O gótico brasileiro nasceu na mesma época da nossa literatura nacional, no fervor da Independência do Brasil, quando surgiu a necessidade da concepção de uma literatura que se desprendesse das amarras de Portugal e que exaltasse a nova pátria. Apesar de estar vivo e respirando no Brasil do século XIX, o gótico presente em algumas produções de autores daquela época era visto como aberrante por contrastar com a proposta de literatura nacional postulada pelos primeiros românticos brasileiros.
Apesar do desencorajamento por parte da crítica literária da época, a produção de cunho sobrenatural floresceu nessa nação recém saída da colônia com Álvares de Azevedo e Fagundes Varela sendo os primeiros de seus muitos filhos rebeldes, que optaram por produzir uma literatura fora da curva.
Gótico: uma literatura marginal
Desde seu princípio, que se deu com a publicação de O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, no final do século XVIII, a literatura gótica sempre foi tida como uma produção de entretenimento para as massas. Por optar trabalhar com temas interditos nas sociedades — tais como morte, loucura, incesto, satanismo, sadismo etc. —, as obras de cunho gótico eram deixadas à margem do cânone literário, tornando-se, assim, parte de uma literatura marginalizada que se dispôs a mexer nas obscuridades do universo e do ser humano, que expunha através de seus monstros fictícios, os horrores da realidade que outras manifestações literárias optaram por ocultar. É na escuridão do gótico que a verdadeira natureza da alma humana vem à luz.
Portanto, se a literatura gótica era tida como um ser aberrante na Europa, o tratamento que recebeu no território brasileiro não poderia ser diferente. E mais do que uma marginalização, o gótico no Brasil foi acometido de um terrível apagamento. A simples menção ao gótico brasileiro é capaz de causar estranheza em muitas pessoas que estão acostumadas a associar o gênero a produções de autores europeus e estadunidenses, e esse pensamento é justamente fruto de tal apagamento, como veremos mais adiante.
Iustração da edição de O Castelo de Otranto, 1824 |
Ultrarromantismo x nacionalismo conservador
Uma das primeiras hipóteses defendidas acerca do apagamento do gótico no Brasil é a de que o gênero não se enquadrava na proposta de literatura nacional defendida pelos primeiros autores românticos. Com a Independência do Brasil, surgiu a necessidade de uma produção literária que exaltasse a “cor local” da nova pátria, que permitisse o total desprendimento das influências de Portugal, que possibilitasse o esquecimento do passado colonial vergonhoso e nos encaminhasse para um glorioso futuro. Então, se estabeleceu um molde literário a ser seguido por todos aqueles que desejassem produzir literatura naquele primeiro momento; quem ousasse sair desses moldes era praticamente considerado um traidor da pátria. É curioso perceber como os primeiros autores do Romantismo no Brasil deturparam um dos principais conceitos do movimento, que era romper com padrões literários e deixar que a alma do artista criasse livremente. De fato, a característica do Romantismo que mais se destacou na primeira geração romântica do Brasil foi o nacionalismo exacerbado e hipócrita.
Então, quando a geração ultrarromântica surgiu com seus temas mórbidos e soturnos, eles foram duramente criticados pela crítica literária da época por ousar produzir uma literatura fora do padrão imposto. O grupo de autores do ultrarromantismo era composto em sua maioria por estudantes do curso de Direito da então recém fundada província de São Paulo; estes jovens, possuídos pelo mal-do-século e tomados pelo cotidiano tedioso da província, viviam uma vida boêmia carregada de transgressões, a ponto de lançarem sobre São Paulo a fama de “ninho de heresias”. A maioria se reunia em grupos para recitarem os poemas de Lord Byron, E. T. A. Hoffmann e Alfred de Musset, encher a cara e depois sair à procura de aventuras que os fizesse sentir como personagens das histórias de seus autores favoritos.
