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Charles Dickens, o caçador de fantasmas

Charles Dickens era um caçador de fantasmas da vida real. 

O autor de tantos clássicos amados e adaptados diversas vezes para as telas, como Um conto de Natal e David Copperfield, tinha alguns hobbies curiosos. Ele foi um dos primeiros fascinados por true crime. Chegou a fazer amizade com a polícia londrina para estar a par das investigações dos terríveis homicídios que ocorriam na violenta Londres do século XIX. Além de ser inclinado ao gore, Dickens também se interessava pelo que acontece depois da morte. 

Em meados do século XIX, um grupo de estudantes da Trinity College em Cambridge começou a se reunir para conversar sobre fantasmas, espíritos e todas as coisas sobrenaturais. A ideia não era nova: a Inglaterra estava há algumas décadas envolvida no espiritualismo, a crença na comunicação com os mortos. Anos depois, em 1862, o grupo já tinha ido para Londres e formado uma sociedade: The Ghost Club. Foi nessa época que Charles Dickens entrou como membro fundador. 

Charles Dickens

O The Ghost Club ainda existe, sendo considerado um dos mais antigos grupos de investigação paranormal do mundo. Mas foi ridicularizado em sua fundação. É preciso lembrar que a década de 1860 foi o apogeu do espiritualismo em Londres. Havia uma energia contagiante nas sessões (séances) e em histórias de fantasmas; aparentemente, todo mundo tinha uma. Ainda assim, o clube de Dickens foi considerado bobo pelo The London Times. Foi o fato de Charles Dickens ser um de seus membros que deu alguma legitimidade ao clube. 

Mesmo um nome de peso como Dickens não parecia ser o suficiente para que aquela fosse considerada uma organização séria. Porém, enquanto outros membros eram crédulos, procurando ativamente pelo sobrenatural, Dickens era um homem da ciência com fascínio pelo mistério. Ele até poderia ansiar secretamente por encontrar um espírito, mas assemelha-se muito mais com a turma do Scooby-Doo, revelando fantasmas que eram apenas truques de pessoas comuns. 

Mas Dickens não foi o único autor famoso a juntar-se ao clube. Sir Arthur Conan Doyle também fazia parte - e, além de tudo, era espiritualista. Enquanto seu personagem, Sherlock Holmes, era lógico, Conan Doyle acreditava em qualquer coisa sobrenatural, de fantasmas a fadas. A ideia de juntar-se ao The Ghost Club era para provar que fantasmas existem. 

Mas nos voltemos a entender um pouco o espiritualismo daqueles tempos. 

Espiritualismo na era vitoriana 

O espiritualismo se tornou uma febre durante a década de 1850. Seu início, todavia, vem de algumas décadas antes, quando Emanuel Swedenborg postulou questões sobre o mundo espiritual em meados de 1700. Seus seguidores foram muitos, e Swedenborg, um cientista sueco, conseguiu notoriedade com suas ideias inconvencionais, com o estímulo adicional de Anton Mesmer, médico alemão do século XVIII, e suas experiências com o que ele chamava de magnetismo animal (ou, como ficou conhecido, o mesmerismo - que deu origem a um dos melhores contos de horror já escritos, O caso do sr. Valdemar, de Edgar Allan Poe), que ele acreditava envolver a influência de corpos celestes sobre os terrestres e a possibilidade de cura através do magnetismo espiritual.  

Quase um século se passou até que as teorias de Swedenborg invadissem a Inglaterra com tamanha força. Ainda que a era vitoriana seja associada ao progresso científico e tecnológico, a cultura era muito rígida e não era todo mundo que aceitava simplesmente uma doutrina diferente da dita na igreja. Existia uma desconfiança para com tais ideias de contato com o mundo espiritual. Mas justamente todo esse progresso científico auxiliou para que uma flexibilidade nas crenças vitorianas fosse aceita - o que parece contraditório, mas não é: se pensarmos nas mudanças que eles viram em seu mundo, até então igual a de seus antepassados, e em tudo o que foi contestado e descoberto em pouco tempo, a era vitoriana realmente vai nos parecer muito mais animada nesse sentido. Era um mundo novo: tudo podia acontecer. E se a morte realmente não fosse o final? E se as pessoas não tivessem de esperar até depois de sua morte para rever e conversar com entes queridos? Era uma ideia desafiadora, mas por que não, num mundo onde tudo estava mudando e cada vez mais a ciência mostrava-se miraculosa? Se cientistas mesmo e pessoas de renome, respeitadas na sociedade, acreditavam ser possível, então deveria ser. Muitos vitorianos então tornaram-se próximos de experiências paranormais, sobrenaturais e do oculto, cujas formas mais populares no período incluíam o mesmerismo, a clarividência, a eletrobiologia, a cristalomancia, a leitura de pensamentos e, acima de tudo, o espiritualismo. 

