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Arthur Machen: o eterno fenômeno tardio

Neste dia, há exatos 160 anos, os arredores de colinas e vales pelos quais serpenteiam o rio Usk contemplavam o nascimento de um dos maiores nomes do horror decadentista: Arthur Machen, escritor, jornalista, tradutor e crítico literário cuja obra pavimentou os caminhos da literatura de terror.

Nascido em 3 de março de 1863, sob o nome de Arthur Llewellyn Jones, o escritor galês ficou conhecido por obras como O Grande Deus Pã (1894) e O Povo Branco (1904) que, apesar de sua grandiosidade, jamais conferiram a Machen o devido reconhecimento. Hoje, em celebração à sua vida e obra, este texto se materializa como uma Ode. 

“Uma vez que as palavras são concedidas, caímos na região do entendimento lógico, somos forçados a imaginar incidentes e circunstâncias e tramas, a 'inventar uma história'; traduzimos uma colina em conto, concebemos amores para explicar um riacho, transformamos o perfeito em imperfeito.”

Recheada de altos e baixos, sua vida é tão conhecida quanto sua obra, apesar das aventuras e dissabores. Ainda que tenha publicado dois volumes de caráter autobiográfico ‒ Far Off Things (1922) e Things Near and Far (1923) ‒, a veracidade plena de ambos é bastante questionada, enquanto seu trabalho ficcional respira a todo tempo sua experiência de vida pessoal. É incrível a forma biográfica como sua vida pessoal se projeta em sua obra, especialmente sua infância.

Machen descendia de uma família altamente envolvida com a religião e a fé, em particular com a fé cristã, visto que o próprio pai era reverendo. Essa conexão se torna algo contínuo e pulsante em sua obra, e os constantes flertes com a mitologia cristã integram um tópico que o autor explorou de forma magistral em sua carreira. É também sob essa circunstância que, ao explorar a biblioteca do pai durante a infância, ocorre o primeiro encontro de Machen com temáticas pela quais nutriu interesse até o fim de seus dias, como o ocultismo, os contos regionais de sua terra natal e seu fascínio pelas tradições celtas e invasões romanas. 

Os contatos e relações firmados por ele durante a primeira infância são cruciais para todo o desenvolvimento de sua obra, pois as sementes plantadas na mente de uma criança curiosa brotaram prolificamente ao longo de toda sua vida. A paisagem de Gwent, condado onde nasceu e viveu boa parte de sua vida, é frequente em sua obra, e muito mais que um mero plano de fundo para suas histórias, os vales, colinas e florestas foram eterna fonte de inspiração para o autor, muitas vezes ocupando parte do protagonismo de suas histórias.

Arthur Machen

Alguns anos depois, já na idade adulta, Machen se muda para Londres, onde presta vestibular para medicina, e mesmo não obtendo sucesso nesta empreitada, permanece na capital, onde vive, por anos, em condições muito precárias. Sua estreia no mundo literário acontece com a publicação do poema Eleusinia, no ano de 1881, e até que conseguisse um emprego razoavelmente estável, Machen perambulou por diversos ofícios, mas todos, de uma forma ou de outra, relacionados com a arte da escrita. Dentre essas funções, vale destacar seus serviços como tradutor e seu trabalho catalogando livros raros, que permitiu que o autor pudesse estreitar ainda mais seus laços com o ocultismo, o paganismo, a alquimia, e claro, suas relações com o mundo editorial. 

Em 1887, se casa com Amelia Hogg ‒ ou Amy, como era conhecida ‒, uma mulher treze anos mais velha que ele. A admiração que nutria por ela provavelmente era fruto de sua personalidade, sendo Amy uma professora de música apaixonada pelas artes, frequentadora dos círculos artísticos de Londres e descrita, nos esparsos registros encontrados sobre ela, como uma mulher livre e espontânea, com a qual Machen se sentia alegre e inspirado. Foi graças a ela que Machen passou a vincular-se ao meio teatral, e foi também em sua companhia que viveu os anos mais prolíficos de sua carreira como escritor. 

A década de 1890 foi o período de maior efervescência da mente imaginativa de Machen, e com a vida financeira um pouco mais estável, ele então pôde dedicar-se de maneira exclusiva à escrita. A onda de produtividade se estende até os anos 1920, mas foi durante seus breves anos ao lado de Amelia que nasceu sua obra mais famosa, O Grande Deus Pã

O Grande Deus Pã

A semente da história brota na mente de Machen ainda quando jovem, e mesmo que tenha demorado anos para germinar e se concretizar no que veio a ser a novela, é inegável que essa ficção foi o resultado de anos de observação das paisagens e registros romanos que o autor vivenciou, como uma tentativa de materializar os horrores e anseios do pequeno Arthur sob a forma de uma narrativa primorosa.

