Na literatura, o feminino é primordialmente romântico, mas o romantismo é trágico, e assim reflete a realidade. O suicídio implica questões étnico-raciais, culturais, sociais, psicológicas, econômicas, religiosas, políticas etc., mas aqui, então, se desvenda o pilar do gênero como basal, sob influência dos demais fatores no contexto ocidental moderno à hodierna pós-modernidade, utilizando literatura clássica escrita por mulheres e suas biografias, e cabe generalizar que feminilidade articula-se com as nuances da dor e da morte (in)voluntária.
Na Antiguidade Clássica, Jocasta enforcou-se em seu tálamo no mito edipiano; Eurídice apunhalou-se no peito com uma espada diante da morte de seu filho. Os arquétipos de então condizem com a presente realidade: mãe, esposa, amante, virgem. Sob a perspectiva da escrita masculina, engendra-se um feminino entre o belo e o sofrimento, e, mais adiante, a beleza feminina no sofrimento, enquanto escritoras iam vomitando no papel aquilo que o mundo lhes forçava na garganta. E assim Florbela Espanca escreveu: “A minha dor é um convento ㅡ há lírios dum roxo macerado de martírios, tão belos como nunca os viu alguém. Nesse triste convento onde eu moro, noites e dias rezo, grito e choro. E ninguém ouve. Ninguém vê. Ninguém”.
Após o suicídio de Sylvia Plath em 11 de fevereiro de 1963, sua escrita, de um solipsismo parte do movimento de poesia confessional, foi o principal instrumento para dissecar sua vida, sua morte e a desintegração feminina. Seus diários, romance e poemas publicados relatam um histórico de depressão, tratamento de eletrochoque, rejeição, pretéritas tentativas de suicídio, solidão, anonimato, miséria. De uma mulher que, por fim, se suicidou, deitando a cabeça no interior de um forno com o gás ligado, tendo o cuidado de antes vedar a porta do quarto dos filhos e deixar leite e pão perto de suas camas. Um suicídio considerado autobiográfico após sua fama póstuma, que gerou críticas contra seu marido infiel e fez até mesmo a psicanálise cunhar o termo “Efeito Sylvia Plath”, um fenômeno que acomete pessoas excessivamente inteligentes e criativas, sendo então poetas mulheres mais suscetíveis a ter doenças mentais.
Sylvia Plath |
Em seu poema Lady Lazarus, Plath conta suas três tentativas de suicídio, a raiva que sentia pelos homens que a oprimiram e o que sobra de uma mulher postumamente:
“MorrerÉ uma arte, como tudo o maisNisso sou excepcional[...]Cinza, cinza —Você fuça e atiça.Carne, osso, não há mais nada ali —Barra de sabão,Anel de casamento,Obturação de ouro.[...]Saída das cinzasMe levanto com meu cabelo ruivoE devoro homens como ar”
Há quem diga que ela precisava da poesia para sua sanidade, mas precisava da insanidade para sua poesia. Segundo Lillian Crawford em texto para a BBC, “as obras de Plath representam jovens mulheres rebeldes, porém deprimidas, como é evidenciado pelas evocações de Sylvia Plath na cultura pop ㅡ Kat, na comédia romântica de 1999, 10 coisas que eu odeio em você, segura uma edição de A redoma de vidro, como faz Maeva na recente série da Netflix, Sex Education. Plath se tornou um símbolo cru da garota estranha que rejeita padrões convencionais de feminilidade para tomar sua vida e morte em suas próprias mãos”. Contudo, é de se questionar o véu sombrio que foi imposto à figura da autora pelo público. Não tendo seu trabalho reconhecido em vida, após sua morte é como se não reconhecessem, na verdade, a própria vida de Plath. Enquanto isso, a verdadeira Sylvia Plath permanece imortal e mítica aos ávidos leitores que tanto se acalentam com seu confessionalismo. Um livro fechado ao qual apenas se pode tentar decifrar a capa. De acordo com Pierre Nora, “fala-se tanto da memória porque ela não existe mais”.