É difícil estabelecer uma data precisa para qualquer evento histórico, mas em geral aceita-se que o movimento espiritualista começou em 31 de março de 1848 em Hydesville, Nova York, quando duas crianças, Margaret e Kate Fox, alegaram que tinham se comunicado com o espírito de um homem assassinado naquela casa anos antes de sua família se mudar. A casa já tinha a reputação de mal-assombrada, e muitos barulhos inexplicáveis eram ouvidos pela família. Kate, então, teria desafiado o espírito a comunicar-se, o que resultou no início do código de batidas espiritual: uma para sim, duas para não. Um artigo sobre o caso foi publicado no New York Tribune e subsequentemente em outros jornais nos Estados Unidos e na Europa, tornando as irmãs Fox famosas. 

As irmãs Fox, Margaret, Kate e Leah

A ideia do espiritualismo, a partir de então, tomou corpo através da crença de que os vivos poderiam se comunicar com os mortos com a ajuda de um médium dotado da capacidade de transmitir mensagens ou, até mesmo, incorporar espíritos. Não demorou muito para que as sessões, nas quais os médiuns realizavam seu trabalho, se tornassem eventos disputados, um grande entretenimento da época - e, para aqueles que as frequentavam, prova cabal da vida após a morte. 

Esse espiritualismo moderno ganhou terreno na Inglaterra em 1852, quando a estadunidense Maria B. Hayden visitou Londres e ofereceu seus serviços como médium. Ela foi a primeira médium estadunidense a visitar o país, acompanhada de um homem chamado Stone, que professava ser especialista em eletrobiologia - o que hoje entendemos como a hipnose clássica vista em tantas produções cinematográficas, a arte de induzir alguém a um estado alterado de consciência através do olhar para discos metálicos. Maria tinha outro método de entretenimento: ela conduzia sessões com batidas na mesa que indicavam mensagens de espíritos. Pouco depois, sessões similares foram oferecidas em casas de médiuns ingleses. 

Sessão (1898)

Nos últimos anos da era vitoriana, muitas pessoas eram engajadas na comunicação com espíritos. A presença de Maria Hayden certamente auxiliou para que a prática se tornasse comum nas casas vitorianas. Alguns nomes históricos frequentaram as sessões da médium, como Robert Chambers, o escritor e geólogo escocês. O espiritualismo vitoriano atraiu pessoas de diferentes classes sociais - até mesmo a Rainha Vitória teve seu papel nisso. A rainha e o Príncipe Albert participaram de sessões espiritualistas antes que o espiritualismo se tornasse popular. Era 1846 e eles já estavam envolvidos no movimento. Em 15 de julho daquele ano, a clarividente Georgiana Eagle demonstrou como funcionava uma sessão para a rainha na Osborne House, na Ilha de Wight, a primeira de muitas que acompanhariam a vida da monarca. Anos mais tarde, em 1861, no ano em que o Príncipe Albert morreu, um rapaz de 13 anos que vivia em Leicester, Robert James Lees, que havia participado de uma sessão familiar, entregou uma mensagem de Albert para a rainha na qual ele a chamava por seu apelido, conhecido apenas por ela mesma e por ele, o falecido marido. Lees foi convidado para sessões no palácio Windsor desde então, sessões nas quais Albert era chamado. Depois de sua morte, a própria Rainha Vitória supostamente enviou mensagens para sua única filha ainda viva, a Princesa Louise, através do médium Leslie Flint, que destacou-se por dar voz aos espíritos, incorporando-os e fazendo com que as pessoas que ali estivessem ouvissem a voz do ente querido em questão. Suas sessões eram consideradas muito emocionantes por causa disso. 

É importante notar que a maior parte desses nomes de médiuns são femininos. Para os vitorianos, eram as mulheres as mais bem quistas dentro do espiritualismo, pois acreditava-se que elas eram de natureza muito mais espiritual do que os homens. Uma mulher médium era muitas vezes considerada uma melhor comunicadora espiritual do que um homem médium porque alegava-se que as mulheres tinham uma predisposição natural à perfeição espiritual. Não é à toa, portanto, que tantas mulheres se interessassem pelo espiritualismo. Numa época em que a voz da mulher não era levada a sério, esse movimento espiritual era encabeçado por elas, diferentemente do que acontecia em igrejas, por exemplo. Para o espiritualismo, a mulher estava mais próxima ao mundo espiritual do que qualquer criatura. Há algo de subversivo nisso, e os vitorianos certamente aproveitaram-se dessa ideia para aumentar o status das mulheres na rígida sociedade do século XIX. 