Apesar da péssima recepção que obteve pelos críticos da época ‒ e que ainda hoje recebe por alguns mais puritanos ‒, O Grande Deus Pã é, sem dúvida, a maior obra de Machen. Poucas obras de ficção foram capazes de sintetizar o Mal de forma tão esplendorosa e bela. 

A existência de todo Bem implica a existência de um Mal maior, impuro e sórdido que seja suficientemente capaz de justificar a libertação pela fé, em especial no cristianismo. E esse é um conceito muito caro a Machen. 

Publicado pela primeira vez em 1894, O Grande Deus Pã narra uma série de acontecimentos que culminam na disseminação de um grande mal sobre a cidade de Londres, mal esse oriundo de uma figura que ocasiona inúmeras mortes e lentamente espalha o terror e o caos, como se aquela fosse a própria personificação do Mal. Aos poucos, um grupo de homens refinados e cultos se mobiliza para sanar essa rede de acontecimentos, que não por acaso estão ligados a muitas outras histórias do passado, histórias selvagens e promíscuas. 

Recheada de referências ao cristianismo, à cultura greco-romana e ao ocultismo, a narrativa se desenrola sob a forma de um mistério envolvente que aos poucos vai se solucionando, e que prende o leitor nas teias de suas próprias expectativas. Entretanto, a forma como Machen constrói seu horror nada tem a ver com o que era feito até então, e sua celebração ao profano é apenas parte do que lhe confere o título de decadentista, pois, como um bom homem de seu tempo, que compreende os novos temores do fim do século, ele vislumbra a insuficiência das histórias de fantasmas como fator gerador de espanto, e assim projeta seu terror sobre o macabro do desconhecido.

1ª edição de O grande deus Pã

Assim como Mary Shelley fez em Frankenstein, Machen utiliza as dosagens certas de científico e sobrenatural para tecer uma trama envolvente e intensa. Porém ele, diferente de Shelley, com seus questionamentos filosóficos sobre a vida a partir do desconhecido, explora esse espaço incógnito como o mais profundo temor humano, que retrata como uma outra face do Mal.

Em sua obra no geral há, o tempo todo, uma prova ferrenha dos limites entre o celestial e o vil, o que há de mais puro e o que há de mais corrompido entre os humanos se combatendo a cada momento; a evocação do oculto como Mal primordial e a elevação do Diabo não só como como Mal maior, mas também como uma divindade poderosa à mesma altura de Deus, que se esgueira por entre as sombras e as habita. 

Arthur Machen muitas vezes foi colocado pela vida em situações que o fizeram ter seu trabalho massacrado pelos críticos, especialmente sob o véu de um falso pudor e moral sociais da época. A primeira publicação de O Grande Deus Pã recebeu, por sua sutil alusão ao sexo, uma chuva de críticas negativas, que com frequência associavam o nome de Machen a palavras como "perversão" e "depravação", algo que é lembrado mais tarde pelo próprio autor com evidente ressentimento e até mesmo algum escárnio. 

No ano de 1899, sua esposa falece, vítima de um câncer contra o qual lutava há muitos anos. O impacto de tal perda parecia irremediável, e por um período significativo de tempo Machen abandona a escrita e cai em prostração. É graças ao esforço de outros amigos escritores que ele retorna ao ofício e inicia no novo século uma jornada marcada por grandes obras como O Terror (1917), The Great Return (1915), The Secret Glory (1922) e The Hill of Dreams (1907).

A grande sacada de Machen enquanto gênio revolucionário foi a compreensão de que Bem e Mal se equiparam, ambos coexistem, pois, só assim são capazes de existir, em igual proporção. Essa é uma discussão que o autor traz abertamente em 1904, quando publica o conto O Povo Branco.

O Povo Branco

Decerto que uma boa forma de conhecer Machen é através de O Grande Deus Pã, seu livro de maior circulação no Brasil, mas há também inúmeros outros trabalhos que merecem uma maior atenção. Dentre eles, vale destacar O Povo Branco (The White People, em inglês), conto primoroso no qual Machen constrói um fluxo narrativo voraz e viciante, modelando uma história com complexos níveis de profundidade e exploração atmosférica.

O conto narra a breve jornada de uma menina que aos poucos vai sendo iniciada em parte de uma seita ou ritual de magia negra sem se dar conta, e de forma lenta e gradual se insere despretensiosamente em algo muito maior do que consegue vislumbrar, envolta pelo espesso véu da ilusão e pela terna inocência da infância.

