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Ecologia e anticolonialismo em Floresta é o nome do mundo, de Ursula K. Le Guin

Os pequenos homenzinhos verdes que visualizamos em nossas mentes ao pensarmos em alienígenas são, na verdade, pequenos humanos, de apenas um metro de altura, cobertos de pelos esverdeados ou amarronzados, que habitam um distante planeta coberto por árvores chamado Athshe. Para quem é familiarizado com a obra de Ursula K. Le Guin, sabe-se que dentro do seu conjunto de obras nomeado como “Ciclo de Hainish” temos como cenário um universo que há milhões de anos foi colonizado pelos habitantes humanoides do planeta Hain, e que agora, no período em que se passa cada obra integrante desse ciclo, vemos as diversas variações evolutivas da humanidade que se deram em diferentes planetas a partir daquela primeira colonização. 

Em Floresta é o nome do mundo, publicado pela primeira vez em 1972 como parte de uma antologia, e mais tarde em 1976 no formato de livro, Ursula K. Le Guin nos apresenta aos athsheanos, esses pequenos humanos verdes de cultura pacífica que se adaptaram para viver em comunhão com uma natureza de, majoritariamente, florestas densas e cheias de vida. No recorte temporal da obra, tais humanoides precisam lidar com a ameaça dos alienígenas vindos de Terran (também conhecido como planeta Terra), que, após destruírem o ecossistema de seu próprio planeta, estão aqui para explorar as matérias-primas, principalmente madeira, escassas e muito valiosas para seu povo. 

Nessa novela, ganhadora do prêmio Hugo como “Melhor Novela” em 1973, existem dois temas principais muito interessantes. Primeiramente, é uma obra extremamente anticolonial. Vemos como referência direta não apenas a ambientação da história colonial do Ciclo de Hainish, mas também como premissa dessa novela em particular, na qual consiste na ideia desse grupo militarizado de pessoas que vêm de um lugar distante com o objetivo de iniciar a extração desenfreada de um valioso bem natural, e enquanto isso, se apodera das vidas indígenas locais, oprimindo-as, violentando-as e destruindo suas culturas. É possível ver uma relação entre o termo utilizado no livro pelos visitantes da Terra para se referir aos athsheanos, “creechies”, que é mencionado no texto como algo depreciativo, e a sonoridade do nome, “creek”, nomenclatura que é adotada pelos britânicos para se referir a um determinado grupo de indígenas da América do Norte que vivia perto de rios (creeks), cuja autonomeação seria, na verdade, "muscogees". Além disso, segundo o Urban Dictionary, “creechie” também é uma palavra para alguém que é extremamente irritante, que incomoda. 

A questão da linguagem como forma de apontar diferentes óticas é muito importante nessa obra, vemos isso já no seu título, e em termos utilizados pelos aliens como “yumanos”, uma óbvia corruptela da palavra “humano”, em que fica claro que a diferença linguística emprega também uma visão de mundo diferente, já que mesmo que sejam todos humanoides, apenas os terráqueos são “yumanos”. Outra relação possível entre a dinâmica de terráqueos e athsheanos e outras experiências coloniais é a imposição da cultura do opressor ao oprimido, mostrada, por exemplo, na imposição de um horário de trabalho baseado no ciclo circadiano dos humanos da Terra aos humanos de Athshe, apesar de ser dito que os pequenos homens verdes funcionam com um ciclo diferente, tendo seus picos de atividade ao amanhecer ou ao entardecer. Essa diferença fazia com que os athsheanos, que já estavam sendo forçados a trabalhar para os madeireiros terráqueos, passassem como “preguiçosos”, um estereótipo que conhecemos bem da experiência entre indígenas da América do Sul e colonizadores portugueses. Há, inclusive, uma alegação de que os athsheanos seriam, na verdade, descendentes de macacos e, portanto, muito distantes e menos civilizados do que os habitantes da Terra, na tentativa de diminuí-los, considerando-os como uma “subespécie”, apesar de surgir claramente no enredo o fato de que houveram diversas pesquisas acerca da biologia dos habitantes de Athshe que os provassem como descendentes dos mesmos humanos hainianos de quem descendem os da Terra. 

