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Fruto do Paraíso: a reconstrução de Eva por Věra Chytilová


A história de Adão e Eva é uma das mais conhecidas da Bíblia, presente no livro de Gênesis, que conta o nascimento e a queda do primeiro homem e mulher da Terra. Quando criou Adão, Deus havia dado a ele toda a liberdade para viver e ser o ser mais forte no Jardim do Éden, proibindo-o apenas de comer ou tocar na árvore do Conhecimento. No entanto, após ser persuadida por uma cobra, Eva come do fruto proibido e o oferece para Adão, e ambos condenam o ser humano ao pecado.

Por mais que no que foi escrito não houvesse um único culpado – ambos comeram do fruto e foram castigados –, durante séculos a Igreja Católica atribuiu a Eva o papel de principal culpada na expulsão do Éden. Apócrifos, textos e comentários circulavam promovendo uma nova visão sobre o que existia por trás dos personagens presentes em Gênesis, e logo nasceu a ideia de que se Adão era um homem semelhante a Deus, como poderia ele ter aceitado comer do fruto se não tivesse sido – como uma criança ingênua – persuadido a isso? Logo, a figura da cobra e sua maldade deveriam ser frutos da figura de Eva, que passou a ser vista como a tentadora.

Por mais que essa alegoria tenha servido no princípio como forma de conhecer a natureza humana, assim como as diferenças entre homem e Deus, ou então, num sentido mais biológico, as diferenças entre homem, mulher e animal, a visão sobre o pecado inicial sofreu as influências da misoginia tão presentes no clero e sociedades no início dos séculos. A cobra estava para Eva como ela estava para Adão, e logo esse pensamento intensificou a necessidade da submissão feminina. Antes, o mal, a cobra e o fruto não eram ilustrados com tantos detalhes semelhantes à natureza humana, mas entre os séculos XII-XVI, a figura da serpente se tornou um espelho não só de Eva, mas do corpo feminino em si. Além do pecado inicial em comer o fruto, ilustrações colocavam a sexualidade feminina como um dos meios utilizados para a queda do homem, como se todos os males do mundo fossem provenientes das mulheres, gerando uma visão maléfica e monstruosa do ser mulher.

“A cobra era o animal mais esperto que o Senhor Deus havia feito. Ela perguntou à mulher: — É verdade que Deus mandou que vocês não comessem as frutas de nenhuma árvore do jardim?

A mulher respondeu: — Podemos comer as frutas de qualquer árvore, menos a fruta da árvore que fica no meio do jardim. Deus nos disse que não devemos comer dessa fruta, nem tocar nela. Se fizermos isso, morreremos.

Mas a cobra afirmou: — Vocês não morrerão coisa nenhuma! Deus disse isso porque sabe que, quando vocês comerem a fruta dessa árvore, os seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecendo o bem e o mal.”

(Gênesis 3:1-5)

A passagem citada acima foi como a Bíblia descreveu o começo da queda de Adão e Eva, e é a mesma que Věra Chytilová escolheu para iniciar seu filme lançado em 1970, Fruto do Paraíso (no original, Ovoce stromů rajských jíme).


As primeiras cenas são constituídas apenas por um casal nu passeando em um jogo de surrealismo entre cores vibrantes, animais e folhas. O som remete ao telespectador um ambiente silvestre e até mesmo incômodo, enquanto na legenda trechos da Bíblia vão contextualizando o que está acontecendo. Após a figura do homem e mulher se beijarem e começarem a se camuflar entre os recortes de cores e texturas, o filme realmente entra em seu enredo mostrando os três personagens principais daquela história: Eva, seu marido Josef e Robert, um desconhecido encantador.

“Tanto o homem como a sua mulher estavam nus, mas não sentiam vergonha.”

(Gênesis 2:25)

Eva e Josef moram em um tipo de vila quase irreal, onde as pessoas passam seu dia lendo, brincando, indo à praia e plantando seus alimentos. Todos agem de forma alienada naquele ambiente, dando a sensação de uma inocência que os torna até infantilizados. Vestidos ou nus, nada é visto como vergonhoso ou com segundas intenções, os moradores daquele paraíso distante da sociedade gostam é de se divertir e brincar, tudo é harmonioso em todos os sentidos.

