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Pagu, a mulher do povo

será preciso
buscar nas páginas perdidas dos jornais
os traços de um retrato ainda nebuloso
mas pontilhado de luzes

(Augusto de Campos, em pagu: tabu e totem)

Pagu foi explosão, assim como seu apelido forte e sonoro que começa com um estouro na boca /pa/ e termina na forma de um beijo /gu/. Em meio a memórias confusas do que aprendemos à época da escola, essas quatro letras parecem nos acompanhar mais do que os feitos de quem as sustentou, uma vez que seu nome nos é familiar, apesar de não sabermos precisar a quem pertenceu. Quem foi Pagu? Dona de um rosto melindroso, boca pequena e olhos caídos – traços tão característicos do padrão de beleza das primeiras décadas do século XX –, a jovem paulistana foi continuamente engolida por sua beleza. Nós já vimos Pagu. Reconhecemos seu rosto, mas a pergunta persiste: quem foi Pagu?

Fragmentos de uma biografia extraordinária

Em dezembro de 2022, completou-se 60 anos da morte de Patrícia Galvão, poeta, tradutora, crítica literária, escritora envolvida com o movimento modernista e ativista política, mas que com o tempo foi caindo no esquecimento, sobrando apenas a vaga lembrança de seu casamento com Oswald de Andrade, da amizade com Tarsila do Amaral e da beleza inigualável.

Tal esquecimento não é uma exclusividade que se abateu sobre a brasileira, mas sim uma constante na literatura modernista em relação às suas autoras mulheres, como destacou Augusto de Campos na biografia Pagu: vida-obra, na qual reúne textos de variados autores e reproduz algumas obras da autora, 

Talvez seja interessante relembrar que o mesmo preconceito ou a mesma ambiguidade envolveram figuras femininas relevantes do modernismo internacional que pairaram à margem dos protagonistas mais evidentes, dos quais foram por muito tempo sombras pouco delineadas.

A misoginia parece ter dado o tom de como a autora seria tratada não só após a sua morte, mas principalmente durante toda a sua vida, uma vez que seja pela sua aparência, pelo seu comportamento contestador ou pelos inúmeros desafios às convenções, seu nome sempre apareceu envolto a escândalos. Questionadora mordaz, ela nunca escondeu seu desagrado com parte dos modernistas, acusando Mário de Andrade de ter abandonado os ideias da Semana de 22 e Plínio Salgado (acertadamente) de fascismo após fundar a Ação Integralista Brasileira. Porém foram seus atributos físicos, sua personalidade e vida pessoal que mais chocaram a sociedade paulistana há quase cem anos.

Além de uma vida romântica intensa que já lhe causaria muita dor de cabeça, Patrícia Galvão ainda vestia calças no lugar de saias, falava palavrões, bebia, fumava e se envolveu profundamente com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sua beleza chamava a atenção por onde quer que passasse e, para Augusto de Campos, essa exuberância pode ter contribuído “para vitimizá-la, antes que promovê-la”, o que é facilmente comprovado pelas inúmeras descrições de sua beleza e de seu magnetismo sedutor por diversos poetas e pelos vários retratos de seu rosto feitos por artistas como Di Cavalcanti e Portinari. Tudo isso nos dá uma dimensão de sua presença explosiva, mas ainda não responde quem foi Pagu.

Pagu: vida-obra, obravida, vida

Apesar de criada nos bairros proletários de São Paulo, mais precisamente no Brás, Patrícia Galvão vinha de uma família tradicional, sendo filha de Thiers Galvão de França, advogado e jornalista. Assim, seu primeiro contato com a luta proletária se deu graças ao bairro em que morava, no qual pôde acompanhar de perto manifestações e greves, mesmo que ainda não tivesse muito conhecimento sobre as reais causas políticas por trás de tudo que presenciava. Em suas palavras: 

Morei no Brás até os dezesseis anos. Numa habitação operária, com os fundos para a Tecelagem Ítalo-Brasileira, num ambiente exclusivamente proletário. [...]. Presenciava manifestações e greves e, se nesses momentos tomava partido, era um parti pris sentimental e, se exaltadamente acompanhava os movimentos, era por pura satisfação de meus sentimentos, à margem de qualquer compreensão ou raciocínio. Aliás, meu egocentrismo era absorvente demais para que eu me impressionasse demasiado com os mais infelizes. Era, naturalmente, contra os patrões, como se não pudesse ser de outra forma, mas nunca pesquisei o motivo nem as causas ou razões da luta de classes.

