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Os gatos na história: entre massacres e mistérios


No fim da década de 1730, a rua parisiense Saint-Séverin viu acontecer uma cena minimamente chocante para nós, pessoas do século XXI: um massacre de gatos organizado pelos operários de uma gráfica. O acontecimento foi registrado por Nicolas Contat, um dos aprendizes da gráfica, em seu diário. É através dele que o historiador cultural Robert Darnton nos dá alguns dados bem interessantes sobre a figura mitológica dos gatos na história ocidental em seu livro O grande massacre de gatos na rua Saint-Séverin e outros episódios na história cultural francesa (The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History), e é neles que iremos nos concentrar. Mas, antes, o que diabos aconteceu na Rua Saint-Séverin que resultou em tamanha barbárie contra os bichanos?

Nicolas Contat, que se identifica como Jerome em seu escrito, vivia em uma Paris pré-industrial, trabalhando como operário aprendiz. De acordo com seu relato, escrito cerca de vinte anos depois dos eventos expostos, as condições de trabalho na gráfica Jacques Vincent eram as piores possíveis, especialmente para a classe de aprendizes: eles comiam sobras, dormiam no frio e na sujeira. Até o cozinheiro vendia para eles carne podre, além da jornada de trabalho desgastante. Isso é explicado pelo contexto histórico da França naquele período: resumidamente, houve uma eliminação de oficinas pequenas para dar lugar à oligarquia de mestres, os chamados “burgueses” pelo próprio Nicolas. Isso significava menos mestres (maior concentração de poder em poucos indivíduos), mais trabalhadores e, consequentemente, piores condições de trabalho.

O ódio desses aprendizes passou a ser transferido para os gatos. Os animais, que caíram nas graças dos burgueses, eram tratados de maneira muito carinhosa e, por vezes, luxuosa. Na casa dos patrões, a gatinha Grise (Cinzenta) era a menina dos olhos da patroa, que lhe dava um tratamento muito melhor do que os operários e aprendizes jamais receberam. Como se já não bastasse, os felinos não paravam de se espalhar por toda a rua, reproduzindo entre si e infernizando a vida dos trabalhadores com os barulhos no telhado e a lembrança de que suas vidas valiam muito menos do que a de animais. Sobre o assunto, Darnton resume:
"Embora os aprendizes pareçam as maiores vítimas, o texto deixa claro que um ódio pelos burgueses se espalhara entre os operários: 'os patrões adoram gatos; consequentemente (os operários) os odeiam'.”
Já não podendo conter sua consternação, o parceiro de trabalho de Nicolas resolve devolver suas noites mal dormidas aos patrões. Noite após noite, subiu no telhado do quarto do casal e, com suas formidáveis habilidades de imitação, passou todo o tempo fazendo ruídos de gatos, um verdadeiro “sabá” felino, atrapalhando o sono dos patrões tal qual acontecia com os trabalhadores da gráfica. A piada teve, de fato, um efeito: em certo dia, a ordem do burguês foi de que os funcionários dessem um fim nos gatos da rua. Essa foi a alegria dos operários e aprendizes, que teriam um gosto de vingança. A patroa, temerosa, só pediu que deixassem sua Grise em paz.


O episódio que se seguiu foi descrito como hilário pelo nosso narrador. Os funcionários da gráfica fizeram sim o serviço que lhes fora ordenado, começando pela gatinha Grise - a única que deveria ser poupada -, mas não pararam por aí. O massacre teve direito a uma encenação teatral de um julgamento: os gatos foram colocados em um saco enquanto réus acusados de feitiçaria e depois considerados culpados pelo juiz e outros integrantes do tribunal fictício. A pena? Enforcamento. Os gatos foram amarrados por cordas no pescoço e expostos como verdadeiros criminosos. Os patrões logo descobriram a cena e suas reações foram divergentes. O homem ficou enfurecido ao perceber seus funcionários se divertindo no horário de trabalho. A mulher, horrorizada pela cena macabra e ao reconhecer sua gata de estimação entre os réus enforcados - por mais que os operários e aprendizes tenham negado veementemente que fosse de fato ela.