A carta de suicídio deixada por Plath foi um simples bilhete que dizia “Por favor, chame Dr. Horder”, juntamente com o número de telefone do médico.
Em 28 de março de 1941, Virginia Woolf escreveu duas cartas e caminhou até o rio Ouse, onde suicidou-se, morrendo afogada.
Pesquisando brevemente sobre Woolf, encontra-se “curiosidades” acerca dela: Virginia era bipolar, estava na lista negra de Hitler, foi abusada sexualmente pelos irmãos adotivos, sofreu imensamente com a morte de seus pais e, como Plath, houve várias tentativas de suicídio. Se encontra uma infância feliz. Se encontra uma mulher que, apesar de se sentir mal instruída por não ter frequentado a universidade, como seus irmãos, se desenvolveu como escritora rodeada de conhecimento, até mesmo fazendo parte do Círculo de Bloomsbury, unida ao seu marido e intelectuais como E. M. Foster e Vita Sackville-West (com quem Virginia se relacionou, sendo Vita responsável por diversas passagens apaixonadas do diário de Woolf e por Orlando, romance woolfiano, ser considerado uma longa e bela carta de amor). Sob análise, sem derrelição do contexto, autora e obra são uma inscrição arterial de sua época.
Virginia Woolf |
Todavia enquanto o mundo revirava-se com fascismo e guerra, Virginia, além de afetada pelos fatores prévios, também revirava-se em autodestruição, e o fluxo de consciência em seus escritos são intrincados testemunhos de sua dor. Nos seus romances, Woolf retrata a vida cotidiana feminina, cheia de levezas e assombros, paixões sáficas e melancolia; inspirava-se no próprio dia a dia para escrever heroínas indo comprar flores ou caminhando pela praia, um estilo de escrita que vai numa cadência poética e singular do interior mais visceral da atormentada mente humana até o exterior que afeta cada indivíduo, denunciando, por exemplo, misoginia e patriarcado.
Em sua carta de despedida ao marido, Virginia Woolf escreveu:
“Meu querido, tenho certeza de que vou enlouquecer de novo. Não podemos passar por mais uma daquelas crises terríveis. E, dessa vez, não vou sarar. Começo a ouvir vozes e não consigo me concentrar. Por isso estou fazendo o que me parece a melhor coisa. Você me deu a maior felicidade possível. Você foi, sob todos os aspectos, tudo o que alguém poderia ser. Acho que não existiam duas pessoas mais felizes, antes de aparecer essa terrível doença. Não consigo mais lutar. Sei que estou estragando sua vida, que, sem mim, você poderia trabalhar. E eu sei que vai. Veja que nem consigo escrever direito. Não consigo ler. O que quero dizer é que devo a você toda a felicidade da minha vida. Você tem sido extremamente paciente comigo e incrivelmente bom para mim. Quero dizer que ㅡ todo mundo sabe disso. Se existisse alguém capaz de me salvar, seria você. Perdi tudo, menos a certeza da sua bondade. Não posso continuar estragando sua vida. Não creio que tenham existido duas pessoas mais felizes do que nós. V.”
Na noite de seu aniversário, em 8 de dezembro de 1930, a escritora Florbela Espanca pediu para não ser incomodada em seu quarto até o dia seguinte, onde foi encontrada morta na sua cama com dois frascos de Veronal vazios. A obra florbeliana é marcada por revolta, angústia, erotismo; poesia viva, narrativas de subversão que questionam a condição feminina.