Lord Byron |
O maior representante dessa geração era um bom moço de família respeitada, que não chegou a levar uma vida de transgressões como alguns de seus colegas, mas isso não o impediu de ser capaz de produzir uma literatura que representasse os desejos mais sombrios de seu ser. Álvares de Azevedo não chegou a ver suas obras publicadas em vida, não viu a transgressão que sua literatura causou e, muito menos, a influência que ele teria nas obras de muitos autores que viriam depois dele. Sua obra, Noite na Taverna, é a responsável por inaugurar a estética gótica no Brasil, mas foi encarada pela crítica daquela época como uma imitação imatura das literaturas estrangeiras e uma representação de sua alienação, pois a obra se distanciava das questões do nacionalismo pungente daquela época.
Em seu ensaio intitulado O sequestro do gótico no Brasil, Júlio França esclarece que havia dois protocolos utilizados pelo cânone literário ao se dirigir a escritores como Álvares de Azevedo: um político e outro biográfico. Ele apresenta nesse ensaio algumas críticas que foram direcionadas à obra de Azevedo e que podem ilustrar a questão do apagamento do gótico no Brasil. Sobre os dois protocolos de julgamento, França diz que ambos expurgariam a obra do autor byroniano da corrente principal da literatura brasileira, seja pelo critério nacionalista – “modismo, importação de ideias, ornamento oco, artificialismo que não reflete o próprio do lugar” –, seja pelo moralista – Azevedo ora é “uma recalcada casta diva, ora um depravado Don Juan”. As frases entre aspas são trechos de críticas da época direcionadas ao escritor gótico.
É importante lembrar que a literatura gótica surgiu como uma forma de expressão das ansiedades e do medo do homem moderno perante as constantes transformações e revoluções que estavam acontecendo no mundo. O Brasil do século XIX era uma nação recém nascida com um passado obscuro e, além da promessa de um futuro glorioso, o presente era repleto de novas tecnologias que significavam benfeitoria para o cotidiano do homem moderno. Mas todos esses eventos, que deveriam causar sentimentos confortantes, apenas resultavam num terrível mal-estar, como aponta Sigmund Freud em O Mal-Estar na Civilização:
“Boa parte da culpa por nossa miséria vem do que é chamado de nossa civilização; seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a condições primitivas. A asserção me parece espantosa porque é fato estabelecido — como quer que se defina o conceito de civilização — que tudo aquilo com que nos protegemos da ameaça das fontes do sofrer é parte da civilização.”
Entendemos bem como é ser jovem em tempos nos quais a história está sendo escrita de formas turbulentas, e Álvares de Azevedo viu na literatura gótica um meio de externalizar o sofrimento de sua existência, o descontentamento diante da sua realidade monótona e a constante ameaça da tuberculose, que foi a maior causa de morte da população de sua época; a doença acometeu o irmão e alguns colegas de faculdade de Álvares, deixando-o ainda mais angustiado. O poeta byroniano vivia com a constante promessa de morrer jovem, era o destino de muitos de sua geração, e em seus poemas ele clamou várias vezes para que a morte viesse e libertasse seu espírito aprisionado na existência condenada. E ela atendeu ao seu clamor, levando-o da existência terrena aos 20 anos de idade.
Álvares de Azevedo |
“A busca por uma literatura que fosse o espelho da realidade brasileira, excluía todas aquelas de viés imaginativo.”
Fagundes Varela é reconhecido pela historiografia literária como um poeta genial, mas poucos sabem que ele também experimentou a produção em prosa. Na década de 1860, Varela publicou em folhetim uma série de contos dos quais podemos destacar As Ruínas da Glória — ambientado nas ruínas de um convento localizado no bairro da Glória em São Paulo, o conto narra um grupo de amigos boêmios que é assombrado por uma noiva fantasma que foi brutalmente assassinada no local. O conto também inclui temas como necrofilia, loucura e feminicídio —, e As Bruxas — neste conto, somos apresentados a um grupo de marinheiros do porto de Santos que tiveram sua embarcação sequestrada por um coven de medonhas bruxas que voavam em vassouras e os levam até os seus domínios em uma ilha desconhecida.
