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O Grande Deus Pã: não se pode possuir a natureza

O século XIX, não por acaso, é conhecido como o “século da ciência”. Os anos 1800, na Europa, viram surgir diversos pensadores que mudariam radicalmente os rumos das ciências naturais, humanas e linguísticas. Charles Darwin, com sua obra A Origem das Espécies (1859), mostraria de uma vez por todas que o homem não veio do pó. A Revolução Industrial, que teve seu início em meados do século anterior, deu lugar a um novo modo de vida que, por um lado, causava deslumbramento com suas máquinas e um rápido desenvolvimento de novas formas de produção e, por outro, era a causa de desemprego de milhares, uma engrenagem na manutenção do capitalismo. A medicina ganhava novas descobertas com a maior liberdade de estudos da anatomia humana, assim como a psiquiatria também conquistava seu espaço, fazendo o período ganhar uma segunda alcunha de “o século dos manicômios”.

Todo esse avanço científico viria acompanhado de uma mudança de mentalidade por parte dos intelectuais. Se antes éramos reféns da natureza, agora era o homem (branco, europeu) o seu senhor. Não era mais necessário depender da luz do sol para determinar os horários de cada atividade, pois havia soluções mais modernas de iluminação. Nem todas as tarefas deveriam ser executadas exaustivamente por braços humanos; as máquinas mais sofisticadas davam conta do recado. As forças sobrenaturais já não tinham mais espaço nas explicações sobre o mundo, a ciência provava dia após dia que não somente era possível encontrar explicação lógica sobre tudo o que existia no mundo terreno, como também era possível manipular e causar mudanças no próprio meio-ambiente - possibilidade que muito interessava aos que viam alguma oportunidade de lucro por tais intervenções. Em outras palavras, o homem não se sentia nem abaixo, nem parte da natureza: ele era superior.

No entanto, o assombro e curiosidade dos seres humanos sobre os mistérios da natureza ligados a entidades transcendentes e - em boa parte - pagãs, não chegariam ao seu fim. É precisamente na literatura que o imaginário encontra seu escape para mostrar que o humano contemporâneo guardava ainda o seu temor sobre o desconhecido. A obra Frankenstein ou o Prometeu moderno (1818), de Mary Shelley, é um exemplo de narrativa que explora o encontro conflituoso da ciência com o oculto, bem como O médico e o monstro (1885), de Robert Louis Stevenson. Como não poderia deixar de ser, esse também é o caso de O grande deus Pã.

“Sou como um viajante que vislumbrou o abismo e recuou aterrorizado. O que sei é estranho o bastante, mas, além do meu conhecimento, há profundezas e horrores muito mais apavorantes, mais incríveis que qualquer história contada em noites de inverno em torno do fogo.”

O projeto ambicioso de “erguer o véu”

O grande deus Pã é uma obra de terror publicada pela primeira vez em 1894. O autor é Arthur Machen (1863-1947), um jornalista e escritor com intensa curiosidade pelo ocultismo - inclusive, ele esteve envolvido com a “Ordem Hermética da Aurora Dourada”, sociedade que teve alguns membros ilustres como Aleister Crowley. Embora a obra não seja tão conhecida pelo grande público, teve uma incontestável contribuição para o gênero, inspirando muitos escritores posteriores como o mestre contemporâneo Stephen King.

Arthur Machen

A obra é dividida em capítulos que mais se parecem com pequenas crônicas que se complementam e nos guiam em um quebra-cabeça instigante. Tudo começa com dois amigos: Dr. Raymond e Clarke, homens ingleses respeitáveis, intelectuais e abastados. Na ocasião do primeiro capítulo, Clarke é convidado por Dr. Raymond para presenciar um experimento como nenhum outro, tão ousado que o desconforto e desconfiança de Clarke é evidenciado logo no primeiro diálogo do texto. Não é sem razão: o experimento do amigo doutor envolvia uma jovem de dezessete anos e um procedimento cirúrgico no cérebro da voluntária. O objetivo? Romper a tênue fronteira entre o plano terreno e o desconhecido.