Segundo Priscilla Freitas de Farias, Florbela Espanca “[...] viu uma geração de intelectuais se entregar à morte e, assim, como uma boa romântica, também deixou-se morrer de desgosto, de dor e de amor”, e, além disso, “experimentou a vida, viajando do céu ao inferno, se esquivando dos males, saltando penhascos; não só mudando de amor, de cidade, mas também mudando de personagens de acordo com a realidade que vivia, de acordo com as reconfigurações dos códigos na sociedade. Ela transbordou uma linguagem que encera a sua incompatibilidade com a vida, como meio de afirmação de uma inadaptação à própria realidade. Florbela construiu um lugar para si, onde pudesse viver todas suas angústias em todo o mal-estar do período que viveu, ela se fundia à própria imagem da morte, do luto e da dor. O solitário esforço de querer morrer foi documentado de várias formas nas diferentes frases de despedida, sobretudo, em seu Diário do Último Ano”.
Após uma sucessão de crises depressivas, fossem pelos matrimônios fracassados, a morte do irmão ou sua saúde frágil, além dos crescentes pessimismo e melancolia, Florbela, que vivia um não-viver, ou era vivida pela vida, frustrada e vazia, diagnosticada com “neurose”/”histeria” poucos anos antes de seu falecimento, já havia tentado suicídio duas vezes, sendo a terceira, então, fatal.
Ana Cristina Cesar, também um grande nome da literatura para emancipação feminina, brasileira, sensível, libertária, marginal, loura donzela, de família culta e protestante de classe média, poeta desde a tenra infância, morreu em 29 de outubro de 1983, atirando-se do sétimo andar numa janela do apartamento de seus pais. Em uma de suas cartas, o escritor e amigo Caio Fernando Abreu se questiona em meio a dor e raiva: “Com que direito, Deus, com que direito ela fez isso? Logo ela, que tinha uma arma para sobreviver ㅡ a literatura ㅡ coisa que pouca gente tem”. Ana C. escrevia sobre si, sobre o ser mulher, e era inteira e completamente poética.
Ana Cristina Cesar |
Ademais, Caio também relata intimamente sobre outra escritora enigmática que frisou-se por sua aura de “tristeza e santidade”, como se vê em sua última entrevista, em 1977, para a TV Cultura, ou nas cartas para a irmã, nas quais desabafa sobre estar cansada e perder a vivacidade, declarando que seus escritos não prestam ou não alteram em nada qualquer coisa. Clarice Lispector, dona de casa, judia, imigrante, introspectiva, as mãos queimadas num incêndio. Caio F., assim, escreve:
“Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de ‘meio doida’. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artraud. Ou Rimbaud.”
Escritoras e mulheres, sáficas, dândis, sobrepujando a miséria, intituladas de belas e de herméticas, misteriosas de não desvendar o mistério da vida e, sim, reafirmá-lo, que utilizam simbolismo e intimismo para expressar uma crise social, civilizacional e subjetiva; a literatura e o suicídio para transcender e escapar; o questionamento existencial e a obscenidade e o memento mori para sobreviver. O feminino ou a “mulher”, ao longo dos séculos até a atualidade pós-industrial, representa a ausência, criaturas de falta. Como escreve Hilda Hilst, “[...] tantos livros e nada no meu peito, tantas verdades e nenhuma em mim”, pois vê-se na literatura escritoras que batalham pelo pertencer e pela identidade, contra a efemeridade do tempo, em estado de saudosismo pelos tempos de alegria pueril. Chega a ser nietzscheano: a dor do saber. Ao traduzir as moléstias em técnica literária, ou diários e cartas que são solilóquios do declínio mental feminino, numa estética de viver em sepultura relatando cadáveres, autopsiando a psique, rompendo com normas gramaticais, estilística de espíritos cálidos e transgressores, estas escritoras legaram ao mundo suas vidas, e é doloroso perceber que isso apenas ocorreu postumamente. Aqui se assimila a antonímia entre memória e história.
No cinema, ademais, dispõe-se obras que também fazem trabalho parecido, como Vale das bonecas e Garota, interrompida, que abordam, como arte de verossimilhança, profundamente a feminilidade, suas inquietações e traumas, a decadência de uma mulher ante o mundo.
