além de diretor – é que há uma certa quebra do encantamento, quando uma atmosfera que beira o psicodélico toma conta das cenas e a verdade sobre o aspecto pacífico da história se revela.

A começar por Eraserhead, filme de 1977, que contém muito do chamado surrealismo. A história apresenta um homem que se vê na tarefa de cuidar de seu filho, um ser que não parece humano. A estética do filme remete muito a, por exemplo, o O Gabinete do Doutor Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari), não apenas por ser em preto e branco, mas pelos cenários, as atuações e o estranhamento. O estranhamento nos filmes é algo que Lynch aprimora exponencialmente e é parte inseparável de sua obra.

Portanto, Eraserhead é o início de uma longa trajetória de evolução cinematográfica. Para compreendê-la, falaremos de algumas obras mais significativas em relação ao medo, e como esse sentimento é trabalhado pelo diretor. As obras são Eraserhead, O Homem Elefante, Veludo Azul, Twin Peaks, Estrada Perdida e Mulholland Drive. Elas consagraram o nome de Lynch, elevando-o ao patamar a que hoje é associado, de diretor clássico do terror e drama.

David Lynch

Um mundo em preto e branco


Nem todas as obras de David Lynch foram aclamadas em sua estreia. Alguns filmes, como Duna e Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer, foram duramente criticados. No livro Espaço para sonhar (biografia escrita por Lynch e Kristine McKenna), ele fala sobre a experiência de fazer seus filmes. Acerca deles, ele diz que com Duna morreu duas vezes: não gostou do trabalho que fez e as pessoas não gostaram também. Com Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer ele morreu apenas uma, porque, embora sem sucesso, ele adorou o filme.

Lynch era um diretor de curtas-metragens, propagandas e comerciais. Mas em 1977, realizou seu primeiro longa, Eraserhead, protagonizado por Jack Nance. E o filme foi considerado pela crítica como sendo, no geral, um dos mais estranhos já feitos. Foi bem recebido como um terror. Ironicamente, é o filme mais realista do diretor. Isso porque é o que mais se distancia da realidade e se instala em uma zona confortável de um só gênero. David Lynch ainda estava no começo do amadurecimento de seu estilo. Eraserhead é recebido bem porque não se arrisca a romper o conceito tradicional de terror.

Eraserhead

O filme aborda questões da natureza humana, como a metamorfose do ser, e questões familiares. O terror corporal também está muito presente aqui, mais do que em seus outros filmes. O Homem Elefante é muito parecido nesse aspecto: também em preto e branco e abordando questões do corpo como reflexos de questões emocionais.

E ainda sendo um terror surrealista muito visual, é, de acordo com o próprio Lynch, seu filme mais espiritual. Em um bilhete para os pais, ele pediu para que eles não assistissem a obra. Esse é um dos indícios da influência da vida pessoal de Lynch em seus filmes. Os anos 1950, e as vizinhanças harmoniosas, são muito importantes para a dualidade que o diretor passa a aprofundar em seu cinema. Há um lado muito sombrio em suas histórias, mas que serve para ressaltar a serenidade do mundo e das pessoas.

Orelha, diário e um saxofonista: a não existência do bem e do mal.

“É um mundo estranho, não é mesmo?”

Uma das citações mais marcantes de Veludo Azul (Blue Velvet) é essa fala a respeito da natureza do mundo. A maneira como a sociedade se comporta não é exatamente um interesse de Lynch, mas pode-se dizer que ele a reverbera em suas narrativas: é partindo da esfera individual que o cineasta elabora uma pintura sobre a humanidade como um todo e sobre como viver em conjunto nos aproxima e distancia do bem ou do mal.

Com Veludo Azul, David continua sua parceria com o ator Kyle MacLachlan – que protagonizou sua versão de Duna e, posteriormente, Twin Peaks – e inicia uma parceria igualmente duradoura com a atriz Laura Dern. Na trama do longa de 1986, o jovem Jeffrey encontra, durante uma caminhada, uma orelha humana decepada, o que marca o começo de sua aventura. As cenas tensas ganham força ao passo que se contrastam com o ambiente acolhedor e tranquilo no qual Jeffrey e a colega, Sandy, vivem. Não há um portal mágico, uma porta para um mundo de trevas e escuridão. Mas ao encontrar a orelha, Jeffrey é tomado por uma atração pela verdade, e, ao buscá-la, adentra um mundo que não é seu.

