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Indiana Jones: o passado como uma aventura

Nem todo herói usa capa. Alguns usam um chicote, um chapéu, uma pistola, e… um livro de história. Em 1981, os cineastas George Lucas e Steven Spielberg — sendo o primeiro, produtor e roteirista, e o segundo, diretor do longa — apresentaram ao mundo um personagem um tanto diferente de todos os outros que já haviam feito. Todavia o filme era hollywoodiano ao extremo: o protagonista era interpretado por Harrison Ford, galã do momento, sua companheira era uma mulher belíssima e corajosa — aliás, há um interesse amoroso para cada um dos filmes — e as coisas mais maravilhosas e terríveis acontecem nessa aventura tomada por ação do começo ao fim. Só poderíamos estar nos referindo a ele, o arqueólogo mais famoso do cinema estadunidense: Indiana Jones. 

A trama do primeiro filme conta a busca de Indy pela lendária Arca Perdida, aquela que é conhecida por ter abrigado as tábuas dos Dez Mandamentos, enviadas por Deus, de acordo com o que é narrado no Antigo Testamento da Bíblia. O motivo da busca? O serviço secreto dos Estados Unidos o convoca para impedir que os nazistas encontrem a Arca, a qual acredita-se que poderá conceder um poder inimaginável a quem a detenha. Juntos, os elementos principais de Indiana Jones e os caçadores da arca perdida (Indiana Jones: The raiders of the lost ark) se organizam numa fórmula que se repetirá não somente nos próximos filmes da franquia, mas em inúmeras outras obras ao longo das décadas. Por exemplo, o filme A múmia (The mummy), de 1999, e a franquia de jogos Tomb Raider

Dentre os elementos mais importantes de Indiana Jones, é preciso citar, primeiramente, que não é um simples filme de ação. Para isso, é importante relembrar as principais mentes que deram origem aos filmes: George Lucas era conhecido por Star Wars, a franquia de sucesso estrondoso, iniciada em 1977 com Uma nova esperança (Star Wars: A new hope), também protagonizada por Harrison Ford. Já Spielberg lançou em 1975 o longa Tubarão (Jaws), e em 1977, o longa Contatos imediatos de terceiro grau (Close encounters of the third kind). Sobretudo essas três obras tornaram os nomes Lucas e Spielberg famosos. Sendo assim, eles começaram com histórias de ficção científica. 

Mas Indiana Jones não é uma ficção científica. Não há nenhuma nave espacial, um animal gigante, um cientista de jaleco. Não há nada que seja uma extensão muito imaginativa daquilo que se prevê nas ciências. Há, contudo, a história. Enquanto as ciências exatas e biológicas se perguntam sobre o futuro e outros mundos, Indiana Jones se volta para o passado e para civilizações que de fato existiram. É uma franquia que, embora não tente ser fiel à História, fez seu público se interessar por ela. E na verdade, os artefatos e manuscritos estudados por Indy são mais mágicos do que parecem, pois possuem o poder real de nos contar sobre pessoas que não existem mais, culturas escondidas debaixo das terras e lendas que se perderam nos lábios de anciãos. 

É possível, principalmente através dos três filmes iniciais da franquia, refletir de várias maneiras acerca do papel fundamental da História, e ao mesmo tempo, como a arte consegue transmitir a maravilhosidade dessa ciência. Afinal, é preciso ter um certo nível de imaginação para ser um pesquisador, porque todo estudo começa com uma pergunta, e as ideias que surgem a partir dela. Da mente criativa de Lucas e Spielberg surge um herói. Um herói que não busca riquezas para si. Um herói que busca preservar, por meio de objetos e documentos, o que é esta coisa chamada humanidade. Apesar disso, e talvez justamente por isso, ele é um personagem tão próximo de nós. Pois basta ir, por exemplo, a um museu, ou ler um bom livro, e seremos nós mesmos, de certa forma, um Indiana Jones. 

Ademais, há a clara marca registrada de Steven Spielberg em cada um dos filmes: a capacidade de transmitir ao público um mundo novo. Nesse mundo, o pôr do Sol do Cairo possui uma atmosfera quase mágica, e a música hipnotizante de John Williams faz um reencontro no deserto ser a coisa mais bela do mundo inteiro. 

A Arca Perdida: o imperialismo no cinema e na arqueologia

Todavia nem tudo é tão simples. Poucas coisas são quando se trata da narrativa do herói estadunidense (que sempre se denomina como simplesmente “americano”). No primeiro filme são feitas reflexões muito relevantes sobre o papel de Indy através do contraste entre ele e o arqueólogo francês René Belloq (Paul Freeman): enquanto Belloq rouba as antiguidades, Indiana apenas as caça. Qual seria a diferença? Quem decide aqueles que podem deter os objetos — os quais, vale lembrar, não possuem donos, pois são patrimônios da humanidade — e aqueles que os estão roubando? 

