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O Ciclo de Lésbia de Catulo: uma poética sobre o romance amoroso entre Catulo e Lésbia


Caio Valério Catulo nasceu em Verona, uma cidadezinha da Gália Cisalpina e, provavelmente, morreu em Roma. A cronologia de sua vida que considera os anos entre 84–54 a.C. é a mais provável. Devia pertencer a uma rica família da nobreza provincial, talvez oriunda da família Valeria romana, pois seu pai possuía uma vila na península de Sírmio, e tinha relações de amizade e de hospitalidade com Júlio César. Popularmente conhecido como Catulo, o poeta veronez teve extensas e formoseadas publicações poético-artísticas datadas na antiguidade romana; dentre elas podemos citar o conjunto de poesias direcionados a Lésbia. Dizem as más línguas que, simultaneamente adolescente e maduro, Catulo amou a Clódia (sua Lésbia), uma mulher de família tradicional, com quem viveu encontros amorosos e a quem dedicou uma série de poemas de amor, mas também de escárnio, zombaria e de baixaria. Porém devemos nos atentar que esta é uma narrativa dita como conturbada pela academia científica, pois, sem quaisquer tessituras comprovatórias, torna-se uma diretriz discursiva errônea e confusa.

O que podemos assegurar é que os poemas do chamado “Ciclo de Lésbia" compreendem um conjunto de pouco mais de vinte composições que, em verdade, se reduz a precisamente treze, se não levarmos em conta aqueles em que o nome Lésbia não é mencionado. Sendo considerado uma reelaboração dos temas gregos expostos na antologia grega, com um certo alumbramento advindo da lírica poética de Safo de Lesbos, esses poemas do “Ciclo de Lésbia” são recobertos por venustas, isto é, de um âmbito sedutor com características abstratas relacionadas à deusa Vênus, além de terem um excesso de cor, lirismo fácil e dançante; o ciclo também é reconhecido por muitos por seu ímpeto de espontaneidade e violência de sentimento romântico colérico. Poder-se-ia, pois, indagar qual o interesse em centrar a atenção numa parte tão pequena dos centos e dezesseis poemas de Catulo.

Primeiramente, os elementos populares em contraste com o helenismo exacerbado são fatos preponderantes na poesia de Catulo, sobretudo às do “Ciclo de Lésbia”. Catulo representa do ponto de vista da linguagem, e como personalidade literária, curiosa contradição. Em um lado, é o homem da Província, dono de um vocabulário vulgar e, por vezes, grosseiro; de um outro lado, é o elegante da Urbs, que frequenta os salões em que se cultivam as requintadas obras de arte, em que se aperfeiçoa o “bom-tom", linguagem mais erudita, com o uso das mitologias clássicas greco-romanas. Às explosões de ódio e de amor, que tanto o aproximam das almas simples e rudes, seguem-se nele as manifestações de fino gosto literário, próprias do poeta que frequenta os cenáculos da nobreza em que se odeia o vulgo e também os cortejadores da plebe. Portanto, essa característica de Catulo oferece-nos um excelente corpus para a discussão e análise de alguns poemas do ciclo que analisaremos nesta exposição, pois, nas poesias amorosas de Catulo, há um vivaz ornamento, com imagens mitológicas, porém, com processos de expressividade nitidamente populares. Em melhores palavras, iremos nos deparar com uma poesia apresentando elementos de imitação grega, aflorando uma apurada cultura helenística, pelo seu conteúdo mitológico e pela sua forma rítmica que chega a ser torturada, por vezes, em sua expressiva paixão.

Quanto ao segundo ponto, uma observação inicial estimula-nos à análise: a comuníssima primorosa escolha de um mito e estilística pelo poeta a fim de revestir o leitor na temática principal do poema. Gustave Michaut, há quase um século, observava que ao ler Catulo “alegrava-nos por encontrar não o autor, mas o homem"; Leoni afirma que um dos segredos da arte poética de Catulo é o excesso de espontaneidade e musicalidade. Afirmamos, portanto, que de fato há em Catulo recursos estilísticos capazes de transbordar pertinências sentimentalistas para o leitor acerca do tema tratado no carmina; dessa forma, trataremos de apontar, no fazer poético de Catulo, os elementos que reforçam a expressão de emoções e sentimentos, mimetizando, na linguagem, a sua intensidade; recursos esses que são capazes de transbordar espontaneidade e musicalidade para o leitor.