Na adolescência, frequentou a Escola Normal do Brás, onde começou a escrever para o Brás Jornal e, assim, aproximou-se dos modernistas que integraram a Semana de Arte Moderna de 1922. Dentre os acontecimentos que mais se destacaram dessa aproximação, figura a amizade com a pintora Tarsila do Amaral, à época casada com o poeta Oswald de Andrade. Seu deslumbramento pela pintora era tamanho que quando questionada sobre suas admirações, respondia prontamente “Tarsila, Padre Cícero, Lampião e Oswald. Com Tarsila fico romântica. Dou por ela a última gota do meu sangue. Como artista só admiro a superioridade dela”

Exposição de Tarsila do Amaral (1929)

Sob os cuidados do casal, tornou-se a queridinha do grupo intelectual modernista dissidente e recebeu a alcunha de musa antropofágica. Em 1929, começou a contribuir com a Revista da Antropofagia (segunda dentição) e estreitou ainda mais os laços com o grupo, agora participando de viagens e apresentações culturais. 

Apesar disso, no ano seguinte, em 1930, Pagu fugiria e se casaria com Oswald, gerando um grande escândalo. No entanto, o casamento não era mais do que um escape para a jovem autora, que afirmou, em sua autobiografia, que não amava Oswald e que ele não a amava. Com um relacionamento aberto, os dois se encontravam com outras pessoas e, assim, o interesse do casal recaía mais na admiração intelectual e no entusiasmo partilhado pela forma como encaravam a vida e a política.

Juntos, filiaram-se ao PCB e criaram o pasquim O homem do povo, no qual Oswald escrevia sobre política enquanto Pagu assumia a seção A mulher do povo, além da Correspondência e de ilustrações, charges e vinhetas, sob pseudônimos como Irmã Paula, G. Léa e K. B. Luda. Na coluna, Patrícia criticava os hábitos das mulheres paulistas, bem como o feminismo pequeno-burguês por elas defendido, tendo como base o materialismo histórico. Logo no primeiro número, a autora criticou as feministas que lutavam pelo sufrágio feminino apenas para mulheres cultas:

Estas feministas de elite que negam o voto aos operários e trabalhadores sem instrução, porque não lhes sobre tempo do trabalho forçado a que se têm que entregar para a manutenção dos seus filhos, se esquece que a limitação de natalidade quase que já existe mesmo nas classes mais pobres e que os problemas todos da vida econômica e social ainda estão por ser resolvidos.
Ainda em 1930, o casal teve o pequeno Rudá, contudo, a dificuldade em amar o marido parece ter se estendido à criança. Em um misto de culpa materna e inquietude, a escritora assumiu seu desinteresse materno, já que seu “desejo de fuga e expansão” era maior. Seu filho não lhe bastava, como era o usual para as mulheres daquele período, e desabafou sobre a angústia que enfrentava com o menino – “Eu queria amá-lo. Amá-lo até a renúncia do contato materno. Mas não soube amá-lo suficientemente”. Por isso, nem mesmo o filho a afastou de sua relação com o PCB.


Cada vez mais dedicada às causa sociais, a jovem se voltou à leitura de textos políticos, porém, de acordo com a própria Pagu, o contato com livros teóricos e discussões intelectuais não eram suficientes e ela começou a ser mais atuante no partido, em meio ao proletariado. Quanto mais entendia a opressão e o sistema que a gerava, mais inquieta e compelida à ação se sentia – “O proletariado não sabe. E deve saber. Preciso gritar tudo isso nas ruas. Gritar até cair morta”.

Patrícia Galvão, militante do ideal

Entreguei-me completamente. O marxismo. A luta de classes.
A libertação dos trabalhadores. Por um mundo de verdade e de justiça.
Lutar por isso valia uma vida. Valia a vida.

(Pagu)

Militante atuante do PCB, Pagu participava de inúmeras manifestações proletárias quando, em 1931, em meio a uma greve de estivadores do Porto de Santos, foi presa após auxiliar o estivador negro Herculano de Souza, morto pela polícia – era a primeira vez que uma mulher era presa por motivação política no Brasil. Após ser liberada, continuou firme em seus ideais comunistas e concluiu que precisava contribuir ainda mais à causa, agora com o primeiro romance proletário do país.

Publicado em 1933, sob o pseudônimo de Mara Lobo, o romance social Parque industrial aborda a vida do proletariado paulistano em meio à exploração trabalhista e à pobreza, empregando a perspectiva marxista-leninista. Com o retrato das condições desumanas de trabalho, a jovem autora denunciou as mazelas impostas principalmente às mulheres operárias, uma vez que esse grupo sofria com outras formas de opressões superpostas.

