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A literatura policial na Era Vitoriana: o romance de Newgate e a ficção de detetive


Em meados do século XIX, Paris perdeu o posto de rainha da civilização ocidental para sua vizinha – e inimizade de longa data – Londres. Comandada pela jovem soberana, Alexandrina Victoria Regina, a Rainha Vitória, Londres se tornou o epicentro de uma grande revolução social, industrial e política que estendeu seus tentáculos pelo mundo inteiro através do Imperialismo. Junto do desenvolvimento veio também o crescimento populacional exacerbado (as 2 milhões de pessoas se tornaram 6 milhões ao final do reinado de Vitória, em 1901), o modo de vida rural se transmutou rapidamente para o perímetro urbano, a tecnologia transformou os meios de produção e a paisagem passou a ser cortada por ferrovias, enquanto na costa navios a vapor partiam para conquistar mercados. Em 1890, uma em cada quatro pessoas na Terra era súdita de Sua Majestade, a Rainha Vitória.

Uma transformação tão grande não foi, no entanto, parte de um processo tranquilo. A industrialização e a urbanização rápida e desregulada também trouxeram consigo problemas sociais e habitacionais, além de uma inquietação em relação aos novos tempos e tecnologias. A ruptura de ritmo tradicional de vida mexeu com a psique humana e a teoria evolucionária de Charles Darwin, lançada em 1859, relativizou a existência do homem, abalando as certezas bíblicas que guiavam a sociedade. O desconhecido batia à porta e a ansiedade se tornava uma personagem constante na vida do vitoriano.

Tal angústia não demorou a se derramar na literatura. Em 1834, o escritor Thomas Carlyle declarou “Fechem seu Byron; abram seu Goethe”, sinalizando a mudança de tempos também para as letras. A nova literatura acordava do sonho romântico para o desconforto vitoriano, falando das deficiências sociais, da pobreza, das leis injustas, das condições de trabalho ineficientes e da condição precária da mulher. O crime também passou a ser uma pauta recorrente. O código penal sanguinário, as execuções públicas, o sistema judiciário falho e os assassinatos rapidamente foram absorvidos por escritores atentos.

Thomas Carlyle

Por um lado, alguns consideravam a ficção policial um assunto emocionante, por outro, apontavam que ler sobre ladrões e assassinos teria um efeito nocivo na moral e nos bons costumes. A inquietação, claro, encobria também um certo preconceito social: muitos apontavam que a popularização da literatura barata e sensacionalista poderia incentivar uma conduta violenta nos menos favorecidos. É neste cenário, em que terror e maravilha se confundiam, que surgiram duas formas de romance focadas na atuação criminosa: o romance de Newgate e a ficção de detetive.

O romance de Newgate


"Aquelas paredes terríveis da prisão de Newgate, que ocultaram tanta infelicidade e tamanha indizível angústia, não apenas dos olhos, mas, com muita frequência, e por muito tempo, dos pensamentos dos homens, jamais fora palco de um espetáculo horrível como aquele."

O romance de Newgate recebeu seu nome da famosa Prisão de Newgate situada em Londres. A estrutura, concebida ainda no século XII e reconstruída no século XVIII foi, durante muito tempo, cadafalso de figuras emblemáticas do crime vitoriano. Muito popular nas décadas de 1830 e 1840, a ficção de Newgate bebia não só da mítica criada em torno do lugar, mas também da publicação do The Newgate Calendar ou Malefactors’ Bloody Register, que desde 1773 fornecia relatos sobre crimes, além de confissões de seus perpetuadores, na esperança de dissuadir, através do exemplo de quem havia pagado com a própria vida, que o caminho do crime não compensava. O romance de Newgate se beneficiou de um período de popularização e consumo de jornais, periódicos e revistas ilustradas baratas sobre crime (penny dreadfuls e broadsheets) e também da criação de políticas que facilitaram a impressão e venda de papel.

Algumas das características mais comuns da ficção de Newgate foram o protagonismo de uma criança órfã, a presença de um grupo de criminosos que tentavam desvirtuá-la do bom caminho, um clima obscuro e chuvoso, além de apresentar gírias vulgares para ilustrar como viviam as pessoas no submundo criminoso. O romance Paul Clifford (1830), de Edward Bulwer-Lytton, considerado o pioneiro do Newgate, tem como protagonista um órfão de origem humilde que, injustamente acusado por um crime, acaba corrompido pelo sistema. É, no entanto, um personagem charmoso e inteligente que, ao final, encontra amor e fortuna. Ao se tornar popular, o livro foi um dos que incitou a discussão sobre o lado negativo de se apresentar um personagem imoral, porém carismático.


"O crime, assim como a morte, não se restringe apenas aos velhos e debilitados. Os mais jovens e mais belos com muita frequência acabam se tornando suas vítimas."

O debate público ficou ainda mais inflado em 1840, quando o criado de quarto, Bernard François Courvoisier, assassinou seu patrão, Lord William Russell, cortando sua garganta com uma navalha. Em um de seus depoimentos um detalhe chamou a atenção: Courvoisier relatou ter se inspirado no livro Jack Sheppard (1839-1840), de William Ainsworth, um famoso romance de Newgate, para seu ato de violência. Ainsworth acabou sendo rechaçado pela crítica, que o acusou de glorificar criminosos e, desta forma, inspirar a delinquência entre as classes populares.