Neste artigo, portanto, iremos fazer inicialmente uma breve análise mitológica, temática amorosa e estilística sobre os camina II e III do ciclo, nos quais, em um, presenciaremos o poeta contemplar a amada a brincar inocentemente com seu pardal de estimação, e em outro, veremos uma lamentação fúnebre sobre a morte do pardal de Lésbia. Em seguida, demarcaremos a poesia em que Catulo recria uma obra artística de Safo de Lesbos. No final, arrolaremos uma pequena ontologia do ciclo.

Em uma primeira análise, vejamos como desenrola-se o poema II do ciclo do poeta, a fim de marcarmos os seus traços preponderantes:

“Pássaro, delícias de minha amiga (ou, menina) –
Com quem brincar e ter colo, a quem
no ataque dar a ponta dos dedinhos
e acres dentadas incitar costuma
quando lhe apraz ao meu desejo ardente
um capricho, um gracejo preparar,
não sei qual, um consolo à sua dor,
creio, para acalmar o ardor assim –
ah poder eu também brincar contigo
e tristes aflições tirar do peito
é tão bom pra mim quanto à menina
veloz se diz que foi a maçã de ouro
que o cinto atado há muito enfim soltou.”

Nota-se que, como já citado, contemplamos o poeta observando a amada a brincar inocentemente com seu pardal; percebemos também que o poeta expressa o desejo de brincar de igual forma a fim de aliviar as dores do coração. Ao que nos consta, ninguém, dentre os vários críticos da obra de Catulo, duvida de que o poeta tenha Lésbia em mente nessa composição. Há no poema original (em latim), no primeiro verso, alusão a meae puellae (“minha menina”). Ora, em outros carmina, comparece a mesma expressão; tal poema, em tom apaixonado e rude, com aquela ambiguidade de sentimentos que caracterizam o amor por Lésbia.

Lésbia e seu pássaro, por Edward Poynter (1907)

Perceba ainda que, o ritmo é muito bem marcado, dando musicalidade ao poema, tanto na tradução, quanto no original, pois há uma repetição do “ae" no primeiro verso do original: “Passer, deliciae meae puellae” (“Pássaro, delicias de minha menina”, II, verso 1); essa sílaba (“ae") está posta no fim das palavras, porém, ela possui uma funcionalidade central no metro, dando início a ele, sendo ela a primeira sílaba do conjunto interno do verso. Com tal artimanha espontânea e natural, Catulo nos leva a uma musicalidade quase inebriante.

E finalmente, ainda há no poema a riqueza da esfera significativa. Apercebemos que há na poesia uma espécie de celebração ao pássaro de Lésbia, e o poeta mostra isso, utilizando-se de elementos tradicionais da poesia grega para o bom êxito desse feito (pela sua forma rítmica e o seu conteúdo mitológico). Observamos que primeiro ele celebra o pássaro, e em seguida, o poeta faz uma espécie de epitáfio do pássaro — este carmina é um bom exemplo para ilustrar a influência grega em Catulo, pois, o poema é, de certo modo, mais unitário, não há nenhuma reviravolta no desenrolar dos versos, sendo apenas uma descrição das brincadeiras da menina com o pássaro; possui um recorte reflexivo mais sentimental. O poema termina com uma imagem mitológica, a Atalanta (verso 11), que na mitologia recusava a casar-se e, sendo veloz, desafiava à corrida os pretendentes, vencendo sempre, menos Hipômenes, que a conquistou lançando-lhe aos pés de uma maçã de ouro (verso 12). A maçã é o fruto de Afrodite/Vênus, que foi desafiada pela virgindade da heroína (Atalanta). No verso 13, Catulo se refere ao cinto, uma faixa presa à cintura das virgens e solta pelo marido no leito nupcial — veja o excesso de elisões neste verso, como se as palavras estivessem interligadas, quase mimético à função de um cinto. Em síntese, notamos esse constante diálogo do poeta com o helenismo e a ontologia grega, trazendo-nos o requinte, ao mesmo tempo que os elementos populares de repetição e ritmo da poesia, que já foram salientados, refletem o poder ardoroso sobre a tessitura do verso por parte de Catulo.