Ao mesmo tempo que não possui os elementos fantásticos que O Homem Elefante, Eraserhead e Duna possuem, Veludo Azul é o primeiro filme no qual David Lynch explora, mais livremente, o erotismo em sua obra. Isso evidencia o movimento de Lynch em se aproximar de algo pessoal, próprio, algo que Duna não significou para ele.

Quando o protagonista se insere no mundo de Dorothy Vallens (Isabella Rossellini) – pessoa a quem ele é levado por meio de sua investigação sobre a orelha –, ele não descobre um homem-monstro no sentido concreto, mas sim uma parte paralela da sociedade, na qual homens podem ser extremamente cruéis, abusivos, violentos, doentios. De certa forma, portanto, o personagem principal descobre a existência de homens-monstros que nada mais são do que homens comuns.

Veludo azul

O lado erótico atua no filme como um impulso para entrar e/ou continuar nesse mundo que se resume à maldade. Dorothy desperta o desejo sexual tanto em Jeffrey quanto em Frank Booth (Dennis Hopper), o que faz com que o mundo da “vizinhança de cercas brancas e jardins floridos” de Jeffrey colida com o mundo das armas, chantagem e depravação de Frank. E então esse desejo faz com que a natureza do garoto, gentil e curioso, se torne equiparável àquela do homem, criminosa e abusiva.

Há em Jeffrey um certo impulso pelo heroísmo. Ele precisa ser a salvação de Dorothy. Mas, no geral, o que acontece é que ele, se envolvendo romântica e sexualmente com ela, passa a viver encantado e assustado com o universo da mulher. Sendo assim, em Veludo Azul, o diretor realiza um jogo entre a ingenuidade e o proibido, o desejo e a repulsa.

Esse contraste é mais evidente devido aos ambientes em que o protagonista transita, o que se relaciona com o contraste entre a realidade e a irrealidade em David Lynch. A pesquisadora Mirian Tavares disserta sobre isso em seu artigo O surrealismo em David Lynch:

“[...] aquela orelha mutilada lembra-nos que, no mundo, vemos apenas a superfície. É necessário direcionar os olhos para o outro lado, talvez para dentro de nós mesmos, para penetrarmos no mistério do real, que não é raso, nem previsível, e que contém, como nos sonhos, diversas camadas de significação.”

Quatro anos após a estreia de Veludo Azul, a série Twin Peaks foi ao ar – uma criação conjunta de Lynch com Mark Frost. Aqui, os elementos irreais tornam a aparecer com força e, novamente, em contraste com a suposta tranquilidade de uma comunidade. Dessa vez, a chave que une os dois mundos é Laura Palmer (Sheryl Lee): a cidadezinha de Twin Peaks é abalada de forma permanente e profunda após a jovem ser encontrada morta em um saco plástico na beira de um rio.

E Laura Palmer também é, como revelado ao longo da série, objeto de desejo. Nesse caso, de um ser sobrenatural. Assim como Dorothy, elas parecem lidar bem com a realidade cruel do mundo. Mas algo muda no olhar das pessoas sobre as personagens quando elas deixam de ser criaturas frágeis: no começo, é lamentável que tenham sofrido; depois, nem tanto.

A coautora de Espaço para sonhar diz:

“Vivemos em um mundo de opostos, um lugar onde o bem e o mal, o espírito e a matéria, a fé e a razão, o amor inocente e o desejo carnal coexistem lado a lado em uma paz incômoda; a obra de Lynch reside na zona complexa onde o belo e o maldito colidem.”

Há um limite muito bem estabelecido entre o mundo da bondade e o mundo da maldade, tanto em Veludo Azul quanto Twin Peaks. Em ambos os casos, o que faz esse limite ficar em evidência é uma personagem feminina. Dorothy não é apenas um objeto de desejo, como uma análise superficial poderia concluir. Para ela, o mundo mágico não é o ambiente de Frank e sua gangue, mas o mundo de Jeffrey, o da bondade. A personagem de Isabella Rossellini também deseja, e desesperadamente, voltar a ter seu filho, para que viva novamente no mundo quase encantado das cercas brancas e rosas vermelhas.

