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Pânico satânico: o surto coletivo que nunca acabou


Um grupo de jovens nerds numa cidade pequena ouve rock e alguns tocam numa banda. Os atletas da cidadezinha não gostam muito deles, mas a convivência é relativamente harmônica; até que alguém é assassinado e os jovens amantes de heavy metal e de Dungeons and Dragons são considerados os principais suspeitos, sem nenhuma prova concreta. 

Talvez você tenha reconhecido essa narrativa como parte do enredo da 4ª temporada de Stranger Things. No entanto, a série, cuja história se passa nos Estados Unidos da década de 1980, retrata um fenômeno real: o pânico satânico (ou satanic panic, em inglês). 

Durante os anos anteriores já havia uma certa tensão se criando na sociedade estadunidense: a contracultura havia se fortalecido com o movimento hippie, e valores tradicionais, como a monogamia, a heteronormatividade e o american way of life, um estilo de vida baseado no consumo, eram cada vez mais questionados pelos jovens, que, por sua vez, eram malvistos pelas gerações mais velhas. Na década de 1970, esse cenário de animosidade social foi intensificado por um momento de recessão, inflação, aumento de desemprego e queda no poder de compra. A crise econômica, por sua vez, aumentou a criminalidade, gerando uma onda de medo na população.  

No meio do caos, os cidadãos buscavam um culpado para a má-sorte da nação, e acabaram encontrando as respostas que procuravam no pânico satânico, isto é, na ideia de que todos os reveses eram criados, de alguma maneira, pelo próprio Diabo, um mal sempre à espreita, apenas esperando para se manifestar. 

Witchcraft: witches and devils dancing in a circle (1720)

Mas por que culpar o próprio demônio?  Embora o nome "pânico satânico" tenha surgido especificamente para designar a onda de terror que surgiu nos Estados Unidos na segunda metade do século XX - e que se disseminou a partir de então -, a perseguição a Satã e a pessoas que, teoricamente, tenham alguma ligação com ele é muito anterior. Era essa, justamente, a premissa que levou mulheres à morte na forca ou no fogo durante a caça às bruxas. Percebe-se, então, como o cristianismo facilita a perseguição a grupos minoritários ou alternativos, pois é fácil declará-los inimigos ao associá-los ao Diabo: uma relação que, por seu caráter metafísico, não pode ser comprovada de modo concreto, mas que, mesmo assim, ganha força ao apelar à crença e ao medo das pessoas. Dessa forma, pensar que todos os males são causados pelo demônio e por seus seguidores não é nenhuma novidade, e sim um lugar-comum na história

Charles Manson e os Beatles 

Em 1969, um grupo de jovens, a mando de Charles Manson, invadiu a casa do diretor polaco Roman Polanski, em Los Angeles, e matou sua esposa, Sharon Tate, de 26 anos, que estava grávida. Sobre uma porta, com o sangue da atriz, escreveram "pig" ("porco", em inglês).  No dia seguinte, mataram um casal, Leno LaBianca e Rosemary LaBianca, e escreveram as palavras "death to pigs" ("morte aos porcos") em sangue e, na geladeira, as palavras "Helter Skelter", termos que remetiam a duas músicas dos Beatles (Piggies e Helter Skelter).  O caso, além de ter gerado pânico, foi o que motivou a pretensa relação entre o rock e o satanismo. Embora os membros da Família Manson não alegassem ter feito qualquer tipo de pacto com o demônio, as cenas dos crimes aparentemente ritualísticas, com palavras escritas em sangue humano, foram suficientes para que a população presumisse que os atos violentos que haviam cometido só podiam ser invenção do Diabo. 

O próprio Manson justificou a perseguição às bandas de rock ao declarar, como explicação para os assassinatos que comandou: 

"São os Beatles, as músicas que eles estão fazendo. Os jovens ouvem essas músicas e entendem a mensagem. É subliminar. Eu não escrevi as músicas. Eu só ouço o que elas dizem. Dizem ‘Levante-se’. Dizem ‘Mate’. Por que me culpar? Não fui eu quem escreveu as músicas.”

A partir daí, as bandas de rock passaram a ser associadas ao satanismo. As pessoas começaram a buscar mensagens escondidas nas gravações e teve início, então, a conhecida mania de tocar os discos ao contrário. Ao falar sobre isso, os apresentadores do podcast Seitas explicam que, de fato, bandas como os Beatles estavam experimentando e que chegaram a gravar mensagens escondidas em suas músicas, que só poderiam ser compreendidas ao tocá-las de trás para a frente – mas não havia nada de satânico nessas mensagens. O problema, conforme explicam, é que o cérebro humano está programado para reconhecer padrões, fenômeno conhecido como pareidolia: ao ouvir um mesmo som muitas vezes, é comum que ele comece a fazer sentido, pois a mente passa a associá-lo a palavras que conhece. Assim, muitas das mensagens satânicas que foram associadas às canções de diversas bandas, como Stairway to heaven, de Led Zeppelin, e algumas músicas dos próprios Beatles, são apenas fruto da imaginação de pessoas que já estavam influenciadas pelo medo generalizado. 


