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4 clássicos do cinema para quem ama música clássica

Querendo ou não, a ideia da música clássica como algo chato já está bastante enraizada na nossa sociedade. Essa ideia é um lugar-comum e, como todo bom lugar-comum, esconde um abismo de questões conflitantes por trás da aparência de simples opinião — gosto pessoal, desinteresse, preconceito e até uma dose legítima de verdade.

Música clássica pode parecer mesmo entediante. Afinal, trata-se de um mundo quase sem palavras (mais instrumental que cantado), sem uma batida marcante, que tende mais ao longo formato do que ao breve e que quase sempre exige paciência, ao invés de rápida assimilação. Não existem grandes festivais de lotar estádios ou mesmo baladas com música clássica — a balada de hoje era o salão de outrora. Muitos dos grandes ídolos do pop moderno estão bem vivos — e ainda bem! — ou viveram muito próximos de nós, há não muitas décadas, enquanto quem tem como ídolo um tal de Ludwig van Beethoven não conseguiria pegar um autógrafo dele nem se voltasse no tempo e tentasse trocar de lugar com os próprios avós.

Até que lembremos das árias marcantes de uma ópera como Carmen, de Georges Bizet, ou botemos para tocar o time de canhões que finalizam a Abertura 1812, de Piotr Ilitch Tchaikovsky, muitas águas já rolaram. Além disso, é preciso levar em conta o vínculo profundo entre música clássica e discurso elitista — na contramão disso, diversos projetos sociais atuam continuamente, buscando meios de aproximar o público em geral e a música clássica, além de procurar provar que esse tipo de música pode ser mais inclusivo e conectado à realidade cotidiana, ao invés de uma arte reservada a uns poucos.

Mas se a visão da música clássica como algo chato é bastante questionável, de uma coisa podemos ter relativa certeza — a vida dos compositores não foi nada chata. Uma das provas disso é a quantidade de filmes que é possível encontrar sobre esses artistas. Assassinatos, intrigas, paixões avassaladoras, romances duradouros, dramas de arrancar lágrimas e, claro, música, são alguns dos elementos em jogo nesses filmes, capazes de despertar o interesse tanto de quem já conhece as figuras retratadas, quanto de quem ainda tem esse mundo inteiro para aventurar-se.

Uma pessoa mais familiarizada com a biografia desses compositores pode vir a apontar que os eventos representados nesses filmes não condizem com a realidade — em outras palavras, que as obras são apenas ficções. Ainda bem que isso nunca foi posto em dúvida. Todos os filmes da lista são ficções — enquanto obras cinematográficas, eles são arte. Mas se a arte é a coisa mais próxima da vida, como disse certa vez a escritora George Sand (que voltará a aparecer na lista!), então talvez devêssemos manter os olhos bem abertos ao longo dessas obras.

Sem deixarem de ser emocionantes, divertidos ou intrigantes — todas as qualidades que podemos desejar em um filme para assistir numa sexta-feira à noite —, é quase na surdina que esses filmes podem vir a cumprir uma função das mais essenciais, logo de saída. Trata-se de aproximar espectadores e compositores, fazendo com que o público geral tenha um primeiro contato com aquilo que importa tanto quanto as biografias: a música desses artistas. Esses são alguns dos elementos em jogo nos filmes a seguir. Para quem já os conhece, são longas para reassistir, enquanto que, para quem não os conhece, a lista pode ser uma boa porta de entrada para esse outro universo musical e biográfico, esse mundo estranho e, ao mesmo, quase familiar…

Minha amada imortal (1994)

Ludwig van Beethoven (Gary Oldman) está morrendo. Entre os raios e trovões que iluminam seu rosto lívido, as primeiras notas que os espectadores escutam pertencem ao começo da Quinta Sinfonia (opus 67). Ainda que você não tenha ouvido o movimento por inteiro ou não saiba o nome desta obra, você certamente conhece bem as primeiras notas:


Com a morte do compositor e a disputa por seus bens, Anton Schindler (Jeroen Krabbé), um grande amigo, encontra uma carta escrita por Ludwig a uma mulher identificada apenas como “minha amada imortal”. A carta é uma espécie de testamento e o filme parte dessa investigação de Schindler em busca da “amada imortal”, a fim de realizar os últimos desejos do artista.


É um filme que trabalha o tempo como uma espécie de pêndulo, entre o passado e o presente. O compositor romântico volta à vida através da lembrança daqueles que o cercavam e, num dos momentos-chave do longa, a trilha sonora escolhida é o segundo movimento do Piano Concerto no. 5 "Imperador" (op. 73). Só pelas notas iniciais do movimento, já é possível ter uma ideia da comoção que transborda da tela e atinge em cheio o espectador:

A busca de Schindler pela “amada imortal” tem um desfecho que eleva a obra a uma experiência catártica. O filme realmente promete emocionar quem se dispor a assisti-lo.

George e Frederic (1991)

Com tom geral de comédia devido a uma sequência de erros e mal-entendidos, o filme acompanha uma parte da relação entre a romancista francesa George Sand (Judy Davis) e o compositor polonês Frédéric Chopin (Hugh Grant). A narrativa joga com os papéis sociais de gênero e suas inversões quando o assunto é a formação desse casal. George Sand, pseudônimo sob o qual Amandine Aurore Lucile Dupin publicou seus romances e memórias, foi uma figura categorizada como “excêntrica” para a sua época. O motivo? Ela era comumente avistada andando pelas ruas de Paris usando ternos completos ao invés de vestidos, já que preferia a praticidade da vestimenta tipicamente masculina à soma de babados, frufrus e camadas de tecidos dos vestidos femininos. Essa personagem vivaz, decidida e cheia de energia irá contrastar com a figura de Chopin, mais retraída, polida e de saúde bastante frágil. E como dizem que os opostos se atraem...