Laura Palmer não apenas não era a garota ingênua que precisava de um salvador, como também conseguia lidar com a escuridão sem se afundar nela. É incômodo para os personagens masculinos que alguém como ela conseguisse manter sua luz sem se perder no mal e fazer com que isso lhe pareça natural. Pois a verdade é que a mesma Laura que se prostituía era aquela garota gentil que ajudava os necessitados.

Não existe, em si, uma moral sobre Veludo Azul ou Twin Peaks. Mas é possível refletir que Laura não precisava ter vislumbrado, tão nova, um mundo tão profano. Assim como Donna (Lara Flynn Boyle), sua melhor amiga, não precisou.

Twin Peaks

A maneira como a natureza feminina é representada nos filmes de David Lynch é certamente uma de suas marcas: a princípio, pode se parecer com a ideia patriarcal e clássica da mulher como origem do mal. Porém revela-se uma complexidade muito maior nessa questão. Apesar de ser por meio de personagens femininas que o mal, o cruel, o violento e o maldito se revelem, não são elas as origens disso. As mulheres lutam para viver no outro lado, ao contrário dos homens, que são seduzidos para o mal. E, importante enfatizar, não são seduzidos por elas, mas tentam se convencer de que sim. É o mal que seduz.

Isso fica muito claro em duas obras que vieram apósa série: Twin Peaks: os últimos dias de Laura Palmer (Fire walk with me) e A estrada perdida (Lost highway). No primeiro filme, como o nome já indica, descobrimos em detalhes o que aconteceu nos últimos dias antes do assassinato de Laura Palmer. E o erotismo de Lynch, bem como o surreal, atinge um nível extraordinário.

Afinal, é quando descobrimos quem Laura Palmer era de fato. E há a típica desconstrução da inocência que acompanhamos em outros filmes do diretor – tal como em Veludo Azul – e que é fundamental para a construção do horror em suas obras. Conforme Laura deixa de ser uma garota inocente, nos aproximamos de um lugar sombrio. A sensação que resta é a de que, nesse lugar, ninguém pode alcançá-la. E o “não poder voltar atrás” é o que causa a vertigem e o medo dessa realidade terrível que Laura vivencia todos os dias.

No mundo de Twin Peaks, somos introduzidos a um conceito que, em partes, resume o que seria o estilo próprio de Lynch: o Black Lodge e o White Lodge. O personagem Hawk (Michael Horse) apresenta esse conceito ao agente Dale Cooper (mais um personagem de Kyle MacLachlan), responsável pela investigação do assassinato de Laura. Nesse ponto da história, eles já suspeitam que o crime envolve algo sobrenatural, e a ideia do Black Lodge é a de um lugar onde o mal se concentra – a origem de Bob (Frank Silva). O White Lodge é, claro, o oposto.

Em Os últimos dias de Laura Palmer, a vemos chegar no Black Lodge após ser assassinada. A cena de sua morte é extremamente violenta e parece mostrar que o sentimento crescente de que ninguém poderia ajudá-la estava certo. Contudo, na última cena, Laura enfim chega ao Black Lodge e não está sozinha. O agente Cooper – que ela sequer chega a conhecer – segura seu ombro, e ela observa uma espécie de santa. Laura então chora e sorri, e seu rosto é iluminado por uma forte luz azul.


David Lynch não tenta mostrar um mundo mais justo ou uma visão utópica sobre a justiça. Na verdade, como o surrealismo aspira, Lynch tenta:

“[...] desnaturalizar o mundo, torná-lo estranho, para que, contrariamente, ele possa ser novamente conhecido.”

Em todos existe a dualidade entre o bem e o mal. No mundo, não existem os heróis ou os vilões, e assim é em seu cinema. Existem aqueles, por exemplo, que, como Laura, conhecem desde criança a maldade humana. E então, com um amigo, um diário, um amor, descobrem que a bondade pode prevalecer sobre o mal. Não há nenhuma inocência nas pessoas. O que não significa que Laura ou Dorothy não eram pessoas boas.

