Em Um Bonde Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire), acompanhamos a história de Blanche DuBois (Vivien Leigh) enquanto ela chega em Nova Orleans para visitar a irmã Stella Kowalski (Kim Hunter). Nascida em criada em Laurel, Misssippi, Blanche chega a Elysian Fields Avenue, onde sua irmã reside, para passar um tempo após ter sido afastada de seu emprego como professora de inglês. A causa de seu afastamento, de acordo com a própria Blanche, é devido a ansiedade e nervosismo, que quase a levaram à loucura. Por conta disso, o diretor da escola onde ela trabalha achou melhor que ela se afastasse por um tempo. A verdadeira razão, no entanto, só nos é contada um tempo depois.
Quando vemos Blanche DuBois pela primeira vez ela aparenta ser uma mulher recatada, culta, antiquada, arrogante e ardilosa. O que não se espera é que, por trás de toda essa fachada de ludibriadora, existe uma mulher da casa dos 40 debilitada e com um passado difícil repleto de traumas e tragédias que ninguém jamais imaginaria e que culminaram em sua total instabilidade mental. Conforme vamos conhecendo a história de Blanche mais a fundo entendemos melhor tudo que contribuiu para sua atual situação; quando mais nova ela foi casada com um jovem que lhe escrevia cartas chamado Allan Grey. Algum tempos depois do casamento, ela flagra o marido na cama com outro homem. A descoberta de Blanche, juntamente com algumas duras palavras que ela lhe disse, faz com que Allan coloque uma arma na boca e cometa suicídio. Anos depois, já professora e assombrada pela culpa da morte de Allan, ela se envolveu com um aluno de 17 anos, o que resultou em sua demissão. Desesperada depois de perder a casa da famíla devido a diversas dívidas acumuladas pelos anos de doenças de outros familiares, ela buscou refúgio no Hotel Flamingo, um antro de prostituição.
Sem moradia e com a reputação totalmente arruinada, Blanche começa a se perder na própria mente e na realidade que ela havia criado, onde ela ainda é uma mulher jovem, bem de vida e cobiçada por vários cavalheiros. Tudo isso faz com que Blanche seja uma das melhores, mais ricas e mais complexas personagens de Williams. Segundo alguns críticos de teatro, ela talvez seja uma das personagens mais difíceis de interpretar. Sua intensidade e sensibilidade contrapõem com seus desejos exorbitantes e proibidos, o que causa nela uma permanente exaustão emocional, levando-a cada vez mais à beira da loucura. Do outro lado, temos Stanley Kowalski (Marlon Brando), cunhado de Blanche, que é o completo oposto: brusco, machista, agressivo, animalesco, um perfeito brutamontes.
Assim como a maioria dos autores, Tennessee Williams usava sua própria experiência de vida como inspiração. Filho de um vendedor de sapatos alcoólatra e de uma dona de casa com um humor instável, ele conhecia bem os lados mais obscuros que um ser humano é capaz de carregar dentro de si. Há quem diga que a personagem de Blanche foi inspirada em sua irmã Rose, de quem era muito próximo e que apresentava sintomas de esquizofrenia desde muito jovem. Rose foi submetida a uma lobotomia, o que a incapacitou pelo resto da vida, e fez com que Tennessee nunca perdoasse seus pais.
Tennessee Williams |
Podemos dizer que a persona de Blanche é uma consequência não só dos traumas, mas também da sociedade daquela época. Ela foi uma mulher com um certo padrão aristocrático de vida que conheceu o amor muito jovem nos braços de um homem gentil, delicado e poeta que ela não entendia e não sabia como ajudar, o que resultou em sua morte. Ficou na casa da família para cuidar dos mais velhos, perdeu tudo com a morte deles e se viu presa em um labirinto cuja porta de saída era a porta de um hotel de reputação péssima. No meio disso, ela tentou ser professora e ensinar aos jovens sobre escritores como Nathaniel Hawthorne, Edgar Allan Poe e Walt Whitman. Porém, estar em meio aos jovens a fez perceber tudo aquilo que ela tinha perdido: juventude, beleza e inúmeras possiblidades de fazer o que quisesse. Assim, em um lapso, ela se envolve com um aluno menor de idade e abre ainda mais a porta para sua ruína.