Outro famoso romance que pode ser classificado dentro da ótica Newgate é Oliver Twist, de Charles Dickens. Publicado de forma seriada entre 1837 e 1839, o livro se concentra em uma gangue de jovens ladrões, liderados pelo vilânico Fagin, que tenta desencaminhar o protagonista, o inocente Oliver. Ladrões, prostitutas e roubos, além da famosa prisão de Newgate, fazem parte da trama. Porém o escândalo de Courvoisier e Jack Sheppard fez com que Dickens escrevesse um prefácio em Oliver Twist, em 1841, desassociando seu nome da escola literária e suas características. Dickens entendia como ninguém o perigo de uma reputação manchada para uma figura pública como ele e tratou logo de tentar distanciar sua novela do tema polêmico.

A ficção de Newgate passou a declinar ao longo da década de 1840, momento de uma grande crise econômica. Apesar de não ter desaparecido, o Newgate deu lugar a outras formas de romance voltadas para a denúncia de crises sociais e a condição da Inglaterra, através de uma literatura engajada e reformista.

A ficção de detetive


"Veja, meu caro Watson, não é difícil construir uma série de inferências, cada uma dependendo da anterior e cada uma simples em si mesma. Se, depois de fazer isso, a pessoa elimina todas as inferências centrais e apresenta ao público o ponto de partida e a conclusão, pode-se produzir um efeito surpreendente."

Não só de ladrões e assassinos famosos foi feito o período vitoriano. O outro lado da equação também recebeu seu grau de glamorização e fama. Dentre eles, a figura dos detetives entrou sob os holofotes ao longo do século e migrou para a literatura. Homens como o inspetor-chefe Frederick Abberline, (perseguidor de Jack, o Estripador) o detetive Jerome Caminhada ou ainda John Littlechild (contratado para reunir provas contra Oscar Wilde em 1893) acabaram se estabelecendo no imaginário popular.

O fascínio por detetives, no entanto, não foi algo instantâneo. Muito pelo contrário, no início do século, os vitorianos torceram o nariz para a força policial. A Força Policial Metropolitana, com caráter profissional, foi estabelecida por Sir Robert Peel em 1829. O foco inicial era a prevenção do crime e não necessariamente a detecção dele – isso passaria a acontecer apenas em 1842, quando foi criada a primeira classe de detetives profissionais. A população, porém, não gostou muito da ideia, pois tinha receio de que a força policial pudesse ser tendenciosa e corrupta, além de ameaçar a liberdade pessoal dos indivíduos.

Arthur Conan Doyle

Nesse ínterim, os romances com detetives foram essenciais para alterar a opinião negativa. Charles Dickens, em especial. Em 1851, Dickens acompanhou o Inspetor Charles Field, da Scotland Yard, e seus homens em incursões noturnas pelas ruas sombrias de Londres. A experiência foi posteriormente publicada no periódico Household Words através do elogioso ensaio On duty with Inspector Field. Ao mostrar Field como um paladino da justiça, se infiltrando na poluição, pobreza e miséria em serviço dos bons cidadãos, Dickens ajudou a virar a situação a favor da força policial. Assim, detetives amadores ou profissionais, corretos ou corruptos, ganharam espaço em romances como A mulher de branco (1859), de Wilkie Collins, O segredo de Lady Audley (1862), de Mary Elizabeth Braddon, A casa soturna (1853) de Charles Dickens e nas famosas aventuras de Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle.

A fascinação vitoriana com a figura do investigador também se fixou por causa de motivos menos nobres e preconceituosos. À medida em que o Império se expandiu e as cidades britânicas começaram a receber mais imigrantes estrangeiros, surgiu entre as classes médias e altas a preocupação com o perigo que “o outro” representava. A ideologia do imperialismo insuflou a teoria de que havia raças inferiores e moralmente corruptíveis que ameaçavam a estabilidade social do verdadeiro cidadão inglês. Nesse ínterim, surge o bom detetive que, dotado de senso apurado, consegue apontar de onde vem o perigo e identificar visualmente o elemento criminoso. Não raras vezes, as nêmeses dos investigadores eram estrangeiras (judeus, franceses, indianos), o que conversava com as pseudociências que, naquele momento, relacionavam aparência com sordidez moral.

O brilho da figura do detetive diminuiu um pouco em 1877, durante o escândalo do julgamento dos detetives, que levou para o banco dos réus membros da força policial envolvidos em um esquema de fraudes de apostas. O desdém do público foi tanto que a Scotland Yard precisou renomear o departamento de investigação para Departamento de Investigação Criminal (CID), omitindo a palavra “detetive” da equação. A era de ouro dos investigadores, no entanto, tomou fôlego na última década do século XIX, quando Arthur Conan Doyle passou a publicar histórias sobre um certo detetive astuto e peculiar.

O romance de Newgate e a ficção de detetive transcendem classificações e muitas vezes se confundem dentro das mesmas histórias, além de conversarem com outras formas de romance que nasceram no período vitoriano (como o Romance Sensacional). Para além das definições, é interessante observar como a ficção policial surgiu em um contexto de ansiedades e expôs excitações e receios do público leitor e dos próprios escritores. Sua habilidade em se modificar e se adequar a novas realidades e aos medos das pessoas torna a literatura policial sempre atual. Os crimes podem mudar, mas a natureza humana permanece, se não de todo, parcialmente inalterada.

Referências

Comentários

  1. Demais!! Às vezes a gente esquece dos contextos e de como os movimentos literários retratam momentos da sociedade.

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    1. Obrigada! A literatura geralmente bebe da realidade, é fascinante perceber essas nuances!

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