Mas qual é a graça, afinal de contas? Bem, essa é a pergunta a que Darnton responde com muita eficiência em seu texto, e a explicação jamais caberia inteira aqui. No entanto, o que se pode adiantar é que o gesto de matança dos animais pode ser qualquer coisa de bestial para nós, pessoas deste presente tempo, mas representou uma verdadeira revolta de trabalhadores que passavam por um intenso processo de exploração, pois os protestos contra a violência sofrida eram expressos simbolicamente. Também é preciso frisar que a matança de animais para fins de divertimento não era algo incomum na Europa moderna. O historiador nos apresenta um exemplo muito nítido que eram os períodos de folia, festas que propunham uma subversão das normas e traziam o forte traço de chacota com a burguesia (charivaris). Nessas festas, os sons dos gatos torturados eram usados como música para os desfiles burlescos. Essas representações de cunho satírico eram fortes entre a camada popular do período. Em seu próprio texto, Nicolas descreve que seu companheiro de trabalho imitou a cena do julgamento por diversas vezes depois do massacre para os outros trabalhadores, provocando risadas entre eles.

Partindo disso, Darnton nos traz três pontos essenciais sobre a figura do gato, que permanece habitando o imaginário ocidental. É neles que nos adentramos agora.

Gatos têm ligação com a feitiçaria


Quando imaginamos uma bruxa, é comum que nos ocorra uma série de símbolos que a rodeiam. Um caldeirão, vassoura para voar, abóboras, caveiras, chapéu pontudo e... gatos pretos. Não é nada estranho que uma coisa esteja ligada à outra, pois tal associação pode ser compreendida historicamente, especialmente na França, onde - de acordo com Darnton - os gatos estavam conectados com um sem-fim de crenças populares na era moderna. Nesse período, os relatos de transfiguração de mulheres feiticeiras em gatos já eram comuns, o que causava o pavor dos camponeses ao cruzarem com os felinos à noite e resultava em mutilações nos bichinhos que supostamente impediriam a bruxa disfarçada de seguir com seus planos malignos. Vale lembrar, inclusive, que a tão conhecida caça às bruxas não foi tão forte na Idade Média quanto foi na moderna, apesar do senso comum. Para os curiosos desse recorte histórico, recomendamos o filme A sombra de Goya (2006), que traz uma cena memorável de interrogatório organizado pela Inquisição. E se essa associação de gatos e bruxas soa familiar, é porque provavelmente você deve ter visto em algum filme, série ou livro algo semelhante, e exemplos é o que não faltam.

Comecemos com um clássico absoluto: Thackery Binx, o gato preto de Abracadabra (1993), é lembrado por muito carinho pelos fãs e era, na verdade, um humano preso naquela forma animal. Diferentemente de outros casos, Binx não era amigo das bruxas, mas sim um aliado do grupo de crianças que buscam frustrar o plano das irmãs Sanderson. No entanto, o teor místico do gato em associação com bruxas ainda é presente na obra. 

Thackery Binx em Abracadabra (1993)
Mas nem só de conspiração vivem os gatos pretos. Salém, o tão querido personagem da série Sabrina, aprendiz de feiticeira (1996-2003) era fiel amigo da bruxinha adolescente protagonista. Seu comportamento sarcástico e egoísta, ao mesmo tempo extremamente carismático, reforça a imagem de um gato sobrenatural, inteligente e independente. Além do mais, Salém é, na verdade, um bruxo poderoso que foi condenado à forma de gato. Na versão dos quadrinhos, o motivo seria o abandono dele de sua poderosa noiva bruxa, Enchantra, no altar. Na série clássica, ele foi castigado por seus planos malignos de dominação mundial, o que parece bem apropriado.

