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A mão e a luva: Guiomar, a heroína romântica de Machado de Assis


Quando pensamos em ficção oitocentista brasileira é inevitável lembrar do ensino médio e da classificação conforme as escolas literárias. A Machado de Assis coube ter suas obras divididas entre a fase romântica e a fase realista. Acontece que, como ocorre em relação a quase tudo na vida, na prática a teoria é outra.

Para quem acredita que elementos como a análise do perfil psicológico das personagens e a crítica irônica só surgiriam na fase realista de Machado, sugerimos uma leitura mais atenta de sua “fase romântica”. Que tal começar por A mão e a luva, uma pequena obra-prima, e sua protagonista, Guiomar, supostamente uma heroína romântica?

A mão e a luva foi o segundo romance de Machado de Assis, publicado em 1874, originalmente sob a forma de folhetim, ou seja, capítulo a capítulo nas páginas de um jornal. Ao reunir os capítulos em um livro, ainda em novembro daquele ano, Machado prefacia a obra com uma advertência, na qual já se revela o cuidado e importância que o autor atribuía à construção do perfil dos personagens, com destaque para a heroína, Guiomar:

“Esta novela, sujeita às urgências da publicação diária, saiu das mãos do autor capítulo a capítulo, sendo natural que a narração e o estilo padecessem com esse método de composição, um pouco fora dos hábitos do autor. Se a escrevera em outras condições, dera-lhe desenvolvimento maior, e algum colorido mais aos caracteres. O de Guiomar, sobretudo, foi o meu objeto principal, senão exclusivo, servindo-me a ação apenas de tela em que lancei os contornos dos perfis.”

Antes de mais nada, a protagonista de A mão e a luva possui, sim, certas qualidades da mocinha romântica do século XIX: é boa, pura e religiosa, pontos inegociáveis. Entretanto, conforme a personagem é revelada, vemos que tais características andam de mãos dadas com outras bem menos próprias da heroína romântica: racionalidade e ambição.

Guiomar é uma jovem de origem humilde, afilhada de uma baronesa. Após perder os pais, é enviada a um colégio pela madrinha. Pouco tempo depois, morre Henriqueta, a filha da baronesa, da mesma idade da jovem. A madrinha, então, vai buscar Guiomar no colégio, deixando explícita a presumível transferência de afeto: “Você será a filha que eu perdi; ela não me amou mais, nem eu, já, agora, teria outra consolação”, diz a Guiomar.

O episódio marca a ascensão de classe da protagonista, social e materialmente alçada ao posto de filha de uma baronesa rica. Os projetos de transformar Guiomar em professora são abandonados. Ela passa a levar uma vida de moça solteira abastada, às voltas com o piano, o bordado, a ópera e os bailes, além de se desvelar em cuidados com sua benfeitora.

Nos capítulos em que apresenta a jovem e narra os sucessos que a levaram à casa da madrinha, o autor traz detalhes interessantes. Quando criança, Guiomar viu, através de uma fenda no muro de sua casa humilde, um grupo de moças passeando na chácara vizinha. Todas estavam cobertas de jóias e o espetáculo impressionou Guiomar a tal ponto que, naquele dia, ela foi dormir pensativa e melancólica.

Depois, já orfã, ela confidencia à baronesa o desejo de se tornar professora, dizendo que sua obrigação é “ganhar o pão”. Tão logo Guiomar proferiu essas palavras, narra o autor, “o rubor subiu-lhe às faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de vergonha”. A baronesa concorda com o projeto da afilhada, e recua, depois, com a morte da filha, como vimos.

Mas tudo isso é uma pré-trama, ou um ensaio para a trama. Os sucessos que vão nos revelar quem, de fato, é Guiomar, cujos olhos de menina perdiam-se com as jóias das moças e que buscava encobrir sua vergonha de tornar-se professora, são os de uma trama típica do romance oitocentista ocidental. Machado vai tratar do conflito entre interesse e amor no casamento, mas de uma forma que passa longe do moralismo.

Boa parte do livro gira em torno de como Guiomar lida com dois pretendentes, Estevão e Jorge. Jorge é o preferido da baronesa, pois é seu sobrinho. Já Guiomar não tem a intenção de se casar com nenhum, mesmo ciente de que uma recusa a Jorge pode desagradar à madrinha. O autor se esmera ao traçar o perfil das personagens masculinas, até porque está nas características psicológicas desses homens a raiz da rejeição de Guiomar.