Considerado por alguns como sua obra-prima do horror sobrenatural, o horror aqui configurado por ele tem sua expansão e existência totalmente atreladas ao imaterial. Dessa vez, a vinculação do sobrenatural ao Pecado e ao Profano se tornam mais explícitas, e junto à grande história construída por ele, Machen nos explana, em detalhes, a maneira ambígua como  concebe e retrata o plano espiritual em sua obra.

Em poucas palavras: buscar poderes divinos, seja por meio de bruxaria, feitiçaria ou quaisquer outras práticas corruptivas, é uma transgressão à naturalidade comum ao ser humano. Santidade é se manter puro, e o pecado é transgredir o escopo da capacidade humana, uma tentativa ousada de acessar um lugar e adquirir poderes próprios aos celestiais. 

A inserção dessa explanação sob a forma de um diálogo corriqueiro entre dois personagens se coloca como uma maneira encontrada por Machen de enfim fazer-se entender por seu público, para que quem o lê possa então apreciar devidamente sua obra e entender as ramificações detalhadas que o autor explora em O Povo Branco. É como Machen elevasse sua própria temática a um novo nível de refinamento, e de fato o fez.

Se em O Grande Deus Pã há uma personificação literal do mal pela figura do deus-sátiro, aqui, o Mal não recebe uma forma física própria, mas circula livremente através da força das palavras, assim como as tradições orais se propagavam e ainda propagam. Mais uma vez os resquícios da experiência pessoal do pequeno Arthur vieram à tona. 

O eterno fenômeno tardio

Sua vida foi marcada por diversos reveses. Ficou viúvo muito jovem, assim como também ficou órfão cedo. Arthur Machen, a vida inteira, flertou e conviveu com a solidão, se tornando, assim, um ser humano devoto a ela, que soube reconhecer tanto seus prazeres como pôde vivenciar seus infortúnios. 

Várias vezes o autor se viu em situações de extrema precariedade monetária, passando por muitos episódios de absoluta pobreza. A década de 1920 traz o Modernismo e, com ele, uma profunda crise financeira que assola Machen por mais de vinte anos. Mesmo com seus constantes esforços trabalhando como jornalista e até mesmo como correspondente durante a Primeira Guerra Mundial, o baque sofrido ao longo desse período o coloca em uma posição decadente da qual só consegue sair em 1943, quando um grupo de amigos, escritores e admiradores de sua obra tomam a iniciativa de garantir a ele um fundo com o qual se mantém até 1947, o ano se sua morte. 

“Fenômeno tardio” foi a denominação que o bibliófilo Vincent Starrett deu a Machen, pois acreditava genuinamente que o gênio incompreendido só receberia seus devidos louros após a morte, mas é certo que ainda hoje seu nome não alcançou o auge do esplendor e aclamação dos quais é digno.

Grandes autores conheciam e veneravam o trabalho de Machen, e mesmo no cinema sua influência é forte, mas o nome de vários de seus discípulos ainda ocupa lugares muito maiores que o nome de Machen jamais ocupou, como H. P. Lovecraft e Stephen King, conhecidos como grandes nomes do horror, que beberam abundantemente de sua fonte inesgotável de imaginação. Mais de uma vez críticos uniram forças e se esmeraram  em tentar garantir à Arthur Machen o verdadeiro reconhecimento merecido, mas este, infelizmente, nunca chegou, e Machen segue sendo um eterno botão de rosa que nunca desabrochou por completo, escondido nas estantes daqueles que consomem literatura de horror e de fato prezam por ela. 

Referências

A Demanda do Mistério (José Antônio Arantes)
O grande deus Pã (Arthur Machen)
O Grande Deus Pã: não se pode possuir a natureza (Beatriz Dota)
O Povo Branco (Arthur Machen)
Supernatural Horror in Literature (H. P. Lovecraft)



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Comentários

  1. Machen é com certeza um grande achado para qualquer entusiasta do horror e do Weird. Ano passado descobri as fantasias sombrias dele que envolviam bastante de sua influência cristã e o fascínio pela lenda do Graal. Uma pena mesmo que ainda não seja tão famoso, mas ao menos reconhecem sua importância (inclusive há uma edição da British Library dedicada a O grande deus Pã e os autores influenciados pela novela).

    Como marco do aniversário, o texto foi excelente. Ótimo para introduzir o autor aos desconhecidos quanto relembrar o autor quando já tivemos o prazer de desfrutar de suas obras.

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  2. Maeli, confesso que era ignorante da existência do autor até ler teu texto. Obrigada pela ótima apresentação!

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