Tais contos fantásticos de Fagundes Varela quase desapareceram. As Ruínas da Glória, cuja publicação data de 1861, teve sua republicação em livro somente cem anos depois, em 1961, quando selecionado por Edgar Cavalheiro e Mário de Silva Brito para compor o segundo volume do Panorama do conto brasileiro. Já As Bruxas só foi republicado em 2011, quando resgatado por Maria Cristina Batalha para fazer parte da antologia Fantástico Brasileiro: Contos Esquecidos.
Nos compêndios de literatura e na própria historiografia literária, não vemos nenhuma menção aos contos sobrenaturais escritos por Varela, apenas sobre sua produção poética. Isso se dá porque o movimento de independência política do século XIX postulou que caberia à literatura a afirmação da nova identidade brasileira, sendo assim, as obras em prosa deveriam ser pautadas na realidade e a poesia ficaria encarregada do viés imaginativo. Até mesmo os contos fantásticos de Machado de Assis permaneceram obscurecidos até a década de 1970, quando Raimundo Magalhães Júnior reuniu alguns deles para publicação do título Contos Fantásticos de Machado de Assis, provando que o Bruxo do Cosme Velho também mergulhou na produção da prosa sobrenatural.
Inclusive, Machado de Assis chegou a traduzir O Corvo, de Edgar Allan Poe, ou seja, ele e outros escritores estavam a par das produções que eram produzidas em seu tempo e, consequentemente, eram influenciados por elas. A preferência pela literatura realista vem dessa época e refletiu no desejo de muitos leitores brasileiros que preferem a literatura pautada na realidade, mas que, ainda assim, ousam dizer que não possuímos a produção de uma literatura de cunho sobrenatural.
Fagundes Varela |
Em seu artigo intitulado Profano, maldito e marginal: o conto fantástico na literatura brasileira, a pesquisadora Karla Menezes comenta sobre esse abandono inconsciente da tradição de uma literatura imaginativa herdado do século XIX: “O caminho que nos conduziria à tradição de um fantástico à brasileira foi obstruído, portanto, pelo sucesso do modelo de uma mais pautada na realidade, conforme o promovido por Alencar e seus contemporâneos, conduzindo nossa literatura a uma tradição mais realista que a dos demais países latino americanos, em especial nos séculos XX e XXI”.
“A literatura gótica possuiria temas e ambientações estranhos à cultura e ao território brasileiro.”
Este pensamento baseia-se no preconceito da crítica literária brasileira ao supor que deveria haver uma relação entre literatura, geografia e espírito de uma nação. Ou seja, eles acreditavam que o gótico se definia pelos cenários das obras pertencentes ao gênero escritas na Europa — as ruínas medievais, as florestas negras e fantasmagóricas, o clima gélido e as criaturas — e, portanto, não combinariam com a nossa “cor local” — florestas tropicais, clima quente e natureza selvagem e sublime.
Ora, mas o gótico não se define pela geografia ou paisagens de um lugar. Como dito anteriormente, o gótico é uma estética literária que exprime os medos e ansiedades do homem moderno. Ele surgiu como uma forma de confrontação ao pensamento mecanicista do Iluminismo, que buscava colocar o universo e a alma humana sob o domínio da razão. Mas nem tudo a razão é capaz de explicar; os autores góticos sabiam que nem todas as coisas no universo poderiam ser explicadas pela ciência e que não seria possível prender a alma humana com as amarras da razão. Existia uma parte sombria e misteriosa do mundo onde as leis da realidade não conseguiam ser aplicadas, e foi isso o que Johann Wolfgang von Goethe chamou de o demoníaco: “o demoníaco é o que não pode ser explicado nem pela inteligência, nem pela razão”.