Na aventura romântica, Sand se apaixona pela arte antes de se apaixonar pelo artista. O filme acompanhará as tentativas encontradas por Sand para declarar seu amor e, com alguma sorte, ser correspondida. É bonito ver como a profissão de escritora de Sand assume um lugar decisivo na conclusão desse romance. O casal também é representado como parte de um círculo intelectual e artístico maior, formado no filme por Alfred de Musset, Eugéne Delacroix e Franz Liszt. É importante lembrar que a Paris da primeira metade do século XIX assumia uma posição de verdadeiro pólo cultural, onde estavam reunidos os nomes mais relevantes da época — é nessa atmosfera de criatividade efervescente que o filme é construído.

Uma coisa interessante para lembrar também é que o romance entre Sand e Chopin aconteceu mesmo e foi amplamente documentado. Eles ficaram juntos até poucos anos antes da morte do compositor, em 1849.

Mahler (1974)

“Eu era a música”, explica Gustav Mahler (Robert Powell) para Alma Mahler (Georgina Hale), no começo do filme. Gustav está relatando o sonho perturbador que é apresentado como parte da sequência de abertura. A obra acompanha o trajeto de trem feito pelo casal até Viena, onde Gustav deve fazer uma apresentação. Como a literatura já pôde nos ensinar, longas viagens de trem costumam colocar em evidência as fraturas na comunicação daqueles que estão condenados à presença um do outro por horas e horas a fio — vide a novela Mal-entendido em Moscou, de Simone de Beauvoir, ou o conto A Canary for One, de Ernest Hemingway.

Com Gustav e Alma não é diferente. O filme inteiro se dá sob os trilhos do trem, no vagão onde o casal em crise está instalado. O que nos arranca desse espaço e desse tempo são apenas longas cenas, cujo teor logo começamos a questionar — seriam cenas do passado (flashbacks), do futuro (flashforwards) ou apenas sonhos, delírios e neuroses costurados uns nos outros ao longo do filme? O diretor, Ken Russell, usa da linguagem surrealista para jogar com os elementos da vida e do contexto histórico desse compositor do século XIX. No meio disso há música, claro, e esse filme é uma boa maneira de começar a conhecê-la.

Amadeus (1984)

E após os amantes, chegamos finalmente aos inimigos. A ideia de Antonio Salieri matando Wolfgang Amadeus Mozart por inveja da sua música, popularidade e genialidade é quase tão antiga quanto os próprios Mozart e Salieri, como podemos comprovar pela peça homônima do prosador russo Aleksandr Pushkin, composta em 1830.

Pelos olhos de um cada vez mais atormentado e invejoso Salieri (F. Murray Abraham), o filme elabora a imagem de um Mozart (Tom Hulce) jovem, alegre e cheio de vida. Trata-se de uma figura francamente cômica — e aqui desafiamos você a não sorrir a cada vez que Mozart solta uma gargalhada em cena. O compositor se assemelha a uma personagem de ópera cômica, que de repente decidiu abandonar a ribalta do século XVIII, e deixar-se acompanhar por algumas câmeras bem modernosas. Mas os risos minguam e o clima de Amadeus toma um rumo mais sombrio quando Mozart recebe uma figura mascarada, que bate à porta de sua casa, tarde da noite, pedindo pela encomenda de um réquiem, gênero musical para ser performado durante missas fúnebres.

Ao todo, a versão do diretor dá ao filme três horas de duração, mas garantimos que essas horas valem a pena e até passam rápido, graças à trama muito bem construída, repleta de música, de intrigas e de reflexões instigantes sobre os binômios divino-humano, elevado-baixo, cômico-sério. Esses binômios estão na base das reflexões sobre a própria natureza da arte e configuração do fazer artístico, como Giovana Faviano elaborou de forma bela em seu artigo “Amadeus: a fofoca histórica que ganhou o Oscar”:

“Este foi o único erro de Salieri: acreditar que a Arte é divina e um presente de Deus para ser criada pelos humanos para Ele. Mas não. Apesar de toda a vulgaridade, a Arte é feita pelo homem para o homem. No meio de tanta dificuldade que é ser humano e viver e sobreviver em sociedade, só o homem em sua humanidade é capaz de criar beleza para tornar sua existência mais suportável e fazer valer a pena.”

No mundo moderno, o lugar do sublime não está dado, mas ao contrário, ele pode habitar a figura mais baixa de todas, como a do jovem com ares de libertino, abertamente dado ao grotesco e ao escatológico. É nessa disjunção, nessa não-coincidência, que está uma das belezas do filme e das reflexões que ele pode vir a suscitar. Amadeus se mostra como uma porta de entrada mais do que excelente para conhecer uma das grandes figuras da música ocidental.



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Michele Soares
Ensaísta ma non troppo — está mais para a expressão coup d'essai, em contínua tentativa. No momento, está tentando se graduar em Letras Clássicas, enquanto escreve poemas de sabor duvidoso, além de artigos sobre literatura e música; também está tentando viver sem fones de ouvido 24/7 e comprar menos livros para ler os que já tem. Mais de três vezes por dia, precisa lembrar a si própria e aos outros de que Salieri não matou Mozart, fora o projeto permanente de tentar falar com seriedade ao menos uma vez na vida — nisso, como se vê, está sempre falhando.

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