Concomitantemente delicadas e violentas, faz-se uma linha tênue entre o silêncio e a raiva, o pranto, a “loucura”. Segundo Flávia Regina Marquetti e Fernanda Cristina Marquetti, “No padrão de morte ocidental, temos o evento da morte como algo discreto, privado, íntimo, hospitalar, higienizado e controlado tecnicamente. O suicídio em si é uma forma de transgressão ao tabu da morte, pois desorganiza e rompe todo aparato que envolve a morte em nossa sociedade. O suicídio feminino marca uma dupla transgressão: à morte domesticada da modernidade e ao padrão de feminilidade”.
A morte é o sentido que utiliza-se para traduzir a vida. E o que é a morte atualmente? Como parte essencial da torrente de informações que o indivíduo recebe diariamente, muitas vezes acaba se tornando banal, hospitalizada, solitária. Numa sociedade de todos contra todos, resta ser vítima ou carrasco, e o suicídio pode ser um sintoma do sistema em que se vive, da existência marginalizada.
A dor não é visível e a melhora não é linear, mas, em casos de contemplações suicidas os espaços de escuta e acolhimento, primordialmente profissionais, não podem ser subestimados como uma forma de lidar com isso. Entende-se que o combate ao suicídio exige ação efetiva, e que, ao decorrer da história, mulheres como Sylvia Plath, sem diagnóstico e tratamento corretos, além do apoio basilar de políticas públicas, foram tolhidas de escolha sob estímulos externos ou internos. É preciso debater além da consumação do suicídio. Combate ao suicídio é inclusive combate ao patriarcado, à homofobia, ao racismo, ao capitalismo neoliberal e a qualquer hegemonia opressora, questão de saúde pública e pauta política essencial; e acima de tudo, luta coletiva. Educando a si mesmo sobre saúde mental utilizando a história e literatura do passado até a realidade do mundo contemporâneo, com esperança, há de haver maior compreensão dos outros e até do eu, com empatia e dedicação a dar o suporte necessário na vida de alguém (ou a receber o mesmo).
Por fim, cabe neste epitáfio ㅡ aos termos de Pierre Nora, “profundidade de uma época arrancada de sua profundidade” ou “luto manifesto da literatura” ㅡ de mulheres ofélicas e eternas, declarar que catalisar quaisquer hipóteses e explicações é labiríntico, quimérico e desonesto; história ou memória, ao indivíduo e sua individualização só resta sentir. Conclui-se com um trecho de Hilda Hilst em A obscena senhora D: “[...] e o que foi a vida? uma aventura obscena, de tão lúcida”.
Referências
- Sylvia Plath: Will the poet always be defined by her death? (Lillian Crawford)
- Entre memória e história: a problemática dos lugares (Pierre Nora)
- A dor de existir em Florbela Espanca (Maria Lúcia Dal Farra)
- A última carta de Virginia Woolf (IMS)
- A morte, tão ansiosamente desejada, procurou-a Florbela Espanca por suas próprias mãos: o suicídio, a modernidade e o saber médico em Portugal no início do século XX (Priscilla Freitas de Farias)
- Suicídio e feminilidades (Flávia Regina Marquetti, Fernanda Cristina Marquetti)
- A Obscena Senhora D (Hilda Hilst)
- Morangos Mofados (Caio Fernando Abreu)
- As impressões de Caio F. Abreu sobre Clarice Lispector contadas em carta para Hilda Hilst (Revista Prosa Verso e Arte)
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Gostei muito!
ResponderExcluirTexto incrível, Stéffani! Sua escrita é muito cativante e esse tema me deixa reflexiva. Sempre me pergunto como seria a vida dessas mulheres se vivessem hoje, com mais abertura para discutir saúde mental e apoio psicológico.
ResponderExcluirStéffani, seus textos são um arraso. Esse me arrasou como ler Clarice e Florbela. Não li as outras, talvez por medo de amar demais e me identificar. O memento mori me fez salivar de compreensão (sim, o sentimento foi este).
ResponderExcluirApesar de conhecer as obras das autoras mencionadas, não sabia sobre essa parte da vida de maioria delas.
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