O intuito da escritora, na época com apenas 21 anos, nunca foi escrever uma obra-prima literária, e tinha consciência que esse não seria o caso de Parque industrial. De fato, o valor estético da obra não tem tanto destaque, uma vez que o romance surgiu assumidamente como um panfleto comunista e a autora tinha consciência de suas limitações literárias:

Pensei em escrever um livro revolucionário. Assim, nasceu a ideia de Parque industrial. Ninguém havia ainda feito literatura nesse gênero. Faria uma novela de propaganda que publicaria com pseudônimo, esperando que as coisas melhorassem. [...] Não tinha nenhuma confiança nos meus dotes literários, mas como minha intenção não era nenhuma glória nesse sentido, comecei a trabalhar.
No romance, acompanhamos Corina, Otávia e Rosinha Lituânia, jovens pobres muito diferentes entre si, indicando não só a complexidade dessa camada social, mas também revelando como a ignorância acerca das causas trabalhistas e sociais acaba por impactar irreversivelmente o destino das protagonistas. Enquanto Corina é seduzida por um rapaz rico para ser abandonada e levada à prostituição e à loucura, após descobrir uma gravidez, as outras duas se tornam militantes engajadas que articulam greves e tentam acordar os colegas de classe.

Durante a narrativa, a autora recorre a frases intensas e dolorosas, como “A dor do pobre é o dinheiro” e “Gente pobre não devia ter filho!” para explicitar o drama vivenciado pelos pobres e gerar inquietação em seu leitor. Em outros momentos, temos vislumbres de reuniões dos operários e de discussões que revelam tanto a compreensão de sua posição quanto o descontentamento do grupo com a falta de direitos. Dessa forma, um dos pontos altos é o rompimento da greve com a articulação de Otávia:

– Camaradas! [...] Temos que lutar juntos contra a burguesia que tira a nossa saúde e nos transforma em trapos humanos! Tiram do nosso seio a última gota de leite que pertence a nossos filhinhos para viver no champanhe e no parasitismo! Nós, à noite, nem força temos para acalentar nossas crianças, que ficam sozinhas e largadas o dia inteiro, ou fechadas em quartos imundos, sem ter que olhe para elas. Não devemos enfraquecer a greve com nossos lamentos! Estamos com o pagamento atrasado e chegamos até a passar fome, enquanto nossos patrões que nada fazem vivem no luxo e mandam a polícia nos atacar! [...] A burguesia tem para se defender os seus lacaios armados! Se nós mesmos não defendermos as nossas reivindicações, quem correrá em nosso auxílio? A reação policial é um incitamento para a luta, porque só vem provar que somos escravos da burguesia e que a polícia está do lado dela!
Logo após a publicação do livro, Pagu empreendeu uma viagem que apelidou de “viagem redonda”, na qual passou por Estados Unidos, Japão, China, Rússia, Polônia, Alemanha e, por fim, a França. Nesse último país, foi presa como militante estrangeira comunista e quase deportada para a Alemanha nazista, mas conseguiu regressar ao Brasil. 

No entanto, foi presa em São Paulo, conseguindo fugir, para, infelizmente, ser presa mais uma vez, agora no Rio de Janeiro. Pagu só seria libertada em 1940, pesando 44 quilos – ao todo, ela foi presa 23 vezes, foi ferida em Paris e torturada no Rio de Janeiro; para a autora, o período de 1930 foram

os dez anos que abalaram meus nervos e minhas inquietações, transformando-me nesta rocha vincada de golpes e de amarguras, destroçada e machucada, mas irredutível.

Autobiografia precoce para uma vida precoce

Em 1940, ainda presa, ela escreveria seu único texto autobiográfico, o Autobiografia precoce, para que o seu então marido, Geraldo Ferraz (com quem também teria um filho), a conhecesse melhor. A autora não tinha o intuito de que um dia suas memórias fossem publicadas, contudo, o texto acabou se tornando um livro em 2005.

No texto, a autora contou seu envolvimento com a política nacional e com o Partido Comunista. No começo, foi tratada com desconfiança pelo PCB por não vir do proletariado, o que foi prontamente corrigido após começar a trabalhar como indicadora de poltrona no cinema. Depois, começaram as exigências para que se provasse a lealdade; dentre elas, deitar-se com alguns homens para extrair informações não tão importantes, causando-lhe revolta ao perceber a diferença de cobranças entre homens e mulheres dentro do partido.

