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A alegoria dos pássaros como liberdade no século XIX


O ato de falar sobre uma outra coisa é o que está na raiz do termo "alegoria", do grego "allegoría". “Dizer o outro”, literalmente. Romances como O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, ou Jane Eyre, de Charlotte Brontë, praticam a alegoria de “dizer o outro”. Mas o que tal feito tem em comum, além de ter sido manifestado especialmente no século XIX?

"De vez em quando percebo em você o olhar de um curioso tipo de pássaro por entre as grades de uma gaiola: um vívido, inquieto e resoluto cativo está lá dentro; se estivesse livre, haveria de alçar voo até as alturas."

Impressões da personagem Edward Fairfax Rochester sobre a protagonista do romance Jane Eyre, tal trecho acima representa a alegoria feita por autores como Charlotte Brontë – principalmente durante o século XIX – de pássaros como a representação da liberdade em seus romances.

A figura do pássaro, na literatura, frequentemente representa a liberdade e, nesse caso, uma sociedade repressora pode ser traduzida como uma gaiola. Oscar Wilde, apesar de ser um célebre escritor, poeta e dramaturgo, foi fortemente reprimido em vida por conta de sua orientação sexual, o que certamente fazia com que se sentisse aprisionado à sua gaiola chamada Reino Unido. Seus pais, intelectuais anglo-irlandeses em Dublin, o tiveram quando a atual República da Irlanda ainda pertencia ao Reino Unido. Wilde se destacou em suas formações, primeiro em Trinity College Dublin e, depois, na Universidade de Oxford. Após a universidade, mudou-se para Londres, onde deu início a trabalhos jornalísticos e obteve destaque em círculos sociais e culturais.

O autor era conhecido pela sua sagacidade, personalidade espirituosa e vestimentas extravagantes de dândi – um homem de bom gosto e fantástico senso estético. O retrato de Dorian Gray traduz, de fato, a essência de Wilde, uma vez que é uma obra recheada de sarcasmo, ironia, cinismo, frivolidades, devaneios e veleidade.

“Havia em sua voz o júbilo de um pássaro na gaiola.”

(O retrato de Dorian Gray)

O retrato de Dorian Gray foi alvo de críticas, protestos e fortes censuras na época de seu lançamento, em 1890. Apesar da revolta causada pelo romance de Oscar Wilde, o motivo pelo qual o escritor foi levado à prisão foi seu relacionamento com o lorde Alfred “Bosie” Douglas, filho do marquês de Queensberry. Wilde processou o marquês por difamação e, após uma longa batalha judicial, o romancista foi condenado por imoralidade; o fato de já ser considerado um artista imoral devido à sua escrita com certeza facilitou a sentença de dois anos de trabalhos forçados na prisão de Reading.

A tão mencionada gaiola, então, poderia representar as amarras injuriosas de uma época repressora para quem desejava a liberdade. Sob essa ótica, a alegoria de pássaros como liberdade e gaiolas como a sociedade repressora do século XIX também foi utilizada pela escritora e poeta Charlotte Brontë: 

"Não sou um pássaro e nenhuma rede me enleia. Sou um ser humano livre, com uma vontade independente."

(Jane Eyre)

O livro de Charlotte Brontë teve de ser publicado sob o pseudônimo masculino de Currer Bell. Isso porque, na época de sua publicação, mulheres que se empenhavam em atividades intelectuais recebiam inúmeras críticas; afinal, estas estariam fugindo do papel designado a elas – ou melhor, tentando se libertar de suas gaiolas. Não só Charlotte, como também suas irmãs publicaram seus romances sob pseudônimos masculinos: Anne Brontë e Emily Brontë contribuíram para a literatura como Acton e Ellis Bell, respectivamente. 

Além do fator de romances escritos por mulheres receberem fortes críticas, escritoras utilizavam pseudônimos masculinos não apenas por tal motivo. A sensação de liberdade que acompanha um nome masculino, em um século que cerceava mulheres em todos os sentidos, dava às autoras uma oportunidade de experimentar o mundo fora de suas gaiolas, fora do pequeno espaço em que lhes era autorizado voar. 

Charlotte Brontë nasceu em 21 de abril de 1816, em Thornton, Reino Unido. Sob o pseudônimo masculino, atuou como poeta e escritora. Jane Eyre, seu romance mais conhecido, foi, inclusive, publicado sob tal pseudônimo.

“[...] Não gostamos de nos declarar mulheres, uma vez que naquela altura suspeitávamos que a nossa maneira de escrever e o nosso pensamento não eram aqueles que se podem considerar 'femininos'. Tínhamos a vaga impressão de que as escritoras são por vezes olhadas com preconceito e tínhamos reparado como os críticos por vezes as castigam com a arma da personalidade e as recompensam com lisonjas que, na verdade, não são elogios.”

O pensamento feminino, como apresentado por Charlotte Brontë, tinha suas limitações no século XIX – e não só nele. Afinal, se suas obras não poderiam ser consideradas frutos de mentes femininas, quer dizer que elas ultrapassavam o que era permitido, ultrapassavam as grades das gaiolas em que deveriam ficar, das gaiolas que deveriam ser ocas, silenciosas e passivas. Os críticos, de certa forma, podem ser considerados os donos das gaiolas que aprisionavam os nomes femininos, mas, certamente, não possuíam as chaves. As chaves estavam nos nomes masculinos. Currer, Acton e Ellis Bell possibilitaram o voo das irmãs Brontë.

"E de súbito deu uma voada lindíssima de tanta liberdade."

(Clarice Lispector)

Referências




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Ana Clara de Menezes
Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina, é apaixonada pela temática da literatura clássica, assim como ama escrever sobre ela. Se considerando uma discípula de Jane Austen, é fã de comparações do atual e do antigo, que vão de Clarice Lispector a Elena Ferrante e Crepúsculo a Orgulho e Preconceito.

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