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Os deuses de Antígona

A história de Antígona é bem conhecida. Uma das tragédias gregas mais difundidas, a peça de Sófocles fala acerca da última esperança da linhagem dos Labdácidas. Após seus irmãos terem entrado em combate entre si pelo direito de ficar no trono de Tebas, a linhagem masculina e geradora de herdeiros morre. Nesse momento, o tio deles, Creonte, assenta-se como rei no trono e estabelece que o antigo rei de Tebas, Etéocles, será sepultado com honras - enquanto seu irmão, Polinices, terá o descanso de um traidor, com o corpo pendurado fora dos muros da cidade para que as aves e os cães o dilacerem.

De acordo com os preceitos da religião grega, aquele que não era sepultado conforme os rituais requeridos pelos deuses não era recebido no além-vida, não tendo paz no Hades. Ao saber que seu irmão não poderá descansar, Antígona convoca um conselho familiar ao chamar sua irmã, Ismena, para que ambas sepultem secretamente o cadáver de Polinices. Mas Ismena não quer saber de ouvir tal coisa - para ela, embora tudo seja trágico, seu papel como mulher grega e pertencente à família do marido é cuidar dos ritos de sua nova família e deixar que Creonte faça suas leis e que a alma de seu irmão pague por sua transgressão.

Porém a transgressão corre na família dos Labdácidas. Ismena pode ter escapado dessa “maldição”, mas Antígona, não. O próprio ato de convocar um conselho familiar no meio da noite já nos mostra, no prólogo da peça, como Antígona é andrógina - uma mulher grega que comportava-se como um homem naquela época, assumindo papéis masculinos para seu tempo e revestindo-se do caráter de herói.

"ISMENA: [...] Pensa nisto também, nós somos só mulheres
fracas para enfrentar os homens e sujeitas
ao mando do mais forte. Só resta acatar
esta lei e outras que venham mais severas.
Por isso mesmo rogo aos mortos lá debaixo
que me perdoem se aceito o que me impõem.
Reservo a obediência aos que exercem o poder.
É tolo se lançar em ações extremadas.

ANTÍGONA: Não vou mais te exortar. Mesmo que tu quisesses
ainda agir, tua ajuda não me agradaria.
Vai com teu pensamento, que eu o enterrarei.
Quando eu o honrar assim, vai ser belo morrer,
jazer junto ao amado, eu, a sua amada,
numa perversão sagrada. Aqueles lá embaixo
mais tempo terei de agradá-los que os daqui.
Lá vou estar para sempre. Se é assim que tu pensas,
não esqueças que desonras o que os deuses honram."

Antígona diante do corpo de Polinices, por Nikiforos Lytras (1865)

Ao longo dos séculos, a crítica literária enxergou Antígona sob uma luz dual: o humano versus o divino; o direito natural versus o positivismo; etc. Tratando-se de ficção, todas as interpretações são válidas, pois cada olhar enxerga através das subjetividades de suas experiências pessoais e de seu repertório acadêmico. A intenção do autor ao criar sua obra é algo que podemos apenas conjecturar - mas mesmo que Sófocles tivesse deixado um bê-a-bá de como ler suas peças, ainda assim poderíamos enxergar nelas nuances, temas e questões que partissem da nossa leitura, unicamente, e não do autor.

E olhando para a Grécia antiga, tentando transportar o pensamento para aqueles tempos, é possível enxergar um poder tal e qual entre Antígona e Creonte. O rei de Tebas não é apenas um tirano (no sentido moderno da palavra) que quer impor suas leis - ele mesmo serve aos seus deuses, e acredita estar cumprindo com aquilo que deve fazer para que a maldição do sangue dos Labdácidas não se estenda sobre seu reinado. É possível pensar que o público do tempo de Sófocles teria olhado Creonte com olhos mais gentis do que nós. Isso não tira o mérito de Antígona, todavia - ela era uma mulher rebelde, mas não somente: ela incorporava o herói, o espírito de seu pai, Édipo, que, na tragédia, encontrou seu destino. Além disso, como epikler, ela era a corporificação da continuação da linhagem de seu pai, agora que ambos seus irmãos estavam mortos.

O epiclerado era um sistema de noivado diferente, no qual a mulher daria continuidade à sua linhagem ao parir os filhos de seu pai - não de forma biológica, mas, pela lei. Seu marido seria apenas um familiar, mas não o progenitor legal. Assim sendo, os filhos que Antígona, noiva de Hêmon, filho de Creonte, teria, seriam filhos de seu pai, Édipo, morto há muito tempo - e poderiam reassumir seu lugar no trono e na vida real de Tebas.

Isso faz com que Antígona tenha um papel angustiante dentro daquela família - se fosse uma noiva comum, seu pai, pela lei, seria agora Creonte, e ela teria de obedecer a Hêmon. Os ritos fúnebres de sua família de criação não estariam mais sob sua responsabilidade, já que dela seria esperado apenas que gerasse filhos bons e obedientes a Hêmon, para que a linhagem do noivo pudesse perdurar. Mas não é isso o que acontece.