Uma resposta possível seria dizer que Indiana Jones é um professor, um pesquisador. Ele possui métodos e se importa de verdade com a ciência. Entretanto, isso não o impede de ser um ladrão. Alguns arqueólogos ao longo da história, e até os dias de hoje, roubaram os mais variados objetos de sítios arqueológicos. Algumas vezes para tê-los como conquista pessoal e objeto de pesquisas particulares; em outras situações, os objetos foram vendidos. Há o caso do arqueólogo Howard Carter, que roubou e contrabandeou objetos da tumba do faraó Tutancâmon dos anos 1920 aos anos 1940. Em 2010, o Museu Metropolitano de Arte de Nova York (The Metropolitan Museum of Art) devolveu diversos artefatos de seus acervos ao Egito, considerando que eles poderiam ser atribuídos à tumba de Tutancâmon. 

Além disso, no começo do filme, Indiana tenta roubar um ídolo de algum templo da América do Sul. Ele literalmente retira o ídolo do templo e foge com ele. Seu adversário, René Belloq, acaba roubando-o de volta, com o apoio dos indígenas locais. Indy, ao descobrir sobre a Arca da Aliança, se empolga em conseguir encontrar um objeto que se busca há milhares de anos. É claro que o desconhecido atrai qualquer cientista, das ciências humanas ou não. Fazer uma grande descoberta é um sonho para qualquer pesquisador. Entretanto, mesmo a ciência não está livre do imperialismo. Culturas indígenas, africanas e asiáticas foram saqueadas ao longo de séculos.

Por outro lado, Indiana é um herói, mesmo que fruto do nacionalismo estadunidense. E para tanto, devemos citar a diferença substancial entre os dois arqueólogos do filme. Enquanto Indiana Jones queria impedir que os nazistas encontrassem a Arca, René Belloq era, ele mesmo, um nazista. De fato, encontrar a Arca Perdida e a levar aos Estados Unidos, como se fosse essa a nação detentora de todas as escolhas da humanidade, não é a melhor coisa do mundo. Não há nada de heroico em reivindicar algo que não lhe pertence em nome de uma ciência imparcial. Mas por outro lado, há a extrema-direita alemã da década de 1940. 

Autoritarismo, ciência e arte

A presença dos nazistas em Indiana Jones envolve a questão de poder e fé. Fé e poder caminham juntos há séculos na humanidade. Ainda mais se tratando de símbolos especificamente religiosos. E falar sobre como o fascismo se apoderou desse recurso é delicado, pois envolve todas as atrocidades cometidas por essa ideologia. No primeiro filme de Indiana Jones podemos ver um aspecto da extrema-direita: não se trata, de fato, da fé em si, ou das religiões. No fim, trata-se de poder, e do controle das minorias através de suas táticas de dominação e genocídio. Não importava qual era o ritual feito para abrir a Arca, ou sequer se era a Arca citada na Bíblia. Só o que importava era o valor que isso tinha para conquistar mais, dominar mais. 

No terceiro filme da franquia, Indiana Jones e a última cruzada (Indiana Jones and the last crusade), a Alemanha fascista volta a ser assunto. E, tal como no primeiro filme, há uma busca por símbolos religiosos - dessa vez, pelo Santo Graal -, os quais, de acordo com um imaginário imperialista, dariam poder a quem os detivesse. Essa visão é imperialista pois, considerando o valor que é dado pelos que acreditam, não há, de fato, um poder que os mortais possam controlar. Portanto, no fim, os símbolos são para o controle de poder. Quem é idolatrado ainda é o führer e sua ideologia. Os artefatos são tomados e usados. A representação ainda é problemática, pois representa os artefatos segundo a lógica supersticiosa e exploradora cujos próprios vilões compartilham. Mas os fascistas sempre são os vilões, isso é deixado de maneira muito clara. Sua total violência contra a arte, a cultura e os grupos sociais minoritários fica evidente em cada um dos filmes. E eles sempre perdem no final. Mostrar isso é imprescindível.

E vale ressaltar que não é uma lógica infundada. Esses aspectos do nazismo são importantes para compreendê-lo. Os símbolos eram judeus, mas isso reforça a ideia de dominação do fascismo. Steven Spielberg, enquanto cineasta judeu, representa tal coisa em diversos filmes ao longo de sua carreira. Indiana Jones é mais do que um filme de aventura. Há uma essência reconhecivelmente política na história, o que a distingue dos filmes que a inspiraram. O próprio pai do personagem, o Dr. Henry Jones, é interpretado por Sean Connery, que viveu o agente secreto 007 no cinema. A ideia do homem bonito que salva seu país existe em Indiana Jones, mas sofre reformulações drásticas, e necessárias. Ao longo dos três filmes é possível ver isso com nitidez: Indy tenta fugir do legado do pai para criar o seu próprio, corrigindo os erros das gerações passadas. Isso não apenas pode ser visto no sentido familiar, mas como uma metáfora para a própria ciência e suas representações cinematográficas. 