Assim como o poema II, podemos notar que o poema III também comporta esse mesmo jogo do requinte mitológico e o popular sentimental, do mesmo modo que foi exposto anteriormente; como também faz-se presentes traços temáticos e estilísticos muito semelhantes. Vejamos:

“Podeis chorar, ó Vênus, ó Cupidos,
e quantos homens mais sensíveis vivam:
morreu o pássaro de minha amiga,
o pássaro, delícias da menina,
que bem mais que seus olhos ela amava,
pois era mel e tanto a conhecia
quanto a filha conhece a própria mãe
e de seu colo nunca se movia
mas saltitando em torno aqui e ali
somente a ela sempre pipiava.
Agora vai por via escura lá
De onde, dizem, ninguém voltou jamais.
Ah! malditas, vós, trevas más do Orco
que devorais as belas coisas todas:
um pássaro tão belo me roubastes.
Ah, que maldade! Ah, pobre passarinho!
Por tua culpa os olhinhos dela estão
vermelhos e inchadinhos de chorar.”

Está bem claro que o poema explicitado trata-se da lamentação fúnebre (bem característico da tradição poética grega) sobre a morte do pardal de Lésbia. Este poema recebeu na Renascença o título de Fletus passeris Lesbiae (“O grito do pardal de Lésbia”, do latim). No verso 7, aparece o nominativo puella (“menina”), sem possessivo, que se considera alusão a uma criança qualquer, e não referência a Lésbia. Esta, provavelmente, aparece na expressão meae puellae (“minha menina”), repetida três vezes (versos 3, 4 e 17).

Acerca da repetição de meae puellae, sendo claramente um caso de intensificação do vocabulário, celebrando a própria puella (ao mesmo tempo que retrata a fúnebre morte do pássaro), e retomando o poema II; como já visto, essa expressão repete-se três vezes, sendo, muito possivelmente, um processo de ampliação e alongamento do sofrimento de Lésbia sentido emocionalmente pelo poeta. Catulo derrama-se e pinga-se em ver a tristeza de sua Lésbia.

Temos também diminutivos exprimidos no desenrolar do poema. Em todos os idiomas populares, e d'um modo especial, entre os romanos, há um “gosto determinado pelos diminutivos”, podendo desempenhar na fala do cotidiano e na literatura diferentes funções. Em Catulo, os diminutivos aparecem com prodigalidade surpreendente, podendo os diminutivos catulianos serem classificados como: afetivos, satirizantes ou artísticos. Vemos que no caso do poema III, há um diminutivo como adjetivo no verso 16 do original, expressando, talvez, afetividade: miselle passer (“o pássaro de Lésbia”/ “misellus"/”pobrezinho").

Ainda mais, percebemos uma descrição clara do cotidiano, apresentando, logo em seguida, uma referência mitológica. Vemos que existe no poema uma imagem quase simplória da puella brincando com o passarinho, assim como no poema II analisado, e depois isso é quebrado levando-nos a uma passagem mitológica e erudita da imagem do Orco (na mitologia romana, era o deus do submundo, punidor daqueles que quebravam juramentos; da mesma forma que acontecia na mitologia grega com Hades, o nome do deus também foi usado para o próprio submundo), caracterizado por uma escolha de expressões representantes do fúnebre e das trevas. Então, perceba que temos dois planos no poema, em um plano há uma retomada do poema anterior e uma ambientação diurna (verso 4 ao 9), e no outro (a partir do verso 9) o diurno é substituído por trevas (tendo em vista da última palavra do verso ser sempre enfática, perceba que no verso 11, tanto no original quanto na tradução há uma ênfase à escuridão, com o uso de termos que denotam essa ideia, na última posição do verso), dando-nos uma noção de reforço/comentário de caráter mitológico da morte que já foi anunciada nos quatro primeiros versos. Então concluímos que, neste carmina, há uma dicotomia sofisticada, pois, o poeta celebra uma imagem do cotidiano, da puella brincando com o seu pardal, e ao mesmo tempo, faz-se o uso de elementos helenísticos e refinados, como a retomada do mitológico Orco.

Afresco encontrado em Pompeia

Vejamos agora, a semelhança temática do poema LI de Catulo e do poema II de Safo de Lesbos.