Como epikler, cabe a ela tomar as rédeas da honra de sua família em mãos - e purificar a alma de Polinices, para que ele possa ir ao Hades e descansar. Por isso, Antígona era considerada andrógina - e heroica. Uma mulher com atitudes de homem. Uma mulher que representava sua família, em cujo ventre carregava a possibilidade da linhagem de seu pai e do futuro de Tebas. Ela enxergava sua missão como sagrada, portanto - todos os seus mortos olhavam para ela esperando pelo retorno da honra à sua estirpe. Nesse sentido, ela também cumpre os desígnios dos deuses - os deuses familiares, os deuses do submundo, os deuses da lei eterna, maior e mais duradoura do que a lei humana poderia dizer.

"CREONTE: E tu, responde-me rápido e sem delongas,
sabias do interdito que fiz proclamar?

ANTÍGONA: É claro que sim. Por acaso era secreto?

CREONTE: E tiveste a ousadia de infringir a lei?

ANTÍGONA: Tive, pois não foi Zeus que a proclamou e nem
a justiça que mora co'os deuses lá debaixo,
que fixaram aos homens as perenes leis.
Não pensei que teus decretos fossem tão fortes
a ponto que um mortal pudesse transgredir
as inescritas e indeléveis leis divinas.
Elas não são de hoje, nem de ontem, são eternas.
E ninguém nunca soube de onde elas vieram.
Crês que, por temer um homem, eu as violaria,
sob a pena de expor-me à justiça divina?"

Embora Antígona tivesse o direito de epiclerado para continuar a linhagem real de seu pai, ela sabia muito bem que não o usaria. A peça ocorre em formato de argumentação a respeito do caso do enterro de Polinices e da transgressão de Antígona - e a protagonista, falando com sua irmã, lhe diz claramente que sabe que não sobreviverá - pois é honroso morrer junto de Polinices e limpar a mácula da honra familiar. Além disso, ela tem consciência de que sua existência será mais longa tentando agradar aos deuses lá de baixo do que aos de cima - atestando, assim, a crença não apenas na sobrevivência da alma, mas também na santidade de seus atos, tendo sido inspirados pelo direito divino. Biologicamente sua estirpe poderia ser eliminada, mas, espiritualmente, não. E isto é o que importa para Antígona.

Antígona, por Frederic Leighton (1882)

Enquanto Creonte professa seu direito divino de governar e fazer leis de acordo com Zeus, Antígona afirma o sagrado em sua desobediência ao rei de Tebas de acordo com as leis dos deuses ínferos, ou seja, de Hades. É interessante notar que isso nos leva a perceber a diferença contrastante entre Antígona e Creonte: o rei preocupa-se com a vida aqui, com os direitos dos vivos, com o que os homens viventes pensariam e como agiriam, ao passo que Antígona preocupa-se com a vida lá, no além, passados os portões da morte, a vida depois da vida, esta, que é mais duradoura do que as sombras do nascimento.

"ANTÍGONA: Coragem, tu estás viva! Mas eu, já faz tempo
que sou uma alma morta a serviço dos mortos."

Nós, leitores do século XXI, e leitores criados numa cultura milenar da cristandade, temos dificuldade para entender o ponto de vista grego clássico. Temos dificuldade para entender que para os gregos daquela época, a história de Antígona não era somente ficção, mas a representação da tragédia de uma família real - os Labdácidas - que, há muito tempo, tiveram sua estirpe desgraçada por maldições e pelo destino.

Também não entendemos o relacionamento dos gregos antigos com os deuses. O que torna um deus divino, para os gregos, é sua qualidade de completude: ele é o que é, não existem sombras de dúvidas, complexidades humanas ou incertezas neles. Suas atitudes são completas - se amam, o fazem com tudo o que são; se odeiam, todos conhecem aquele ódio. Não há meias-verdades nos deuses. Mas nos humanos, sim.

A quem Antígona serve? O que lhe é sagrado? Como mulher na Grécia antiga, sua vida era rodeada de rituais e crenças em deuses. Suas ações evocam algo de sagrado - o direito divino acima do direito dos homens.

O homem não é completo, exceto quando se torna trágico. Na tragédia, ele vivencia profundamente todas as facetas, chegando aos limites do amor, do ódio, da tristeza - tornando-se, portanto, sagrado, e tocando o divino. É por isso que não existe possibilidade de vida na tragédia - a tragédia marca a fronteira com a morte, pois o que poderia haver de humano em uma vida tocada pelos limites divinos? O sagrado não permite sombras.

Se “a tragédia é a história de um homem crescendo dentro de sua máscara mortuária”, podemos entender perfeitamente por que Antígona diz que está fadada à morte: seus irmãos, tocados por Dioniso, mataram-se num acesso de fúria completa. Ao decidir honrar o irmão tido como traidor por Creonte, Antígona sabe que aquele é seu destino, e que o destino, cumprido ao todo, só pode levar à morte. O destino de todos os homens é a morte - e somente na morte podemos ter a completude divina. O amor de Antígona pelo irmão, a devoção a Hades e o sangue de Édipo a fazem trágica - mas bela, reconhecida por sua bravura, sagrada em seu ato final. A completude para os deuses são os mitos - a completude para o homem, a morte. 


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Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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