Dessa forma, embora haja decisões questionáveis no roteiro, num sentido ideológico, os filmes de Indiana Jones conseguem abrir margem para discussões muito interessantes acerca do consumo de obras estadunidenses e o olhar que estas possuem sobre a cultura dos mais diversos povos. São filmes que derivam de uma lógica centrada nos Estados Unidos e no mundo europeu, mas que conseguem, no fim, ser um contraponto de si próprios. O sentimento da epicidade sobre o conhecimento histórico, antropológico e arqueológico reverbera por todos os filmes — em alguns mais do que em outros — demonstrando, à sua maneira, que a ciência e a arte podem mesmo revolucionar. 

Ciência e misticismo 

Um outro aspecto fundamental para compreender a figura de Indiana Jones e seu impacto no interesse geral para a História e a Arqueologia é pensar como Hollywood representa culturas asiáticas. Como Indy é um explorador, curioso por objetos raros e culturas distantes, é de se esperar que viajasse para algum pequeno país do leste asiático para estudar sua história. E como Indy é fruto de uma indústria imperialista, é de se esperar que a história resultante dessa pesquisa seja um tanto estigmatizada. 

Em Indiana Jones e o templo da perdição (Indiana Jones and the temple of doom), temos um vislumbre da faceta entusiasta das ciências ocultas de Jones. No primeiro filme, ele critica o folclore — como todo o conhecimento não-científico — como inimigo da ciência, mas, ao mesmo tempo, os agentes do serviço secreto o reconhecem como especialista de ciências ocultas. Ele busca a Arca Perdida por ser um objeto histórico, mas quando ela é aberta, ele se recusa a olhar. Ao longo de todos os filmes, as crenças populares, ou os credos religiosos, são todos desmerecidos, pois teoricamente se opõem à ciência do professor Indiana Jones. Mas em todos os filmes, afinal, as crenças tinham um embasamento. Desrespeitá-las, sim, é ignorância. 

No longa de 1989, sobre o Templo da Perdição, Indy se depara com crianças escravizadas, rituais de sacrifício humano, dentre outras coisas terríveis, em minas escondidas na Índia. Tudo muito estigmatizado. Os cultos realizados são representados como bárbaros e cruéis. Indiana Jones tem, mais do que nunca, o potencial de ser um típico herói estadunidense e ajudar a população local combatendo os homens maus. Ele, bem como seus dois amigos, a loira Willie Scott (Kate Capshaw) e o garotinho Short Round (Ke Huy Quan), são os tidos como civilizados — mesmo que o personagem Short Round ainda tenha muito dos estereótipos atribuídos a asiáticos. 

É muito interessante como os filmes, que se passam na década de 1940, representam uma visão histórica sobre o período em questão. E além disso, instigam a curiosidade sobre a sociedade e a cultura dos artefatos apresentados. Ou seja, como a crença em algo além desse plano acontece em todas as civilizações, é natural que os objetos que nos restam sobre elas se refiram a isso. E a antropologia, enquanto ciência, não pode ignorar tal coisa. Na verdade, o estudo das religiões e das crenças é fundamental na compreensão das sociedades passadas e atuais. O fato de Indiana Jones dialogar com essas questões não é somente para dar um toque de fantasia ao roteiro, mas porque é um meio de se refletir sobre a pesquisa nas humanidades e o papel do arqueólogo. 

Sendo assim, nos três filmes iniciais da franquia — a qual termina com a última cruzada — são representados problemas reais sobre o mundo da pesquisa no Ocidente. Como citado, a arqueologia nem sempre foi uma prática científica. Os “ladrões de tumbas” a que Indy se refere eram, e ainda são, muito frequentes. Mas como pode-se ver, através do próprio protagonista, arqueólogos são primeiramente pesquisadores e professores. Há uma frase-síntese no artigo Arqueologia e socialização do conhecimento: Indiana Jones, mostre‑nos o que sabes:

“A questão talvez não esteja em destruir a imagem da arqueologia veiculada pela mídia, muitas vezes fantasiosa, mas usá-la de modo crítico.”

É fundamental, portanto, representar: os roubos aos sítios arqueológicos, as roupas típicas da pesquisa de campo, o interesse nazista de se apoderar de símbolos e objetos históricos e artísticos, o conflito quase irresolúvel do misticismo e da ciência… Não é o mundo como ele é, tampouco mentiras absolutas, mas um reflexo enfeitado daquilo que o passado pode nos contar. E de todas as aventuras de Indiana Jones, essa é a maior. 

Referências




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