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Noite na Taverna: o macabro e a naturalização da violência


A literatura brasileira, diferentemente do que muitos pensam, teve seu período gótico, conhecido como Ultrarromantismo. Desse período, uma das obras mais emblemáticas e escabrosas é Noite na taverna (1855), de Álvares de Azevedo.

O autor deixou apenas 3 obras, sendo Noite na taverna publicada postumamente, sob o pseudônimo de Job Stern. Álvares de Azevedo viveu em São Paulo - cidade apelidada de “ninho de heresias” nesse período - e morreu de tuberculose, aos 20 anos. Sendo o autor um jovem em um período turbulento da história, bebendo da fonte de intelectuais europeus de cunho pessimista e assistindo à morte de amigos e parentes levados pelo “mal do século”, Álvares se embrenhou por uma prosa marcada por caos, tabus, medo e boemia, tornando Noite na taverna a prosa mais byroniana da literatura brasileira.

Escrito por jovens em tempos epidêmicos, desnorteados pelas mudanças sociais e desejando transgredir a hipocrisia do Romantismo nacionalista da primeira geração, o Ultrarromantismo teve forte influência do gótico europeu. Noite na taverna chama atenção, principalmente, pela forma de apresentar o horror e o macabro no texto: não há monstros, demônios ou criaturas sobrenaturais, apenas jovens libertinos e suas histórias de abusos, violências e egocentrismo.

A história se inicia em uma madrugada com um grupo de amigos reunidos na taverna - sem nome e sem localização geográfica. Embriagados, cada um decide revelar um período macabro de sua vida. Cada confissão é tratada em um capítulo, narrado por um dos amigos em forma de monólogo. Os cinco personagens principais - Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann e Johann - se inocentam de seus atos criminosos sempre com a desculpa de uma alma atormentada, de ser um jovem inconsequente ou estar em uma situação limite, apaixonado ou lutando por sobrevivência. A vida boêmia levada pelos homens é resultado de seus passados atormentados, crimes hediondos demais para torná-los dignos de uma vida comum e feliz.

Solfieri é o primeiro a contar sua história: em dado momento, em Roma, vê uma mulher pálida e a persegue pela rua, acordando no dia seguinte em um cemitério. Um ano se passa e o narrador retorna à Roma, reencontrando a mulher, dessa vez em um caixão na igreja. Sem hesitar, Solfieri fecha as portas da igreja e comete necrofilia com o corpo inanimado da mulher. Ao fim, ela acorda e o narrador descobre que ela estava em estado de catalepsia, ou seja, apenas estava desacordada. Se não bastasse ter abusado de uma jovem inconsciente, Solfieri sequestra a moça, carregando-a em seus braços até seu quarto. A jovem morre dias depois, decorrente de uma febre que a faz alucinar dia e noite. Para completar o arco doentio de “paixão”, o homem pede a um escultor que crie uma estátua idêntica à mulher e, depois, a enterra em uma laje dentro de seu próprio quarto. Ele dorme em cima da laje durante um ano inteiro, entretanto, ao ser questionado sobre a identidade da mulher, ele responde: “Quem se importa com uma palavra quando sente o vinho lhe queimar assaz os lábios? quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia e sentiu morrer a seus beijos [...]”.

A adaptação para a HQ (de Carlos Patati) trabalha cores sóbrias e opacas desde o prólogo. Há a escolha por rostos sem olhar andando pelas ruas e feições cansadas expressadas pelos cinco protagonistas. A proposta dessa adaptação - além de adotar uma linguagem menos rebuscada - é que cada capítulo seja ilustrado por um artista diferente. Neste, o artista escolheu tons de azul e branco e criou a cena de necrofilia explicitamente, desenhando até mesmo o ato refletido no vitral da igreja. É perceptível também a cor voltando ao rosto do então cadáver e, em seguida, a expressão amedrontada da mulher. O detalhe final são as flores murchas que Solfieri carrega no pescoço: são as mesmas presentes no caixão da mulher.

Noite na Taverna (Volume 1, Coleção HQ)

Após a fala do amigo, Bertram se propõe a contar seu episódio mórbido. Ainda jovem, duelou com dois amigos para ficar com Ângela. Entretanto, seus esforços foram em vão, visto que o rapaz precisou partir para a Dinamarca. Ao voltar, descobriu que a mulher se casara e agora tinha um filho. Ainda assim, se envolve com Ângela, culminando na descoberta da traição pelo marido. Para resolver a questão, Ângela degola o marido e o filho e os apresenta para Bertram como um ato de amor. Apesar do susto, o narrador segue com a mulher, viajando e se esbaldando na boêmia, até que ela o abandona. Na adaptação, o ilustrador decide suavizar a cena com traços mais caricatos; ainda assim há a presença de ossos e muito sangue na cena do infanticídio. 

A naturalização desse episódio tanto por Bertram, que segue viagem com a mulher, quanto pelos amigos, que escutam a narração, é escabrosa por si só. Todavia Bertram continua. Conta que, em seguida, se envolveu com uma jovem, a desonrando e a entregando a um pirata como pagamento de dívida de jogo. Assombrado com os rumos de sua vida, tenta suicidar-se pulando no mar. Acaba sendo salvo, e aí se inicia mais um ato mórbido: pouco tempo depois de subir a bordo, o navio entra em combate e acaba naufragando, restando apenas dois marinheiros, o comandante, sua esposa e Bertram. Os dois marinheiros morrem, restando apenas o casal e o narrador - que tinha interesse amoroso na mulher. Com a fome e os dias se passando, ambos decidem sacrificar o comandante, que implora por sua vida. Bertram o sufoca, sobrevivendo de sua carne durante dois dias. Com o envolvimento entre o narrador e a mulher, eles fazem um pacto de morrer juntos; apesar disso, somente ela se mata, atirando-se ao mar. O infame antropofágico é resgatado pouco depois.