Vemos então que a relação colonial, que se dá a partir da invalidação, da violentação, da animalização, da imposição de marcas de civilização do colonizador ao colonizado, é uma relação que pode ser encontrada claramente na obra de Le Guin. Sendo a escritora filha de um casal de antropólogos, sabe-se que muitos aspectos de suas obras de ficção especulativa possuem um viés antropológico e preocupado com a descrição de relações e sistemas sociais em voga na sua época. Seria por conta disso que Le Guin estaria encaixada em uma vertente da ficção científica chamada "New Wave Sci-fi", que priorizou a utilização de ferramentas ficcionais baseadas nas ciências sociais.

Ursula K. Le Guin

Essa temática anticolonialista não é nova nem hoje e nem nos anos 1970, quando foi publicada a obra. Ainda assim, podemos ver a qualidade própria de clássicos e da ficção científica nessa história, que é trazer uma situação que atravessa os tempos e ainda se mantém pertinente mesmo anos depois de sua criação. A obra de Le Guin ainda é muito relevante na medida em que ainda hoje temos esse discurso colonial pairando sobre os comportamentos de nossa sociedade. Os noticiários ainda reportam exploração da terra e exploração das comunidades racializadas constantemente. Grupos como indígenas, afrodescendentes, mulheres, entre outros, são ainda hoje prejudicados, demonizados, violentados, explorados pelo sistema patriarcal capitalista em que estamos inseridos. A exploração espacial que visa o lucro de grandes empresas não é uma realidade paralela, futurista ou distante. A humanidade tem esse costume de se voltar para fora de si com ambição, como se estivesse nas estrelas a solução para nossos problemas. É possível enxergar, no entanto, que explorar o espaço pode se tornar tão destrutivo e violento quanto foram os processos de colonização que tivemos bem aqui na Terra durante os séculos XV e XVI, cujas consequências muitos sofrem até hoje. Ao escrever ficção especulativa, Ursula K. Le Guin nos aponta para uma solução no espaço que reflete o nosso próprio mundo antes do problema. Le Guin descreve uma possibilidade em um universo alternativo, mas, ao fazê-lo, cria uma ligação direta com o passado sangrento de nossas nações.

Da mesma forma que outros humanos são facilmente transformados em um Outro, diferente, distante e menosprezado, dentro dessa relação colonial, é possível perceber que a natureza também sofre um processo similar de desvalorização. Outro tema, portanto, que poderíamos dizer ser central na obra é a preocupação com a destruição massiva de ecossistemas em ordem de obter lucro. Vemos nesse livro a conexão profunda e espiritual, talvez simbiótica, entre esses pequenos aliens verdes e as árvores que cobrem seu planeta. Tal relação é quase uma mimetização da ideia de que florestas são capazes de se comportar como um único superorganismo, isso ocorrendo através de diversas dinâmicas e interações entre espécies vegetais ali presentes. Os athsheanos integram esse grande organismo de Athshe. Desmatar essa terra, portanto, significa acabar com a cultura e o meio de vida de seus habitantes, que estão em completa harmonia e equilíbrio com a natureza do local. 

Uma crença corrente que temos hoje é que é necessário reestabelecer esse tipo de conexão profunda entre humano e natureza para que se haja a preocupação com promover a preservação do meio ambiente. Essa é uma relação que já foi registrada na literatura diversas vezes, a ideia de entender o humano como apenas parte de um grande ecossistema. Ao mesmo tempo, é também realidade o fato de que as destruições ambientais não atingem a todos da mesma maneira. As comunidades racializadas estão cada vez mais vulneráveis, dentro do sistema em que habitamos, a sofrerem as consequências da poluição, do desmatamento, da apropriação de terras, muito antes do que outros grupos sociais. A obra de Le Guin faz uso de mecanismos da ficção científica para apontar questões que ainda hoje continuam precisando ser apontadas. Floresta é o nome do mundo relembra que a exploração capitalista nunca é pacífica e sempre envolve invasão, opressão e destruição, e por isso mesmo existe a necessidade de resistir, ainda que a resistência não seja fácil. Assim como Floresta é Athshe e são seus habitantes, e sem ela, não há planeta, nosso planeta e seus habitantes não poderão se sustentar sem que se preserve a nossa Terra.

"Ele também passou a gostar dos nomes que os athsheanos davam a seus territórios e locais, [...] acima de tudo, Atshe, que significava Floresta e Mundo. Assim como Terra, ou Terran, significava tanto solo como planeta."

(Ursula K. Le Guin)

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