LI

Ele me parece semelhante a um deus,
Ele, se não é sacrilégio dizer, supera os deuses,
O homem que, sentado diante de ti, muitas vezes contempla-te e ouve-te

Sorrindo docemente, o que arrebata a mim, infeliz,
Todos os sentidos, pois assim que te
Vejo, Lésbia, nem um fio de voz
Resta em minha boca,

A língua, porém, se paralisa; uma chama sutil
Se espalha pelos membros; com ruído interno
Tintinam os ouvidos, os olhos se cobrem
Com dupla noite.

O ócio, Catulo, te faz mal;
No ócio te exaltas e te excitas demasiadamente.
O ócio, outrora, a reis e prósperas
Cidades levou à ruína.”

II

Parece-me ser igual dos deuses
Aquele homem que, à tua frente
Sentado, tua voz deliciosa, de perto,
Escuta, inclinando o rosto,
-
E teu riso luminoso que acorda desejos – ah! Eu juro,
O coração no peito estremece de pavor,
No instante em que te vejo: dizer não posso mais
Uma só palavra;
-
A língua se dilacera;
Escorre-me sob a pele uma chama furtiva;
Os olhos não vêem, os ouvidos
Zumbem;
-
Um frio suor me recobre, um frêmito do corpo
Se apodera, mais verde do que as ervas eu fico;
Que estou a um passo da morte,
Parece”

Vemos que tanto o poema LI de Catulo quanto o poema II de Safo retratam os sintomas da paixão e do ciúme, visto que, em ambos, o eu-lírico contempla o ser amado conversar com outra pessoa. Catulo e Safo tratam do abalamento da alma através dos membros, do fremer dos suores e do mais alto tom da palidez, efeito comum do Cupido, filho de Vênus e atirador de flechas nato, que assombra o humano mortal com o colérico amor.

É interessante observar também que Catulo se lança uma advertência, relembrando o poder destrutivo do ócio: a ruína de reis e nações. A associação entre a inatividade e a decadência era quase uma ideia clichê romana.

Por fim, fiquemos com uma pequena ontologia do “Ciclo de Lésbia” catuliano:

1. “V

Vivamos, minha Lésbia, e amemos,
E às censuras desses velhos tão severos,
Todos valham para nós um só centavo.
Os sóis podem morrer e renascer;
Nós, uma vez que morre nossa breve luz,
Devemos dormir uma só noite eterna.
Dá-me mil beijos, depois cem,
Então mil outros, então outros cem,
Depois, sem parar, outros mil, depois cem.
Então, quando somarmos muitos milhares,
Misturaremos todos, para não sabermos
Ou para que nenhum invejoso possa pôr mau-olhado,
Ao saber quantos foram os beijos.”

2. “LXXXV

Odeio e amo, talvez perguntes por que faço isto.
Não sei, mas sinto que acontece e me torturo.”

3. “LXXXVI

Quíntia é, para muitos, formosa; para mim, é branca, alta,
Bem-feita. Estas qualidades, uma a uma, eu mesmo admito,
Nego que no conjunto seja formosa; pois nenhuma graça há,
Nenhum grão de sal num corpo tão grande.
Lésbia é formosa, ela que, sendo inteiramente belíssima,
Surrupiou, então, a todas, de uma só vez, todos os encantos.”

4. “LXXXVII

Nenhuma mulher pode dizer-se tão amada
De verdade quanto, minha Lésbia, foste por mim amada.
Nenhuma lealdade foi, alguma vez, num compromisso, tanta
Quanta, no meu amor por ti, de minha parte se encontrou.”

5. “CVX

Tu me garantes, minha vida, que este nosso amor
Há de ser agradável e eterno entre nós.
Deuses poderosos, fazei que ela possa prometer de verdade
E o diga sinceramente e do fundo do coração,
Para que nos seja possível fazer perdurar, por toda a vida,
Este pacto eterno de uma sagrada amizade.”

Referências 




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Scarlett Belo
Estudante de letras da USP, professora e pesquisadora acadêmica. Minha natureza ardente contra os clássicos dita o cânone da minha experiência vital e diz que: sou uma perene enamorada de Odisseu, ópera, cinema, literatura, música, e de tudo capaz de comissionar a alma. Perante esse jogo, meus sentidos são aguçados e sinto o torpor doce das musas.

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