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The Five: quem foram as mulheres assassinadas por Jack, o Estripador?

O consumo de histórias de crime não é um fenômeno moderno. A curiosidade do ser humano com o macabro e a morte, que tem alavancado a audiência de inúmeros streamings nos últimos anos, sempre existiu. Se hoje vemos relatos minuciosos e sangrentos de assassinos e seus crimes através da tela, no século XIX, poderíamos sanar nossa sede pelo sinistro ao vivo e a cores através das execuções que aconteciam em praça pública e reuniam uma multidão exultante com o espetáculo gratuito e brutal que era observar os minutos finais de ladrões, golpistas, assassinos de oportunidade e serial killers. A morte de François Courvoisier, por exemplo, reuniu cerca de 40 mil pessoas, e dentre os observadores se encontravam nomes ilustres como Charles Dickens e William Tackeray

A exultação popular marcou o nome de Courvoisier nos tabloides sensacionalistas e, mais tarde, na história. E ele não foi o único. Das páginas sanguinolentas do período vitoriano se derramam outras figuras como Frederick Bailey Deeming, Henry Wainwright e Mary Ann Cotton. E também alcunhas de criminosos nunca capturados, como o Assassino do Torso do Tâmisa, que agiu em 1887, ou ainda o infame Jack, o Estripador, que causou pânico generalizado pelas ruas do East End londrino em 1888. 

E o que todos esses assassinos têm em comum além da fama póstuma construída sobre seus atos cruéis? Infelizmente, quase nunca lembramos dos nomes de suas vítimas ou de suas existências prévias antes da tragédia. Os homens, mulheres e crianças que perderam suas vidas em tramas brutais foram e continuam sendo breves notas de rodapé na maior parte dos relatos de true crime, do passado e do presente. Suas identidades foram deixadas para trás, como poeira sobre móveis velhos em casas abandonadas pelo tempo. Nós fechamos a porta para os invisíveis assassinados. 

Talvez o maior exemplo desse desinteresse desrespeitoso pelos mortos seja representado pelo culto popular a Jack, O Estripador. O homicida que tirou a vida de, pelo menos, cinco mulheres no outono de 1888, agiu de forma escusa e conseguiu driblar as autoridades, instaurando um tempo de medo que se prolongou além dos meses de seus ataques. Apesar da comoção popular, Jack escapou da justiça (se por sua esperteza ou pela incompetência da polícia, é uma questão ainda em discussão), e isso lhe conferiu um ar quase sobrenatural. E esse teor impalpável, aliado ao sensacionalismo vitoriano, criou a lenda de um assassino fantasmagórico que se infiltrou na cultura popular mundial. 

Nemesis of Neglect, ilustração por John Tenniel para o Punch, or The London Charivari (1888)

Com o tempo, o mistério da identidade do assassino aliado ao apelo pelo macabro criou uma indústria lucrativa. Um homem sem rosto – ironicamente – se transfigurou em fantasias de Halloween, virou protagonista de filmes, documentários, videogames, tema de conferências anuais, além de estampas em camisetas e acessórios. O estudo de seus crimes também ganhou nome: ripperologia. Como sociedade, ao longo de mais de 130 anos desde os acontecimentos brutais em Whitechapel, alçamos um assassino sem rosto ao estrelato, esquecendo que sua fama foi construída em cima do sangue e dos ossos de cinco mulheres que não puderam escolher seguir adiante. São elas: Mary Ann “Polly” Nichols, Annie Chapman, Elizabeth Stride, Catherine Eddowes e Mary Jane Kelly

Foi tentando resgatar os nomes e a dignidade perdida dessas mulheres que a historiadora social Hallie Rubenhold escreveu e publicou The Five: a história não contada das mulheres assassinadas por Jack, o Estripador. Através de uma extensa pesquisa e de uma abordagem mais humana do passado, ela vasculhou as fontes históricas para trazer ao público atual uma perspectiva diferente que delineasse os rostos, vidas e trajetórias das cinco vítimas conhecidas de Jack. Evidenciando a misoginia presente no mito do estripador, que ainda faz com que voltemos nossos olhares curiosos para o homem desconhecido e não para as mulheres reais, Rubenhold nos apresenta um relato intimista que vai além da descrição de seus ferimentos ou das fotos e desenhos grotescos, quase sempre desrespeitosos, de seus corpos post mortem

“Elas valem mais para nós do que os corpos vazios pelos quais as tomamos: foram crianças que choraram por suas mães; foram jovens que se apaixonaram; sofreram o parto e a morte dos pais; elas riram e comemoraram o Natal. Elas discutiram com os irmãos, choraram sonharam, sentiram tristeza, desfrutaram, de pequenos triunfos. O curso que a vida delas seguiu refletia o de muitas mulheres da era vitoriana, e ainda assim foram tão singulares na maneira como terminaram.”

Para compreendermos quem elas foram, a autora nos leva em uma viagem pelo tempo, direto para uma Era Vitoriana de contrastes grotescos entre riqueza e miséria, na qual uma parte da população vivia em condições sub-humanas, apertada em cortiços estreitos e insalubres (quando podiam pagar a acomodação), enquanto outra comemorava o Jubileu de Ouro da rainha Vitória em banquetes e bailes. O terror e a festa dançavam juntos em direção ao final do século, deixando um rastro de champanhe e desigualdade atrás de si. 