A estrada perdida é, nesse sentido, a história de uma pessoa cujos desejos estão em conflito; uma narrativa que não deve nada à ideia de justiça e revela algo cruelmente verdadeiro da natureza humana. O longa mostra Fred Madison (Bill Pullman), um saxofonista, e sua esposa, Renee Madison (Patricia Arquette). Um dia, uma fita é deixada na porta de sua casa e Fred é acusado de assassinar Renee. O irreal toma conta das cenas quando Fred passa a ver um homem pálido e misterioso que diz ter sido convidado para entrar em sua casa, e Fred se torna... outra pessoa.

Desse modo, a personagem feminina é novamente o que desestrutura a realidade do personagem masculino. Fred adentra – após a cena em que Renee é achada morta no chão do quarto – um mundo sombrio, dentro de sua própria consciência, com visões confusas de uma casa, uma estrada, e o homem pálido misterioso. Ele se transforma em Pete Dayton (Balthazar Getty), que se apaixona por Alice, também interpretada por Patricia Arquette. Mas o amor, que era inocente e verdadeiro por Renee, transforma-se em uma vontade erótica, puramente carnal.

A estrada perdida

A existência de duas personagens que são a mesma demonstra que a representação feminina nos filmes de Lynch amadureceu muito desde Veludo Azul: é a maneira como os homens as veem que as tornam anjos ou demônios, não sua natureza. Renee é uma esposa calma, mulher angelical; Alice é uma amante que grava filmes pornográficos, uma mulher pervertida. Mas, no fim, ambas são a mesma pessoa.

É a contar a incômoda história de se render aos sonhos que David Lynch se dedica.

Última parada: Cidade dos Sonhos


Existe uma longa discussão sobre David Lynch fazer terror ou não. O terror, para Aristóteles, é um dos sentimentos que o teatro busca atingir no público. Na Poética, o pensador grego fala sobre piedade e terror como sentimentos máximos da arte de fazer poesia. Para ele, a poesia é imitação, e a imitação é natural ao homem. Sendo assim, coisas que desprezamos na vida real nos causam prazer quando imitadas. Incluindo cenas de morte e violência.

Em Mulholland Drive: Cidade dos Sonhos, há a cena de um corpo em estado de putrefação, a cena de uma mulher cantando até desmaiar e uma cena de jump scare (susto repentino), na qual o que parece ser uma criatura imunda mata um homem, literalmente, de susto. O tempo todo, no filme de 2001, ficamos em estado de alerta. A sensação de que algo está errado é incessante e acontece porque as cenas não aparentam ter nenhum sentido ou ligação entre si. Assim como em A estrada perdida, a estrutura narrativa de começo, meio e fim se rompe. E a violência se torna ainda mais potente.

Mulholland Drive parece unir uma série dos elementos-chave dos filmes de Lynch, alguns dos quais já exploramos aqui. Mas é também um filme novo: o surrealismo em tela deixa um rastro em quem assiste; um sentimento latente de saída da realidade. E o mais assustador é que se trata de uma espiral sem fim dentro de uma personagem tomada pela loucura. Bem como em A estrada perdida, a culpa, a vingança e o ciúme criam uma atmosfera de insanidade, concretizada pelas imagens confusas na tela, as cores fortes, os sons difusos.

E novamente uma mulher é a chave para o portal do mundo assustador. Dessa vez, Rita (Laura Harring) é o que leva Diane Selvy (Naomi Watts) a adentrar numa espécie de pesadelo crescente. Diane sonhava em ser uma estrela em Hollywood, mas, ao ser tomada por uma atração incontrolável por Rita, tudo muda.

O erotismo em Mulholland Drive é mais inesperado e, de longe, o mais bem aproveitado e efetivo. Sua atmosfera é magnética, o que orna perfeitamente com o surrealismo que David Lynch já desenvolve com maestria. É aqui que o conflito entre o prazer e a repulsa se intensifica. As duas se sentem atraídas, mas todo o resto está errado. E a verdade – de novo a busca pela verdade como motivação – é que as coisas são ainda mais terríveis do que aparentam. Ainda, a existência de personagens idosos, retratados quase como assombrações para Diane, contrasta com a juventude e desejo erótico que ela sente. A velhice, desde a poesia grega arcaica, é um mal pior do que a morte porque implica o fim da participação na esfera sexual.