Após morder uma maçã, Eva nota a presença de Robert – o misterioso homem de vermelho que anda por aquela vila –, e enquanto tenta plantar legumes num solo infértil, o modo de Robert a ignorar desperta algo em Eva, que passa a procurar saber quem é aquele homem. A personagem começa a perguntar para diferentes pessoas quem ele é, o que faz ali, mas todos sempre respondem a mesma coisa para ela, dando a impressão de que apenas Eva nota algo de errado rondando aquele lugar.

Robert é o único personagem que desde o começo se destaca entre os outros, já que o que se sabe sobre ele é que mora ali há pouco tempo e, para muitos, é um bom homem. No entanto, desde o começo, seu comportamento quase obsessivo na direção das moradoras, disfarçado de brincadeiras, faz com que uma dúvida sobre sua índole se torne constante para o telespectadores.


Tudo no filme acontece de forma simbólica. O pecado inicial é retratado apenas através das legendas, a traição de Josef não é mostrada e a maçã é apenas uma fruta, assim como a cobra é apenas mais um animal. Em diversos momentos o filme traz o questionamento “me diga a verdade”, que se torna um elo curioso com o fato de que durante todo o roteiro, a única pessoa que acompanhamos o tempo todo e conhecemos de verdade é a própria Eva. Josef, que representa Adão, não tem tempo de tela para mostrar se ele faz muitas coisas além de permanecer ali se divertindo; no entanto, ele confessa ter pecado antes que ela, mas o como, quando e onde não são o foco principal nessa história. O mesmo acontece quando a reviravolta na história de Robert o coloca como um assassino; é através de Eva que essa suposição surge, mas não há a realização de algum ato concreto antes disso.

A sinopse do filme trata a relação de Eva com Robert como uma paixão obsessiva e pode até fazer com que o telespectador acredite que o enredo principal seja em torno disso, colocando Josef como um marido traído que busca pagar na mesma moeda. De um ponto de vista pessoal, acredito que o enredo pode ser visto como a tentação de Eva sendo sua busca incessante sobre a verdade, sobre o que existe além dos muros e árvores daquele lugar, sobre amor e sobre a vida. Quando Josef confessa a ela que pecou quando a traiu, a personagem percebe que em momento nenhum conheceu a verdade ou a sinceridade de quem poderia proporcionar isso a ela, e numa semelhança com o Mito da Caverna de Platão, Eva começa a buscar a verdade – ou, como colocado na Bíblia, o conhecimento entre o bem e o mal – por si só.

Robert passa então a ir atrás dela porque é o único dentre aquelas pessoas que conhece o bem e o mal, o mundo como realmente é, e só nesse momento que o olhar de Eva sobre o personagem se torna obsessivo, como se ela tivesse aberto os olhos para o mundo, para o amor, para ela como mulher – simbolicamente colocado no filme como idas ao restaurante movimentado. Em determinado momento, quando percebe que Eva já não é mais a mesma, Robert diz “Você foi a única que veio até mim por livre e espontânea vontade”.


Ao final, Eva volta pra casa e diz ao marido para não perguntar sobre a verdade, porque ela também não quer mais saber. Chytilová não cita Deus em momento nenhum, pois busca mostrar que o pecado nem sempre é uma única ação, mas que o mal está inato a qualquer um através do convívio e a persuasão do outro, assim como o perigo de se encantar por algo que não se conhece. O que Eva oferece ao marido é uma flor vermelha enquanto tenta tirar as roupas vermelha e preta de si – como se essa ação conseguisse apagar tudo o que aconteceu, como se pudesse tampar novamente seus olhos.

“A mulher viu que a árvore era bonita e que as suas frutas eram boas de se comer. E ela pensou como seria bom ter entendimento. Aí apanhou uma fruta e comeu; e deu ao seu marido, e ele também comeu.

Nesse momento os olhos dos dois se abriram, e eles perceberam que estavam nus. Então costuraram umas folhas de figueira para usar como tangas.

Naquele dia, quando soprava o vento suave da tarde, o homem e a sua mulher ouviram a voz do Senhor Deus, que estava passeando pelo jardim. Então se esconderam dele, no meio das árvores.”

(Gênesis 3:6-8)

Referências 




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Carolina Pereira
Santista, 20 anos, estudante de psicologia e de filosofia. Amante de idiomas, café, mar e tudo o que Edgar Allan Poe tenha colocado no mundo. De vez em quando tem vontade de fugir e viver como um hobbit.

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