Suposta foto de fantasma no Palácio de Hampton Court (início de 1900)

O avanço do espiritualismo foi rápido, e na década de 1860, a prática já havia se tornado parte da subcultura vitoriana com seus médiuns, jornais especializados, panfletos, sociedades e sessões públicas e privadas que incluíam batidas na mesa, mesas girantes, psicografia, levitação e outras formas de comunicação espiritual. Tudo era um grande e emocionante evento - mas nem todos acreditavam que aquela maravilha pudesse ser real. 

Charles Dickens: um cético no mundo espiritual 

Já Dickens era meio cético. Ele queria acreditar, e por isso juntou-se ao The Ghost Club, mas ao mesmo tempo tinha suas dúvidas. Ele tinha uma mente científica, voltada para a lógica. Para ele, era difícil simplesmente acreditar em algo apenas porque todo mundo o fazia. Mas mais difícil ainda é livrar-se daquilo que fez parte da nossa criação, que moldou nossa visão de mundo. Sua obsessão por fantasmas vinha da infância, desde que sua babá, Miss Mercy, lhe contava histórias de coisas estranhas e inexplicáveis. Ele também era aficionado por hipnose, que praticava em sua esposa para aliviar suas dores de cabeça (embora nunca tenha permitido que alguém lhe hipnotizasse, curiosamente). 

Por mais que fosse um homem da ciência, Dickens nunca se desgarrou de suas origens em histórias sobrenaturais. Na infância, as histórias que sua babá lhe contava eram as mais impressionantes, nunca lhe poupando dos detalhes sangrentos ou fantasmagóricos. Segundo o escritor, a babá foi "responsável pela maioria dos cantos sombrios" de sua mente. Uma das leituras de Dickens na adolescência era o penny dreadful The Terrific Register, no qual lia histórias sobre assassinato, fantasmas, incesto e canibalismo. Crescendo com tais histórias, sua imaginação foi estimulada, assim como sua curiosidade. 

Ainda que seu interesse por histórias assustadoras não tenha diminuído, Dickens tornou-se menos crédulo conforme crescia. É interessante observar que embora vivesse numa era de especulação espiritual, ele desenvolveu a mente de um cético. Para ele, as aparições eram resultado de questões científicas. Mas ele soube usar muito bem seu interesse por histórias assustadoras e na ideia do pós-vida mesclado à sua (falta de) crença em algo a mais. Além de ter revelado várias sessões e possíveis fantasmas como apenas um teatro, um verdadeiro espetáculo feito para entreter e ganhar dinheiro de pessoas que genuinamente acreditavam ser aquilo uma verdadeira conexão com o tão - prometido durante séculos - mundo espiritual, Dickens aproveitou para liberar sua criatividade e transformar o foco da sociedade vitoriana no sobrenatural e sua natural descrença em histórias que lhe renderam fama, fortuna e diversão. 

Para Dickens, as sessões eram menos assustadoras do que uma boa história de fantasma. E ele escreveu muitas: foram mais de duas dúzias delas. Enquanto escrevia para seus leitores, famintos por histórias assustadoras, ele também se divertia com aquilo que lhe chamava a atenção desde a infância. Ainda por cima, aproveitava para exibir seus dons teatrais ao apresentar leituras em diversas cidades, interpretando suas personagens conforme lia os textos. 

O escritor era produto de sua época, e aproveitou a ocupação inusitada, que lhe permitia ter um bom tempo disponível, para engajar-se naquilo que lhe fazia brilhar os olhos. Foram diversos os casos desvendados por ele no The Ghost Club, tudo utilizando de métodos aprendidos com a Scotland Yard, a polícia metropolitana de Londres, por meio da qual ele acompanhou, durante muitos anos e antes da chegada dos caça-fantasmas em sua vida, a investigação de detetives que tentavam acabar com a onda de crimes violentos na cidade. Dickens mantinha anotações detalhadas sobre isso e as usou tanto em suas histórias quanto em sua caça aos espíritos na vida real. 

Dickens acreditava que a maior parte dos fenômenos sobrenaturais eram "uma desordem dos nervos ou sentidos". Ele queria encontrar fantasmas, mas também gostava de desmascarar histórias falsas no The Ghost Club, onde permaceu até sua morte. Depois, em 1870, o clube se dissolveu por muitos anos, tamanha a influência que o escritor tinha lá. Mas suas histórias, tanto as ficcionais quanto as de caça a fantasmas, permanecem vivas na mente dos leitores e dos entusiastas do sobrenatural. 

Referências 



Arte em destaque: Mia Sodré

Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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