Moonlit River Scene with a Ruined Gothic Church, and a Stone Bridge with an Angler, de William Pether (1821) |
Os ultrarromânticos brasileiros entenderam o propósito da literatura gótica e viram nela um meio de tocar em assuntos interditos que os primeiros românticos evitavam a todo custo, mas que estavam ali latejando nas sombras, como por exemplo, nosso passado colonial e escravocrata. A geração mal-do-século não via a nação brasileira com os mesmos olhos dos autores indianistas. Para eles, a natureza era obscura e opressora, a existência era tediosa e pesada, o futuro, incerto, e a morte era vista como o único consolo. A literatura gótica era, portanto, a única que permitia a expressão desses seres de espíritos perturbados.
Em seu ensaio intitulado Gótico brasileiro: uma proposta de definição, publicado ano passado, João Pedro Bellas aborda o assunto de como a estética gótica se aplica a temas e ao contexto brasileiro:
“Podemos definir o gótico brasileiro como a confluência entre a estrutura formal da poética gótica e a(s) temática(s) características da realidade brasileira de um modo em que a primeira é efetivamente transfigurada pela segunda. Os elementos essenciais – o retorno do passado, a personagem monstruosa e o locus horribilis – seguem presentes, mas eles são adequados à representação de temas que concernem especificamente à realidade nacional.”
Bellas ilustrou seu pensamento ao apresentar uma análise do conto Meu tio o Iauaretê, de João Guimarães Rosa, mostrando como todos os elementos essenciais do gótico aparecem plenamente no conto regionalista do escritor modernista.
O conto As Ruínas da Glória, de Fagundes Varela, também é um exemplo de representação dos elementos da estética gótica; está tudo ali: as ruínas assombradas de um antigo convento (locus horribilis), o fantasma de uma noiva que habita as ruínas (personagem monstruosa) e a revelação de que a noiva fantasma foi assassinada por seu pai, o homem estranho e misterioso que mora nas ruínas e que, portanto, volta em busca de vingança contra os vivos levando-os a morte e à loucura (retorno do passado).
Com isso, podemos ter um breve panorama sobre o apagamento do gótico brasileiro e da genialidade dos autores que perceberam o enorme potencial da literatura brasileira para além dos temas realistas. E, como bem observa Karla Menezes, “o homem precisa dos horrores ficcionais para ajudá-lo a suportar os horrores da vida real. O imaginário humano se apodera de elementos sobrenaturais, polêmicos e destrutivos e transforma-os em ferramentas que desmantelam estes mesmos elementos, provocando instabilidade e incerteza quanto às realidades que o cercam”. Somos uma nação que foi marcada pelos horrores da vida real desde o princípio, e o gótico é um fazer artístico que permitiu que alguns autores conseguissem passar, através da literatura, o lado obscuro de se viver no país do futuro.
Arte em destaque: Mia Sodré
Imagem utilizada: banco de fotos Nappy
Maravilhoso, texto bastante esclarecedor que joga luz num tema tão "esquecido" da literatura nacional.
ResponderExcluirParabéns e continuem com o excelente trabalho.
Excelente texto, como de costume, explica bem como o gótico e o fantástico surge como uma forma de tirar esse "protagonismo" do ser humano no universo, trazido, como bem afirma o texto, pelo iluminismo e pela mãe razão. A evolução, teoricamente, nos fez a espécie mais avançada do planeta, e desde que se constatou isso, fomos amaldiçoados com ambição, ansiedade e nossa falsa necessidade de controle. Nossa única benção advinda dessa constatação foi a curiosidade, não só para descobrir como funciona o mundo, mas também para imaginar como ele poderia funcionar. O mal-estar na civilização consegue ser tão ruim e desconfortável ao ponto de que conseguimos ansiar por uma situação desesperadora, mas que ao menos voltemos ao primitivo e a simplicidade com que as coisas poderiam ser. O gótico reflete a nossa honestidade, coisa que a modernidade fragmentou e até hoje tenta destruir.
ResponderExcluirMaravilhoso! Pesquiso sobre motivos desse apagamento do gótico literário nacional e encontrei esta maravilha de texto. Excelente! Amei!
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