“Ela irá nivelar totalmente o sólido paredão dos sentidos, e, provavelmente pela primeira vez desde que o homem foi criado, um espírito poderá ter um vislumbre do mundo espiritual. Clarke, Mary verá o deus Pã!”

Dr. Raymond explica para Clarke, nas primeiras páginas, sua teoria. Segundo ele mesmo, a ciência ainda não tinha domínio sobre todas as potencialidades da massa encefálica humana. Um grupo celular nervoso no órgão em específico simbolizava uma incógnita para toda a comunidade científica, mas não para o Doutor. Ele afirma com muita convicção que aquela rede é uma espécie de ligação entre o mundo dos sentidos e o transcendental - representado em sua fala como o deus Pã - e que o procedimento cirúrgico serviria para “ativar” tal potencialidade adormecida. Se a teoria se provasse verdadeira, a humanidade começaria uma nova era, o extraordinário estaria a um cortezinho de distância de qualquer cidadão inglês. Os mistérios seriam, finalmente, descobertos ao erguer - ou rasgar - o véu que os esconde.

A despeito da hesitação do convidado, o procedimento é realizado, e o resultado é catastrófico. A moça entra em um estado convulsivo aterrorizante logo após a intervenção, uma visão tenebrosa o suficiente para fazer Clarke sair correndo da sala do experimento. Três dias depois, ao visitar novamente a moça, ouve a voz fria de seu amigo Doutor dizer: “É uma grande pena; está irremediavelmente idiotizada. Contudo, não havia outro meio; e, afinal, ela viu o grande deus Pã”

A situação torna-se ainda mais revoltante com a consciência de que a vítima era ninguém menos que a esposa do Dr. Raymond, cujo nome era Mary. As consequências das intenções profanas do marido, no entanto, não se encerrariam na deterioração da mente da adolescente. A história, a partir do capítulo seguinte, nos apresenta uma outra personagem, Helen, que representa a própria encarnação do mal. Ela se torna o ponto central da história e, a cada capítulo, entramos em contato com o rastro de destruição que a moça deixa por onde passa. Sua relação com o experimento é parte do mistério do livro, e vale a pena deixar que o leitor mesmo a descubra.

O terrível e feminino deus Pã

Conhecemos Helen por relatos desconexos, à primeira vista, contados pelos conhecidos de suas vítimas. Tais relatos vinham de casos de uma onda de mortes misteriosas e vidas arruinadas que assombravam a Inglaterra. Todas as vítimas eram homens bem-sucedidos, intelectuais e de boa fama, descrições que contrastavam com as causa mortis: alguns cometiam suicídio, enquanto outros pareciam ter morrido de, literalmente, medo. A jovem Helen, descrita como “a mulher mais bela e, ao mesmo tempo, a mais repulsiva” já vista, era o elemento comum em todos os casos, já que todos os falecidos eram vistos com ela pouco antes da fatalidade. 

Esse padrão logo foi descoberto pelos amigos próximos das vítimas, que seguem para uma investigação sobre o passado e paradeiro de Helen. Os dados coletados são arrepiantes. As vítimas da moça pareciam ter conhecido nela uma escuridão tão terrível e monstruosa que até a própria morte apresentava-se como uma alternativa melhor. Helen era o pânico feito mulher.

“Oh, Austin, como pode ser? Como pode ser que a própria luz do sol não se transforme em negrume diante dessa coisa, que a terra dura não derreta e ferva sob tamanho fardo?”