A transfiguração de seres humanos, principalmente mulheres, em gatos é também um tema abordado na saga Harry Potter. A professora de transfiguração Minerva McGonagall continua imponente mesmo em sua forma felina, como podem constatar seus alunos que não ousavam jamais questionar sua autoridade. A personalidade da personagem combina bastante com a do estereótipo associado aos bichanos, já que, além de bruxa, ela é inteligente, extremamente séria e esbanja elegância. Além do mais, a sua perspicácia, felina ou não, foi essencial para o desenrolar da trama.

Gatos têm relação direta com sexo


O que as palavras "le chat", "la chatte", "le minet" do francês; "pussy" do inglês e "xaninha" do português brasileiro têm em comum? O fato de serem gírias com duplo significado: gato e vagina. Isso pode soar chocante, mas os gatos estão na linguagem popular representando a intimidade sexual há muito tempo. Darnton faz uma lista de expressões populares francesas que têm conotação sexual e referências à sexualidade feminina, muitas vezes de maneira bastante obscena. Não bastando, também entra pra lista expressões que remetem a orgias, traições e sedução.

Se isso parece pesado, basta refletir sobre as impressões cotidianas que continuam a permear a mentalidade ocidental. São comuns os comentários sobre os sons que os gatos fazem no período do cio e sobre o comportamento “libertino” dos animais de saírem para as ruas quando bem entendem. Mas talvez o maior exemplo dessa pauta seja a sensualidade atribuída aos movimentos dos gatos e a relação com a feminilidade.

Mulher-Gato (2004)
Partindo para a cultura pop, a Mulher-Gato é uma das anti-heroínas mais famosas da DC Comics. Sua personalidade flerta com a ferocidade, força e sensualidade ao mesmo tempo. O filme de 2004 infelizmente não agradou o público e muito menos a crítica especializada, mas é um exemplo da sexualização e fetiche da mulher-felina, que certamente mexe com a imaginação masculina cis e heteronormativa. Nem mesmo as animações fogem ao estereótipo: o longa de 2011, O Gato de Botas - uma releitura do conto clássico - somos apresentados à personagem Kitty Pata Mansa, uma gata sorrateira que carrega uma postura combativa e independente, mas ainda um tanto sensual e sedutora que, claro, cai nas graças do protagonista.

Nicolas, em seu diário, faz declarações um tanto chocantes quanto à sua patroa e, mais uma vez, a análise de Darnton é bastante elucidativa ao interpretar as camadas simbólicas do massacre e ritual. Ao matarem a gata Grise à pauladas, os operários estavam atacando diretamente e intencionalmente a patroa, como diz o historiador: "Os gatos, como símbolos, evocavam o sexo, bem como a violência, uma combinação perfeitamente adequada para um ataque à patroa. [...] Matando a gata, os rapazes a atingiram [...] O texto a descrevia como lasciva e 'apaixonada pelos gatos', como se ela fosse uma gata no cio, durante um selvagem sabá de gatos, com miados, matança e estupro". Em outras palavras, embora de modo velado, o gesto tinha a ver com estuprar simbolicamente a patroa e, consequentemente, humilhar o patrão.

Gatos têm poderes ocultos


Apesar da forte relação gatos-bruxaria, para os franceses modernos, nem sempre os animais precisavam estar ligados a uma bruxa para concretizar seus objetivos ocultos. Os poderes felinos, por vezes, eram até utilizados em rituais, como explica Darnton em seu livro. Na comemoração de São João Batista, dia 24 de julho, faziam-se rituais mágicos que envolviam todo tipo de tortura aos gatos para atrair boa sorte. Embora o ritual varie muito de região para região, "os ingredientes, em toda parte, eram os mesmos: um feu de joie (fogueira), gatos e uma aura de hilariante caça às bruxas". Alguns camponeses emparedavam gatos em suas casas para obter os poderes de proteção deles para o lar. Em 1843, a humanidade conheceu um conto escrito por um certo senhor - Edgar Allan Poe - que também continha um gato encerrado numa parede, mas o destino dos habitantes da casa passou bem longe da sorte. Para quem ainda não teve a oportunidade, vale a pena a leitura de O gato preto.