Rock satânico 

O pânico só aumentou quando, em 1980, foi publicado o livro Michelle remembers, escrito pelo psiquiatra Lawrence Pazder sobre a vida de uma de suas pacientes, Michelle Smith. Durante as sessões, a mulher afirmava ter sofrido diversas agressões sexuais em rituais satânicos quando criança. Não havia nenhuma prova para embasar suas afirmações, mas a história que contava e a autoridade de um médico por trás da publicação bastaram para intensificar a crença de que os satanistas estavam por toda parte e de que eram culpados por todos os problemas que a sociedade estadunidense sofria. 

Conforme o pânico satânico se naturalizava na sociedade, a má fama do rock crescia. Em 1984, um adolescente chamado Ricky Kasso matou seu colega, Gary Lauwers, enquanto dois outros amigos presenciavam. As testemunhas disseram à polícia que, antes de matar Gary, Kasso lhe ordenara: “Diga que ama Satã!”

A mídia passou a retratar Kasso como um satanista, mas também enfatizou o seu gosto por bandas de rock: no dia em que foi preso, o jovem vestia uma camiseta da banda AC/DC. Além disso, parentes e amigos disseram à imprensa que ele ouvia Judas Priest e Ozzy Osbourne. Tudo isso acabou por reforçar a visão de que o rock é “a música do demônio”, como ouvimos dizer até hoje. No ano seguinte ao crime de Kasso, chegou-se até mesmo a criar uma lista com quinze músicas de rock proibidas – The Filthy 15 (algo como “As 15 imundas”), às quais os pais precisariam se atentar, pois deveriam impedir que os filhos as escutassem. 

Black Sabbath

Em 1988, um menino de 14 anos, Thomas Sullivan Jr., matou a própria mãe, botou fogo em sua casa e depois se suicidou. Os investigadores encontraram livros sobre ocultismo e satanismo na residência. Depois, veio a conhecimento do público que o jovem era fã de Black Sabbath, banda britânica de heavy metal. Mais uma vez, ressurgia o medo de que as músicas que os jovens escutavam estavam tornando-os violentos. 

A verdade por trás do pânico 

Em alguns casos, contudo, houve mesmo uma relação mais direta entre rock e satanismo. O caso mais conhecido ocorreu em 1995, e inspirou o filme Garota infernal (Jennifer’s body), estrelado por Megan Fox e Amanda Seyfried

Numa cidade de Califórnia, Elyse Pahler, uma menina de 15 anos, foi assassinada por três adolescentes. Os jovens fingiram ser seus amigos, mas tinham um plano desde o princípio: eles sacrificariam a menina em nome de Satanás para que se tornassem músicos famosos com sua banda de rock. No julgamento, os garotos tentaram livrar-se da culpa, dizendo que as músicas da banda de trash metal Slayer haviam sido responsáveis por influenciá-los. Diante das afirmações, os pais de Elyse tentaram processar o grupo musical, mas os juízes desconsideraram o caso por afirmarem que não havia como responsabilizar as músicas pelas ações dos meninos. Mais tarde, um dos criminosos confessou que a razão do assassinato era, simplesmente, que eles eram obcecados pela menina e, principalmente, obcecados pela ideia de matá-la. 

Slayer

Tanto no caso dos garotos quanto no caso de Charles Manson, o que fica claro é que o rock, já marginalizado por ser um movimento de contracultura, que buscava quebrar tabus e contestar as tradições, foi usado como desculpa para atos criminosos. Os responsáveis pelos crimes estavam apenas tentando não ser responsabilizados pelas próprias ações, mas não conseguiram provar nenhuma relação entre ouvir rock e agir de forma violenta. 

O surto que nunca acabou 

Ainda hoje, há muito preconceito envolvendo o rock e tudo aquilo que é associado a ele: piercings, tatuagens, roupas pretas... Por meio de produções culturais – filmes, por exemplo, como O Exorcista ou O bebê de Rosemary -, os Estados Unidos exportaram o pânico satânico para todo o mundo, de modo que até para quem vive no Brasil não é novidade a ideia de tocar discos de trás para a frente ou de procurar mensagens subliminares, supostamente demoníacas, em letras de música. 

A questão é que a histeria coletiva também é responsável por amplificar o moralismo na sociedade: a maioria conservadora, por preservar o “bem” e a tradição cristã, sente-se no direito de perseguir quem questiona essa ordem – o que é justificado, é claro, uma vez que a subversão significa que estão associados a algo maligno, talvez ao próprio Satanás. O pânico satânico, nesse sentido, persevera em discursos que defendem a “família de bem”, mas que são violentos frente a gays, transexuais, esquerdistas, artistas, dentre outros grupos que ameacem, de alguma forma, a ordem vigente. 

Enquanto houver uma polarização tão intensa na sociedade, ao ponto de dividir a população entre grupos "do bem" e grupos "do mal", é muito provável que o pânico satânico continue fazendo parte do imaginário coletivo a fim de justificar atos terríveis - não por parte de jovens satanistas que gostam de bandas de rock, mas por parte da população conservadora. 

Referências 





Arte em destaque: Caroline Cecin 

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