O título remete ao deus grego Pã, o fauno guardião das florestas. Sua figura é ambígua de muitas maneiras: ora é um personagem carismático, tocador de flauta e defensor da vida selvagem, ora é a entidade responsável por causar horrores irreversíveis às mentes dos homens que adentram as matas - daí a palavra “pânico”. Também é ambíguo em sua aparência, sendo metade homem, metade bode. É a imagem da natureza em sua manifestação mais crua, sem a mediação da moral humana ou dos filtros do que é “adequado” e “decente”. Está além da dualidade do bem e do mal, luz e trevas. Tudo que é contrário aos ideais de civilização está associado ao deus, como o impulso sexual e a “selvageria”, o que ocasionou que sua imagem fosse apropriada pela Igreja Católica para representar o próprio Diabo. Pã, ou Pan, tem ainda um outro sentido na linguagem. É um prefixo que denota totalidade, como no caso de “pan-americano”, por exemplo. Muito adequado para a força universalizante da natureza, diga-se de passagem. 

Dito isso, cabe aqui um questionamento. Sendo o deus Pã evidentemente uma entidade masculina - característica reforçada pelos diversos símbolos fálicos que o cercam -, por que a escolha por uma mulher para representá-lo? A resposta merece um olhar mais dedicado.

Estátua de Pã encontrada em Villa dei Papiri

A mulher-monstro não cabe nos laboratórios 

A percepção mais imediata para o esclarecimento dessa questão é a de que a mulher esteve, nas mais diversas culturas, relacionada diretamente com a natureza e, inevitavelmente, ao selvagem. Na Grécia antiga, aproveitando a deixa das referências, o período de experimentação ritual de puberdade das meninas tinha o nome de arctéia e tinha por função o preparo para a maternidade. Tal período era vivido no templo da deusa Ártemis - deusa arqueira da caça e da lua -, onde as meninas ficavam nuas ou usavam roupas muito curtas (de acordo com pinturas encontradas em cerâmicas) enquanto imitavam ursos como símbolo da iniciação aos mistérios da deusa caçadora. A agenda de atividades da arctéia também contava com danças ritualísticas, sacrifícios e libações.

Tal como a natureza, durante o processo de estabelecimento do patriarcado, o feminino foi inferiorizado, violentado e apropriado em uma narrativa que servia - e serve - aos desejos e ambições dos homens. No início de O grande deus Pã, Dr. Raymond justifica ao seu amigo o seu direito de usar Mary em seu experimento: “Como você sabe, eu salvei Mary da sarjeta e da inanição inevitável, quando ela era uma criança; eu acho que a vida dela é minha, para usar como eu achar melhor”. Para o Doutor, a adolescente não somente lhe pertencia como tinha uma dívida com ele, já que ele a resgatou da pobreza quando criança, lhe ofereceu um lar e um casamento. 

“ - Pretendo investigar a mulher; a mulher com quem ele se casou. É ela o mistério.”
Lily Frankenstein em Penny Dreadful

Helen, portanto, é um elemento de subversão. Seu nome remete ao de Helena - aquela mesma de Tróia -, mais uma referência grega e mais um olhar para a potencialidade do caos contido em uma mulher. É a natureza que se volta contra o homem, o feminino que emerge em oposição à ilusão de controle dos homens. Um caso que lembra muito a personagem Brona Croft, ou Lily Frankenstein, da série Penny Dreadful (2014). Lily também foi tratada como posse e, depois de sua morte, foi vítima de um procedimento terrível que atentou contra seu corpo e sua integridade em nome da ciência e do desejo de um homem.  Mais tarde, ao descobrir o ultraje que sofrera, sua reação foi, para dizer o mínimo, furiosa. Assim como Helen, os alvos de sua vingança seriam os homens. 

O grande deus Pã é uma produção do Decadentismo inglês e uma boa introdução ao Gótico, já que se trata de uma leitura curta (com pouco mais de cem páginas), de linguagem descomplicada e bastante instigante. Mas é, também, o fruto do contexto de uma sociedade masculinizada que pensava ter a natureza (feminina) nas mãos, sob seu controle. É o lembrete da prepotência humana capitalista de privatizar aquilo que não cabe nos pressupostos do materialismo. Também é o testemunho de que a supervalorização do racionalismo científico não teve o poder de exterminar o imaginativo, o lírico e o encantamento pelo sublime. No entanto, na narrativa, a receita é clara: paga-se violência com o horror.


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Referências





Arte em destaque: Mia Sodré 

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