Pagu enfrentaria todas as situações degradantes que lhe fossem exigidas em nome do povo. Seu interesse maior era a revolução que acabaria com a opressão e libertaria, principalmente, mulheres e crianças dos mais variados infortúnios impostos pelo capitalismo. Seu espírito idealista foi muito bem resumido por Otávio de Faria:

Seu idealismo, dos mais fortes e sinceros que conheço, lançou-a em todos os extremos da prática revolucionária e ela recolheu todos os prêmios habituais a esse gênero de sinceridade: a perseguição policial, a prisão, o abandono dos amigos, a traição, o ódio, a suspeição dos correligionários, a proscrição. Nada disso fez morrer, ou diminuir, a sua sede de verdade, de honestidade a toda prova.
Porém tudo mudou após viajar à Rússia, e lá, no coração da revolução, ver crianças famintas mendigando. Decepcionada, abandonou o Partido Comunista, de quem se tornou crítica ferrenha, e voltou toda sua atenção à literatura e ao teatro, o que nos permite focar em outro aspecto importante da vida de Pagu, que é sistematicamente eclipsado pela sua luta política: o seu pioneirismo.


Dentre seus feitos vanguardistas, segundo o modernista Raul Bopp, Pagu teria sido a responsável pela introdução da soja no Brasil após uma viagem à China, ao afirmar que ela teria arrumado algumas sementes selecionadas do grão a pedido do poeta. Já no campo das artes, em 1952, traduziu uma peça de Eugène Ionesco, sendo essa a primeira vez que o dramaturgo francês foi encenado no Brasil. Em Santos, Pagu se juntou a grupos de teatro que lutaram pela construção do Teatro Municipal de Santos.

Também teria sido a primeira a comentar sobre textos e trajetórias de autores como o francês Antonin Artaud, o brasileiro Nelson Rodrigues e o irlandês Samuel Beckett. Além de ter sido uma tradutora prolífera que passou para o português textos nunca antes traduzidos de autores como Lautréamont, Joyce, Valéry, Kafka, Proust, Ítalo Svevo, passando por Apollinaire, Cendrars, Tzara, Souppault, até Ionesco, Arrabal e Octavio Paz, de acordo com Augusto de Campos.

Sua última década de vida foi agitada como todas as outras – tentou candidatar-se a deputada estadual, mas não conseguiu; escreveu sobre política e literatura para jornais como A Tribuna e Fanfulla, frequentou a Escola de Arte Dramática de São Paulo e publicou alguns poucos poemas até adoecer. Pagu faleceu em 12 de dezembro de 1962, em Santos, aos 52 anos idade, de câncer de pulmão. Uma morte precoce para uma vida precoce.

Pagu Mara Lobo Patrícia Solange Sohl: quem foi Pagu?

Reconstruir a imagem de Pagu na memória do brasileiro não é tarefa fácil. Protegida sob tantos pseudônimos, demorou anos para que alguns de seus trabalhos lhe fossem atribuídos. Também dificulta o fato de quase todo o seu trabalho ser crítico e estar espalhado em diversos periódicos, tornando ainda mais complicado não só o acesso, mas também o apreço do grande público pelo conteúdo.

Contudo, ao conhecermos um pouco mais de sua biografia, fica nítido que Patrícia Galvão foi renegada muito mais pelo seu comportamento e ações não serem o esperado para o seu gênero, sendo o esquecimento o melhor castigo para asfixiar as possíveis consequências sociais causadas por um espírito tão independente.

Seja como Patrícia, Mara Lobo ou Solange Sohl, a inquietude e a inconformidade guiaram Pagu à uma vida repleta de feitos extraordinários. Pagu foi Patrícia Galvão, filha, irmã e mãe. Pagu foi Mara Lobo, a militante do ideal, escritora do primeiro romance proletário do Brasil e autora de mais de duzentos artigos para o suplemento A Tribuna; Pagu foi Patsy, Ariel, G. Léa, K. B. Luda nos mais variados jornais em que colaborou com textos críticos sobre política, artes plásticas, teatro e literatura. Pagu foi, acima de tudo, apaixonada pelo povo pelo qual seria presa e torturada 23 vezes. Pagu foi a mulher do povo.

Há, portanto, que recordar a vida extraordinária dessa mulher do povo que ela foi, nunca na crista da crônica da sociedade, mas anônima na massa das gentes que andam a pé e de bonde, conversando com todos, a todos distribuindo a sua atenção e o seu modo de vida.

(Geraldo Ferraz, em A Tribuna, 16 de dezembro de 1962)


Referências




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