Um terço de tudo que foi citado acima já seria suficiente para fazer qualquer ser humano entrar em colapso. Blanche ainda encontra refúgio criando fantasias e mergulhando cada vez mais fundo nelas na esperança de que algum dia elas se tornem reais. Porém, mesmo quando chegamos a pensar que ela teria uma segunda chance ao lado de Mitch (Karl Malden), um amigo de Stanley que mora com a mãe doente e que oferece toda gentileza tão almejada por Blanche, seu passado vem a cavalo para lhe assombrar e destruir seu futuro. Com a chance perdida ela busca conforto em suas coisas e fantasias, acreditando que um velho conhecido milionário, Shep Huntleigh, viria a seu auxílio, e é aí que vemos o quão perverso o ser humano pode ser. Chegando em casa depois de vir do hospital onde Stella deu à luz, Stanley começa uma conversa com Blanche na qual ela diz que uma mulher com classe e inteligência pode enriquecer a vida de um homem, que ela tem isso a oferecer e que isso o tempo não destruiu.
"A beleza física é passageira, um bem transitório, mas a beleza da mente, a riqueza do espírito, a ternura no coração... eu tenho tudo isso... não desaparecem, mas crescem! Aumentam com os anos."
Cansado de ser negligenciado por Blanche e sua arrogância, Stanley começa a gritar com ela, chegando até a partir para cima dela. Entretanto, o perigo não estava no Stanley gritando ensandecido a todos os ventos e sim em seu silêncio. Nos minutos finais do filme vemos os personagens de Leigh e Brando em um jogo de caça e caçador. Brando nos transmite aquele olhar de predador traiçoeiro cujas intenções nunca estão claras. Leigh, por outro lado, nos dá ainda mais vulnerabilidade e pavor como nunca antes. Ela teme pela sua vida e pelo que lhe resta de sanidade. Até que Stanley dá a primeira investida com um sorriso dissimulado no rosto, como se dissesse: “não há nada o que temer, isso vai acontecer quer você queira ou não”. Blanche ainda tenta lutar e se salvar, mas ela estava tão fraca que, mesmo com o pingo de ferocidade que lhe atingiu, não consegue se desvencilhar da armadilha e é estuprada por Stanley.
Depois disso a vida, a faísca de sanidade e de realidade que ainda havia em Blanche, se apaga e a loucura total se instala. Sem saída, Stella se vê obrigada a internar a irmã em um manicômio.
É na cena final do filme que Vivien Leigh parte o coração do espectador, ao ir de braços dados de bom grado com o médico enviado para buscá-la, ao soltar uma simples frase:
"Seja você quem for... Sempre confiei na bondade... de estranhos."
Um Bonde Chamado Desejo nos mostra o quão frágil, extraordinária e complexa a mente humana pode ser. Tudo isso graças a uma atuação simplesmente estupenda de Vivien Leigh, que lhe rendeu um Oscar. Leigh não encantava tanto assim desde sua Scarlett O’Hara em E O Vento Levou (1939). Sua performance possui um certo exagero típico da Hollywood daquele tempo, mas com um toque de realidade e doçura que só Vivien era capaz de transmitir, ela nos faz ficar incomodados com a personagem ao mesmo tempo em que nos faz ter empatia, e isso por si só já é algo inacreditável. O mais triste é pensar que talvez, ao final de sua vida, Vivien tenha ficado mais parecida com Blanche, devido a um distúrbio bipolar, um diagnóstico de maníaco-depressiva e uma tuberculose crônica que a atingiu na metade nos anos 1940 e a debilitou até o fim de sua vida, até causar a sua morte.
Um Bonde Chamado Desejo nos mostra como a sanidade humana pode ser frágil, principalmente quando diante de algumas circunstâncias parece que tudo e todos estão contra você.
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