Estevão é ingênuo, intenso, apaixonado. Jorge é presunçoso, superficial, calculista. Seu sentimento pela moça é uma tentativa de unir o útil ao agradável: casar-se com uma jovem bonita e concentrar a fortuna da baronesa, que pretende reparti-la entre os dois ao morrer.

Guiomar não se sente atraída por nenhum desses perfis de homem. Diferentemente de Estevão, personagem que já foi apontado como uma crítica de Machado ao romantismo doentio à la Werther, a heroína é uma criatura equilibrada e racional. O narrador nos conta que a imaginação de Guiomar “não é doentia, nem romântica, nem piegas” e “por mais longe que velejasse levaria entranhadas na alma as lembranças da terra”.

Machado de Assis

A riqueza almejada por Jorge também não a atrai como um fim em si mesma, e, menos ainda, condicionada ao enlace com um homem pomposo, mas medíocre. Conforme a descrição de Machado, Jorge se exprimia com uma “gravidade pesadona” para ocultar que suas ideias eram “chochas por dentro”. Além disso, o pretendente padecia de preguiça.

Segundo o autor, seu maior defeito “era um pecado mortal, o sétimo. O nome que lhe deixara o pai, e a influência da tia podiam servir-lhe nas mãos para fazer carreira [...]. Ele, porém, preferia vegetar à toa, vivendo do pecúlio que dos pais herdara e das esperanças que tinha na afeição da baronesa. Não se lhe conhecia outra ocupação”.

Quanto a Guiomar, a personagem atribui importância à fortuna, ou, mais do que isso: como um peixe na água, a jovem nada à vontade na atmosfera e no rumor público que cerca os afortunados. Admitida nesse mundo após a adoção tácita pela madrinha, pretende permanecer nele e, quem sabe, alçar voos mais altos.

“Ela queria um homem que, ao pé de um coração juvenil e capaz de amar, sentisse dentro em si a força bastante para subi-la aonde a vissem todos os olhos”, explica Machado, ao desnudar, afinal, o mundo íntimo da personagem. Assim, o parceiro ideal de Guiomar é um homem não apenas amoroso, mas forte e ambicioso, diferente de seus dois pretendentes.

“Dos homens que lhe queriam, nenhum lhe falava à alma; ela sentia que Estevão pertencia à falange dos tíbios, Jorge, à tribo dos incapazes, duas classes de homem que não tinham com ela nenhuma afinidade eletiva [...] [Guiomar] pedia amor, mas não o quisera fruir na vida obscura; a maior das felicidades da terra seria para ela o máximo dos infortúnios, se lha pusessem num ermo.”

Eis ainda um outro trecho em que ficam claras as aspirações da heroína:

“Sua natureza exigia e amava essas flores do coração, mas não havia esperar que as fosse colher em sítios agrestes e nus, nem nos ramos do arbusto modesto plantado em frente de janela rústica. Ela queria-as belas e viçosas, mas em vaso de Sévres, posto sobre móvel raro, entre duas janelas urbanas, flanqueado o dito vaso e as ditas flores pelas cortinas de caxemira, que deviam arrastar as pontas de alcatifa no chão.”

Em um triângulo amoroso no qual a mocinha não fica com nenhuma das pontas, qual é a solução? Uma quarta pessoa, evidentemente. Mas desse ponto não vamos passar, já que este não é um artigo acadêmico, mas um convite à leitura. Assim, aqui está o convite para os leitores se deleitarem com a prosa genial de Machado de Assis desde os primórdios de sua trajetória como romancista e conhecerem o destino da ambiciosa Guiomar.

Em uma época na qual estavam em moda os romances criticando o casamento por interesse - Senhora, de José de Alencar, de 1875, talvez seja o exemplo brasileiro mais famoso -, Machado não teve medo de criar uma mocinha que anseia por amor, mas também coloca entre suas prioridades viver cercada de conforto, jóias e convites para festas.


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Referências

  • Escolha e reconhecimento ético: uma leitura de A Mão e a Luva, de Machado de Assis (Acácio Luiz Santos)
  • A construção e a desconstrução romântica em A Mão e a Luva (Bruna Kalil)



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Comentários

  1. Primeiro li a versão em quadrinhos ontem . A história e a maneira genial de Machado né narrá-la me impressionaram tanto , que li o livro hoje , em um dia . Parabéns pela análise fidedigna.

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