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O legado de Ursula K. Le Guin

No dia em que Ursula K. Le Guin, uma das mais premiadas autoras da ficção científica e fantasia, completaria 92 anos, foi criada a premiação Ursula Le Guin Literary Trust. Na verdade, sendo mais específica, a criação desse prêmio literário anual para ficção foi uma forma de homenagear e honrar o discurso da escritora no National Book Award de 2014. O prêmio é de US$ 25 mil dólares por um original de ficção imaginativa, e sua intenção é trazer reconhecimento para os tipos de escritores mencionados no seu discurso, os “realistas de uma realidade mais ampla”

Mas afinal, de quem Ursula estava falando nesse seu emblemático discurso? E para quem? E por que tanto o discurso como o trabalho dela ganharam notoriedade e continuam trazendo inspiração até mesmo após sua morte? 

Ursula K. Le Guin foi uma escritora, poeta, tradutora e editora literária estadunidense nascida em 1929, no estado da Califórnia. Os pais eram antropólogos, algo que de certa forma influenciou seus futuros trabalhos literários, pois ela era muito interessada em estudar e discutir relações humanas e cultura em suas obras. Além disso, as histórias também contavam com fortes referências budistas, taoístas, anarquistas e feministas. Mas, apesar de ser muito premiada e aclamada pela crítica, e por muitos anos ser uma das poucas escritoras de ficção científica conhecida e reconhecida mundialmente, os livros que escreveu não são tão amplamente famosos no Brasil.

Ursula, uma realista de uma realidade mais ampla

Dentre suas obras mais influentes da ficção científica está A mão esquerda da escuridão, que estabeleceu o nome de Ursula K. Le Guin entre os grandes autores de sua época. O romance se passa em uma sociedade alienígena, Gethen, cujos habitantes não possuem gênero fixo, e sim fluido, podendo mudar de acordo com as circunstâncias. O protagonista, Genry Ali, é um ser humano enviado numa missão diplomática para esse lugar. Como tem uma criação parecida com a nossa ao que diz respeito ao gênero, Genry precisa lidar com a própria humanidade e seus preconceitos arraigados para não estragar toda a missão.

Nesse livro, a humanidade da Terra alcançou a paz e faz parte de um grupo de planetas chamado Ekumen, onde todos possuem a mesma compreensão da importância da cooperação entre os povos. Os ekumênicos possuem também a missão de levar tais conceitos para outros mundos, e é ai que entra o papel de Genry em Gethen: tentar convidar o mundo de Gethen para participar de Ekumen.

“Não sou vendedor, não estou vendendo Progresso aos nativos. Temos de nos reunir como iguais, com entendimento mútuo e honestidade, antes que minha missão possa sequer começar.”

Genry não está ali numa posição de colonizador, portanto ele nunca tenta impor nada aos nativos, e sim sempre propõe trocas igualitárias entre eles. E, apesar da dificuldade de ter lidar com um mundo em que as principais nações são rivais (Karhide e Orgoreyn) e com as desconfianças nativas em relação a estranhos, Genry se mantém paciente em sua missão. Em vários momentos, tanto o emissário quanto o leitor é levado à reflexão, principalmente sobre gênero e igualdade de gênero. Muitas vezes, a autora nos faz pensar sobre o que há de andrógino em nós e em como a imposição de uma função social pelo gênero designado no nascimento nos limita e gera expectativa na sociedade.

“Considere: qualquer um pode trabalhar em qualquer coisa. Parece muito simples, mas os efeitos psicológicos são incalculáveis. O fato de toda a população, entre dezessete e trinta e cinco anos de idade, estar sujeita a ficar (como Nim definiu) 'amarrada à gravidez' sugere que ninguém aqui fica tão completamente 'amarrado' como, provavelmente, ficam as mulheres em outros lugares – psicológica ou fisicamente. Fardo e privilégio são compartilhados de modo bem igualitário; todos têm o mesmo risco a correr ou a mesma escolha a fazer. Portanto, ninguém aqui é tão completamente livre quanto um macho livre, em qualquer outro lugar.” 

O livro, junto com outro artigo publicado por ela, “Gênero é necessário?” (Is gender necessary? no original), é muito usado para se debater e ensinar sobre gênero. O próprio Neil Gaiman (autor de obras como Coraline, Deuses americanos, Sandman, entre outras) diz ter lido A mão esquerda da escuridão quando criança, e não só Ursula serviu de inspiração ao autor, mas Neil também comenta como o livro mudou a visão dele sobre gênero, “não como algo fixo, nem mesmo como algo importante, mas algo mutável e menos importante do que o tipo de pessoa que você é”

Ursula usava muito a utopia em suas obras de ficção científica (recurso também utilizado em Os despossuídos) para propor uma reflexão crítica acerca da contemporaneidade, valendo-se tanto da distância quanto da similaridade com a realidade para promover essa discussão. 