Por fim, Lynch comenta sobre o sexo em sua obra:

“O sexo é uma porta para algo muito poderoso e místico, e os filmes costumam descrê-lo de um modo completamente raso. Ser explícito tampouco toca o seu aspecto místico. É difícil representá-lo na tela porque o sexo é algo misterioso.”

Mulholland drive

Não é um homem, na Cidade dos Sonhos, que cede à escuridão, mas outra mulher. Sua trajetória se assemelha à de uma Medeia. É uma personagem que, pelo amor e autopiedade, comete atrocidades. O arquétipo de personagem que enlouquece e escolhe o lado sombrio revela a grande jornada do herói nos filmes de Lynch. É um terror elegante, do tipo que levanta o sentimento de culpa em quem assiste, porque os torna cúmplices de uma maldade assustadora. É horrível porque é verdadeiro.

Em suma, os personagens são seduzidos para a maldição, mas a escolhem. Nenhum deles é intrinsecamente mau. Nos sonhos, todos eles conseguem o que querem, mas a verdade não é a mesma que o mundo dos desejos soníferos. E no mundo real, o bem e o mal, domínios nem sempre bem definidos, se colidem dentro de nós.

O que Lynch faz é dar palco a esse conflito humano e nos aterrorizar perante nossas próprias falhas. Para a maior parte de seus protagonistas, é vergonhoso ceder ao mal, e há inúmeras vergonhas, porque há múltiplos males. Há vergonha pelo desejo doentio pelo prazer sexual, há vergonha pela violência empreendida contra alguém sem razão, há vergonha pelos pensamentos de morte que fluem como um rio na consciência e há vergonha de terem se tornado monstros.

Mas mesmo após a maldade ser feita, a bondade não abandona os personagens. E por isso a vergonha. É o que acontece com Diane Servy. Laura Palmer não sente vergonha porque não foi uma escolha viver como vivia. E Dale Cooper, alguém aparentemente inabalável, também estava sujeito a se contaminar pelo mal, mas a bondade ainda existia dentro dele.

“O fogo caminha comigo!” É o que diz o memorável poema de Twin Peaks. Há uma esperança nas obras de David Lynch que parte do medo que sentimos sobre nós mesmos. Assassinos sobrenaturais e homens misteriosos com câmeras podem não existir, mas a escolha para o bem e para o mal também não existe. O que Lynch faz é construir um subgênero muito específico do terror que retoma o sentido mais literal: ser comovido por uma forte emoção e sentir prazer nisso.

David Lynch apresenta obras que são feitas para apreciar, e que revelam uma verdade íntima sobre o ser humano. É um mundo de sonhos perturbadores, dos quais nem sempre se pode escapar. Porém dentro de nossa própria complexidade, alguns conseguem caminhar com o fogo sem se queimar. E deles partem as melhores histórias. 

Referências





Arte em destaque: Caroline Cecin 

Comentários

  1. Elisa, primeiro de tudo, meus parabéns pelo seu texto!
    Lynch é, em minha humilde opinião, um dos artistas mais difíceis de se captar a essência ao falar ou escrever sobre. O cara pode ser descrito como um maluco (no bom sentido), então considero você alguém corajosa por se aventurar por esse espaço liminar cheio de cortinas e fumaça que são as histórias contadas em suas séries e seus filmes.

    Gostaria também de compartilhar que seu texto captura a principal essência dos filmes do Lynch: a empatia e o quão bom o denso e maravilhoso é apresentar, assistir e sentir isso. Quando comentou de Dorothy, Renee, Diane e Rita e principalmente Laura, senti como se estivesse passando pelas obras de David mais uma vez. Como um amante das terríveis vidas apresentadas na obra do grisalho, isso até me emociona e conversou comigo como de forma misteriosamente mágica.

    Enfim, muito obrigado por ter escrito este texto! Seus textos são tão ótimos quanto o café do Double R!

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  2. ótimo texto!!!
    não sei se tu conhece o ensaio "david lynch keeps his head", do david foster wallace. o wallace foi convidado a visitar o set de Mulholland Drive, e escreveu esse ensaio, tentando definir o termo "lyncheano". acho que vai te interessar em especial os insights do wallace sobre Veludo Azul (isso se tu não leu o texto já, claro).

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