O próximo a contar sua tragédia é Gennaro. Jovem pintor, começa a viver com um mestre que tinha uma filha jovem e uma segunda esposa. O narrador conta como se envolveu com as duas: amorosamente com Nauza (a esposa) e sexualmente com Laura (a filha). Laura engravida e pede que ele se case com ela; com a negativa, a menina adoece e morre pouco tempo depois, junto da criança não nascida. O velho mestre, tomado por tristeza, não percebe o adultério dentro de sua casa, até pegar Gennaro em sua cama com Nauza. Tomado de ira, o mestre pintor conta que sabe da culpa de Gennaro na morte de Laura e que não permitirá tamanha traição do rapaz. Deu a ele duas escolhas: jogar-se da montanha em um suicídio ou ser assassinado ali mesmo. O rapaz decide se jogar. Acaba por sobreviver e, recuperado, vai em busca de vingança. Chegando na casa encontra o casal morto, apodrecendo, na sala de jantar, envenenados pelo próprio velho mestre.

Neste, o ilustrador focou nas expressões das personagens, trazendo a agonia descrita por Álvares de Azevedo nas feições e veias salientes delas. Outro ponto que passa a acontecer é a presença de cores mais vivas nas lembranças felizes dos narradores e cores terrosas na descrição das tragédias.

Hermann é o quarto a contar seu episódio: sequestra uma duquesa casada e abusa dela durante várias noites, drogando a mulher para que ela não perceba nada. Quando enfim ela desperta dos dias em que esteve em transe, tenta fugir. Hermann lhe apresenta a dura situação: “Lembra-te que hoje não poderás voltar ao mundo; o duque Maffio seria o primeiro que fugiria de ti; a torpeza do adultério senti-la-ia ele nas tuas faces, creria roçar na tua boca a unidade de um beijo de estranho. E ele te amaldiçoaria!”. Colocando seus desejos acima de tudo, Hermann força a mulher a ficar ao seu lado. Após um tempo viajando juntos, o duque os encontra e assassina brutalmente a pobre mulher. Hermann chega a vingar-se, entretanto a imagem da carnificina nunca sai de sua mente.

Aqui, novamente o artista suaviza a cena descrita em detalhes, através de traços mais sutis. O capítulo é recheado de sombras, dando o tom mórbido do “ato passional” de Hermann.

O último a contar sua história é Johann. Cinco anos antes, o jovem se envolveu em uma briga com Arthur, culminando em um duelo e na morte do segundo. Johann encontra um endereço no bolso do moribundo e vai até lá. No escuro das sombras, o jovem sobe até o quarto da namorada de Arthur e a desvirgina. Ao sair do quarto, se envolve em outra briga, matando um homem na escuridão. Acaba descobrindo que o assassinado era seu irmão, constatando em seguida algo ainda mais terrível: a mulher com quem acabara de fazer sexo fingindo ser Arthur, era, na verdade, sua irmã.

O capítulo seguinte funciona como uma continuação. Uma mulher misteriosa entra na taverna - “o anjo perdido da loucura”. Mata Johann enquanto todos estavam bêbados demais para notá-la, depois se dirige a Arnould - uma personagem que vez ou outra fala com os demais amigos - revelando ser Giorgia, a irmã de Johann e agora prostituta. Vinga-se do irmão. Arnould revela ser Arthur, que sobreviveu naquela noite. Por fim, o casal, com amarguras demais para ficarem juntos, matam-se ao mesmo tempo.

O livro termina nesse ponto, mas na adaptação há ainda uma constatação interessante: “A realidade é tão extraordinária que ultrapassa todas as ficções”.

Crimes impunes, decisões impulsivas, mortes por motivos torpes, práticas canibais, incestuosas e infanticidas, deslealdade e irresponsabilidade guiam as cinco histórias principais. Tratadas com banalidade pelos jovens, revelam uma naturalização da violência que assombra mais do que criaturas sobrenaturais. 

Um ponto que se repete em todas as narrativas é o desejo libidinoso acima da vida das mulheres: as personagens foram abusadas, sequestradas, traídas, rejeitadas e desonradas (situação que para a época era tão ruim quanto a morte) apenas para satisfazer o desejo de homens jovens que se esquivaram de seus crimes tratando seu sofrimento como maldição suficiente. A forte presença ao longo do texto de palavras como gozo, lascívia, virgindade, orgia, desejo, revela o foco das personagens masculinas no prazer acima de qualquer coisa, chegando às últimas consequências e violando todos os pactos de civilidade para alcançarem a saciedade. A volta de Giorgia vinga não só sua vida arruinada, mas também as das outras mulheres que foram mortas por decisões dos jovens boêmios.

Por fim, é interessante notar como uma única obra consegue abordar tabus tão diferentes, resultando em uma história macabra em que o assombro fica por conta do egocentrismo humano.

Referências





Arte em destaque: Caroline Cecin 

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