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As Pequenas Margaridas: o mundo caótico de Věra Chytilová


Em seu ensaio A borboleta, Emily Brontë escreveu que

A natureza é um quebra-cabeça inexplicável; ela existe num princípio de destruição. Todo ser vivo deve ser o incansável instrumento de morte para outros, ou ele mesmo deverá deixar de existir.

Reassistir As pequenas margaridas, filme de Věra Chytilová lançado em 1966, me fez pensar nesse trecho. Embora muito divertido, o filme possui uma atmosfera latente de morte e caos. O princípio de destruição, tão comum na natureza, se faz presente nas personagens, Marie #1 e Marie #2 (Jitka Cerhová e Ivana Karbanová). O objetivo das jovens é o caos. "Se o mundo está depravado, vamos ser depravadas também!" A partir do conceito de depravação de meados dos anos 1960 é que acompanhamos a vida dessas jovens, que saem comendo e destruindo coisas, sem se importar com nada além de seus próprios desejos. 

Mas o grande ponto de Chytilová é mostrar como as Maries são julgadas, seja pela sociedade, seja pelo próprio olhar cinematográfico, por serem perversas e caóticas enquanto o mundo, com toda sua destruição, é tido como algo muito sério e respeitável. O filme já inicia intercalando imagens de bombardeios, de guerras. É a Europa dos anos 1960, afinal de contas - lembrando que a Primavera de Praga aconteceu em 1968, pouco tempo depois de lançada a obra. Se o mundo é caótico, por que não somos caóticas também? Por que não nos ajustamos à ordem das coisas? São questionamentos que permeiam a narrativa e as próprias personagens, que em momentos em que parecem recuperar a "razão", logo lembram uma a outra que concordaram em ser depravadas. 

Ocorre frequentemente no cinema que a interpretação de um filme diga mais sobre quem o assistiu do que sobre a obra. É normal que projetemos nossos anseios, dúvidas e visões de mundo na arte. E As pequenas margaridas permite que isso seja feito amplamente, já que trata-se de um filme passível de múltiplos significados. As Maries são más? O filme é uma crítica ao mundo ou a elas? A própria diretora deu entrevistas controversas a respeito de seu trabalho. 

Numa análise contemporânea, o filme é muito sobre ser uma jovem mulher num mundo colapsando. Nada faz sentido e você não existe, não é vista, exceto se fizer algo chocante - porque a regulação de normas, que se aplica a todos, é mais dura para mulheres. Vestindo flores e saltos, as protagonistas comem de forma glutônica, destroem tudo o que encontram e questionam as declarações de amor recebidas. Se nada faz sentido, por que dizer "eu te amo" ao invés de "ovo"? É um niilismo atuante, uma resposta a um mundo onde nada acontece, tudo está estagnado pela guerra, a fome, homens que a tudo controlam e políticas devastadoras. Numa entrevista de 1967, Chytilová disse: 

"Nós ainda estamos vivendo como convidadas em um mundo de homens."


Em certos aspectos, As pequenas margaridas lembra outra obra tcheca: A brincadeira, de Milan Kundera (que, inclusive, virou filme, dirigido por Jaromil Jireš em 1969). Lançado um ano depois do filme de Chytilová, o livro de Kundera fala sobre um jovem estudante que envia um postal fazendo, como diz o próprio título, uma brincadeira. "O otimismo é o ópio do gênero humano! O espírito sadio fede a imbecilidade! Viva Trótski!", é o que diz no bilhete. Isso não é bem visto pelo Partido Comunista, que o condena a anos de prisão e trabalhos forçados. Mas enquanto o jovem de A brincadeira logo perde seu humor, as duas protagonistas do filme não dão a mínima para o que lhes vai acontecer. E a obra é categórica quanto a isso: fizessem elas tudo direitinho, fossem boas e trabalhadoras, o final seria o mesmo. Boas ou más, todo mundo morre num mundo governado pelo caos. 

É preciso lembrar que a década de 1960, no cinema, abrigou o movimento vanguardista, e a obra de Chytilová é da vanguarda tcheca. Ter isso em mente nos ajuda a entender a liberdade criativa do filme, que está longe de ser tradicional, com uma montagem repleta de colagens e match cuts. A fotografia brinca com as cores, com filtros que mudam rapidamente no mesmo take. Tudo é feito de modo a nos passar a sensação de caos e beleza. As protagonistas são jovens de beleza padrão, o que também nos faz olhar para além, pois embora sejam seus corpos "perfeitos" que estejam ali, elas não se enquadram - e quando chamam a atenção é com claras intenções sexuais de homens que lhes observam. Mas ninguém se importa com quem elas realmente são para além de corpos jovens de mulheres bonitas. 


A New Wave Tcheca, como ficaram conhecidos os filmes dessa época, irmãos de As pequenas margaridas, tinha como mote "fazer com que os tchecos tornem-se coletivamente cientes de que eles são participantes em um sistema de opressão e incompetência que os brutalizou". Com irreverência e muitas vezes surrealismo, diretores e roteiristas embarcaram num conceito político e estético que não sabiam se não seria duramente reprimido. 

O filme foi censurado na República Tcheca - oficialmente pela luxúria no desperdício de alimentos, mas também foi mencionado pelo comitê de censura que eles não aceitariam exibir algo que rebaixasse a imagem da mulher tcheca. Anos mais tarde, a diretora escreveu uma carta ao Partido Comunista dizendo que o filme é, na verdade, uma crítica ao comportamento volúvel e mau das protagonistas - mas isso mais parece uma desculpa ensaiada para que ela pudesse trabalhar em paz do que uma verdade em si mesma. Afinal, ser artista em tempos de censura é sempre um desafio e cada um faz o que pode. Chytilová, pela censura, ficou anos sem poder trabalhar, percebendo-se silenciada por ousar mostrar um mundo de jovens mulheres que não se conformam com a existência de marionetes e decidem viver elas mesmas o caos que os homens lançam à terra sem consequências para suas reputações.  

Chytilová disse, em entrevista, que "se há algo de que você não gosta, não se restrinja às regras - quebre-as. Eu sou uma inimiga da estupidez e do pensamento simplório em ambos homens e mulheres, e tirei esses traços da minha vida". Se o mundo está um caos, seja um caos também - e não peça desculpas por isso. 

Referências 



Arte em destaque: Mia Sodré

Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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