Ela define a ficção científica, no prefácio de A mão esquerda da escuridão, não como uma extrapolação imaginativa, e sim como uma descrição da realidade. “A ficção não prevê; ela descreve.” Inclusive, sobre a questão da androginia, nesse mesmo livro, Ursula diz não estar prevendo um futuro em que todos sejam andróginos, mas sim observando que se você olhar para si mesmo em certos momentos, dependendo de como estiver o tempo lá fora, já é andrógino.

Uma escola de magia antes de Hogwarts

Bem antes de Harry Potter ser o menino que sobreviveu e descobrir que é um bruxo, Ursula já havia escrito sobre um menino prodígio de um mundo bruxo: Ged de Gont. Trata-se de um jovem mago que também descobre cedo seus grandes poderes mágicos e é levado para uma escola de magia.

O Ciclo Terramar já desenvolvia vários dos temas abordados por Harry Potter, bem antes de J.K Rowling  escrever a saga, e é bem notável como ela se inspirou em Ursula na sua escrita, por mais que jamais o tenha admitido. 

Em vários pontos, podemos dizer que a saga de Le Guin vai mais além do que o mundo bruxo criado por Rowling. Terramar conta com grande representatividade: Ged é indígena, assim como a maioria dos personagens da história também não são brancos. Além disso, Le Guin aborda outras culturas (os livros possuem fortes inspiração taoísta. por exemplo), e Ged é um protagonista muito falho, a todo momento tendo que lidar com as consequências de suas decisões. Sem dar spoilers, no primeiro livro da saga ele ainda é um jovem arrogante e ingênuo e acaba tomando uma decisão extremamente impulsiva, fonte de tormento durante muitos anos.

O Ciclo Terramar, assim como em vários livros juvenis, também lida com morte, perda, amizade, amor, guerra e várias outras coisas que poderíamos elencar durante horas, o que ainda não seria suficiente para cobrir nem metade de todas as mensagens e discussões que Ursula consegue abordar ao longo de seus livros.

O discurso do National Book Award e o legado de Ursula

Em 2014, Ursula K. Le Guin foi homenageada pela sua contribuição à literatura estadunidense pela National Book Award. Ela fez um discurso esplêndido, o que rendeu um novo prêmio para a literatura, que leva o nome da autora. Ursula recebeu o prêmio das mãos de Neil Gaiman, e ele também prestou sua homenagem a ela. 

Foi um discurso memorável por diversos aspectos. Ursula começa sua fala agradecendo a todos e se alegrando pelo reconhecimento dos escritores excluídos da literatura por tanto tempo: seus colegas autores de ficção científica e fantasia que sempre perderam espaço e prêmios para os realistas. Em seguida, ela cita a inspiração para o que viria a ser seu futuro prêmio, sem ela saber, obviamente. A autora declara que tempos difíceis estão por vir, e desejaremos ouvir as vozes de escritores que consigam enxergar alternativas ao que vivemos e vejam além de nossa sociedade, podendo até imaginar outras maneiras de existir e encontrar a esperança. "Poetas visionários que lembram da liberdade - os realistas de uma realidade mais ampla."

Ursula sempre usou a ficção para criticar nossa realidade, refletir sobre a forma que estamos vivemos e nos fazer ver além disso. Há uma certa tristeza quando ela fala nesse discurso sobre como a arte vem se tornando um bem de consumo, uma prática, assim como muitas outras no capitalismo, de criar algo que vise o lucro. Porém, também há uma esperança, pois, por mais que o capitalismo seja inescapável, "outrora o era o poder divino dos reis".

“Neste momento, acredito que precisamos de escritores que saibam a diferença entre a produção de um bem de consumo e a prática artística. Desenvolver material escrito para se adequar a estratégias de venda e maximizar o lucro corporativo e a renda publicitária não é bem a mesma coisa que ser um editor ou autor de livros responsável.”

Sendo assim, Le Guin nos inspira a olhar para trás e ver como muito do que parecia uma grande treva sem fim passou e, portanto, podemos olhar para o agora e para o futuro pensando que talvez ainda haja esperança para nós, talvez uma esperança de tolo, como diz Gandalf, mas já é algo.

Ela inspirou grandes nomes da literatura, mas também míseros leitores comuns como eu e muitos outros. Nos fez ver que um jovenzinho mago arrogante pode se tornar um dos maiores e mais sábios magos de Terramar, nos fez pensar se gênero é o que pensamos ser mesmo, ou talvez seja tão mutável quanto as formas da água, se não existem outras formas mais pacíficas e talvez melhores de viver e criar fora do nosso sistema atual. E o mais importante, pelo menos para mim: me fez ver que os seres humanos podem resistir a qualquer poder humano e mudá-lo.

“Você não pode comprar a revolução. Você não pode fazer a revolução. Você pode apenas ser a revolução. Ou está no seu espírito ou não está em lugar nenhum.”

Arte em destaque: Mia Sodré  

Nicole Hildebrand
2000, carioca de nascença e de coração para sempre (mesmo fora de lá). Universitária cansada. Fã de carteirinha de fantasia e sci-fi desde pequena e sempre fascinada por boas histórias, independente de gênero. Escreve umas coisas por aí nas horas vagas.

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