A sagacidade do gato com a habilidade de falar, e que é capaz até mesmo de conspirar contra uma entidade, é o caso do bichano de Coraline (Neil Gaiman). A heroína do livro só é capaz de passar pelas muitas provações de sua aventura com a ajuda do gato anônimo que a acompanha no mundo macabro que a menina acessa através da portinha de sua nova casa. Uma clara inspiração em Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll), cujo personagem felino é coadjuvante de diversas cenas icônicas com suas atitudes que são até confusas de serem compreendidas como positivas ou negativas. Tal qual Alice ou Coraline, somos levados a crer que os gatos do misticismo estão além dos julgamentos maniqueístas, e certamente fornecem gotas preciosas de sabedoria.
“ - Gatos não têm nomes - disse.

- Não? - perguntou Coraline.

- Não - respondeu o gato. - Agora, vocês pessoas têm nomes. Isso é porque vocês não sabem quem vocês são. Nós sabemos quem somos, portanto, não precisamos de nomes.”

Bem como em Coraline, os gatos também parecem ser agentes que conseguem acessar o mundo natural e espiritual sem muitos problemas, ou seja, são interdimensionais. Às vezes, seus poderes são até mesmo usados como portal para uma outra dimensão extraterrena. Uma cena bastante representativa é a do filme Constantine (2005), no qual o famoso caçador de demônios acessa o mundo infernal através dos olhos do gato da Angela, personagem coadjuvante. Além disso, os gatos estão ligados à intuição, que para o paganismo é um importante atributo para acessar planos mais elevados. Na carta Rainha de Paus do tarô Rider-Waite, a soberana tem um gato preto próximo ao trono, simbolizando os mistérios ocultos da carta, a independência e a intuição necessárias para seguir seu próprio caminho com coragem e ousadia.

Coraline (2009)

Falando no pet da Rainha de Paus, quem tem um gatinho em casa sabe que a ligação com os bichanos é forte, assim como a presença e influência deles dentro do local. Entre alguns lares franceses modernos, os gatos também eram associados a pautas domésticas: “Matar um gato era trazer infelicidade para seu dono ou para a casa. Se um gato abandonasse uma casa, ou parasse de pular no leito do dono ou da dona doentes, provavelmente a pessoa morreria. Mas um gato deitado na cama de um agonizante poderia ser o demônio, esperando para levar sua alma para o inferno”. No mesmo parágrafo, o historiador nos lembra do famoso gato de botas, que é - sem surpresa alguma - um personagem francês. De acordo com o livro Contos de fadas em suas versões originais, da editora Wish, o conto Le maître chat ou Le chat botté data do final do século XVII e narra os esforços de um gato para conquistar ganhos para seu dono com o uso de sua inteligência e um par de botas.

Dentro e fora do mundo da ficção, os gatos permeiam a mente popular com superstições, lendas e fantasias de todo tipo, protagonizando rituais e se tornando personagens de roteiros cinematográficos. Hoje em dia, já são protegidos por leis que garantem multas e prisões por maus-tratos aos animais, uma conquista especial para os gatos pretos, vítimas de grandes violências especialmente em sextas-feiras treze e outubros. Não poderíamos deixar de fazer uma homenagem a eles, que são símbolos tão significativos e arrancam sorrisos até dos góticos mais trevosos.

Referências

Comentários

  1. Que texto excelente! Não conhecia esse episódio retratado no início, mas gostei muito de saber essa interpretação simbólica da questão.

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    1. fico muito feliz que gostou, Ket! vale muito a pena a leitura do texto do Darnton sobre esse acontecimento.

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