Ao entendermos a Londres polarizada entre miséria e esbanjamento, conseguimos visualizar melhor a realidade que levou essas cinco mulheres a estarem em uma posição tão vulnerável que lhes impediu de fugir da morte pelas mãos de Jack. Whitechapel era um bolsão de pobreza que abrigava, ao final do século XIX, mais de 70 mil pessoas espremidas em acomodações insalubres. Alcoolismo, doenças, brigas e prostituição não eram escolhas, eram consequências de uma sociedade díspar que tratava seus pobres como miasmas que deveriam ser eliminados. Na visão de Rubenhold, essa crença das classes médias e altas de que a pobreza era uma falha moral, aliada ao sensacionalismo dos jornais da época, foi responsável por estabelecer, por exemplo, um dos maiores mitos em relação às cinco mulheres: que todas haviam sido prostitutas. A autora apresenta no livro suas conclusões que divergem dessa interpretação tão cimentada. 

“Assim como os habitantes dos alojamentos de Whitechapel, as vítimas de Jack, o Estripador, e suas vidas se misturam em uma rede de suposições, boatos e especulações infundadas. A criação dessas histórias começou há mais de 130 anos e, de maneira notável, ficou praticamente imperturbável e sem contestação por todo esse tempo. Aquilo que continuou a envolver e definir a forma das histórias de Polly, Annie, Elizabeth, Kate e Mary Jane é: os valores do mundo vitoriano. Eles são do sexo masculino, autoritários e de classe média.”

Os jornais da época afirmavam regularmente que Whitechapel era um antro de bordéis, habitado por pessoas de comportamento duvidoso, e que a maioria das mulheres que lá vivia era prostituta. Quando as vítimas foram encontradas, à noite, a suposição de que todas deviam estar na rua trabalhando tornou-se uma verdade aceita. No entanto, de acordo com a autora “não há evidências concretas que sugiram que três de suas cinco vítimas fossem prostitutas. Assim que os corpos foram descobertos em ruas ou pátios escuros, a polícia supôs que elas eram prostitutas e que haviam sido mortas por um maníaco que as atraia a esses lugares para fazer sexo [...] Em pelo menos três dos casos, soube-se que as vítimas dormiam na rua, e na noite em que foram mortas, não tinham dinheiro para pagar por uma pensão”. O Daily Telegraph de outubro de 1888, por exemplo, ecoou os preconceitos de sua época ao afirmar que mulheres sem-teto e prostitutas eram a mesma coisa. 

Dentro do código moral vitoriano vigente, essa suposição, aliada aos inquéritos bagunçados e aos relatos tendenciosos dos jornais, ajudou a forjar a ideia de que essas mulheres assassinadas eram dispensáveis. Polly, Annie, Elizabeth, Kate e Mary Jane representavam a mulher caída (the fallen woman) que se opunha ao anjo do lar vitoriano (the angel in the house), que era puro, abnegado e preso à esfera privada respeitável. E por serem imorais, tinham merecido seu destino. 

“A noção de que as vítimas eram ‘apenas prostitutas’ procura perpetuar a crença de que há mulheres boas e más, madonas e prostitutas. Sugere que existe um padrão aceitável de comportamento feminino e que as que se desviam dele devem ser punidas. Igualmente, ajuda a reafirmar o duplo padrão, exonerando os homens dos erros cometidos contra essas mulheres.”

Com muito cuidado e respeito, Rubenhold nos leva para a esfera familiar das cinco mulheres e tenta nos mostrar quem elas eram além de boatos e suposições tendenciosas da sociedade vitoriana. Polly Nichols sabia ler e escrever, apesar de vir de uma família humilde. Casada aos 18 anos, teve seis filhos antes de a situação com o marido (infiel) e o problema com bebida começar a afetar seriamente sua vida. Chapman, filha de um soldado e casada com um cocheiro, vivia em um conforto tranquilo, porém lutava contra um inimigo onipresente da vida vitoriana: o álcool. Quando foi assassinada em Whitechapel, deixou para trás cinco irmãos que prantearam sua perda e tiveram de lidar com os jornais criando uma história de degradação e vícios sobre a mulher que amavam. Elizabeth Stride havia nascido na Suécia e emigrado para a Inglaterra aos 22 anos, onde viria a se casar com um carpinteiro. Um negócio falido desgastou o casamento e a separação a levou aos becos de Whitechapel. Catherine Eddowes vinha de uma numerosa família da classe trabalhadora e juntou-se a um vendedor de livros ambulante, ainda jovem. Letrada, Kate passaria a colocar no papel os poemas e baladas dele. A pobreza e a violência doméstica fizeram parte de sua história, que terminou de forma brutal na madrugada de 30 de setembro de 1888. Mary Jane Kelly tinha apenas 25 anos quando foi morta, na fria noite de 9 de novembro. Gostava de cantar e contar histórias, entrelaçadas nas memórias difíceis da vida como prostituta. Seu carro funerário saiu em cortejo por Whitechapel e foi seguido por curiosos e moradores que diziam “Não vamos esquecê-la”. A ironia é que no fim das contas, todas foram esquecidas. 

A autora não tenta criar uma imagem imaculada de nenhuma delas. Muito pelo contrário, ela nos mostra que, independentemente das escolhas ou falta delas, dos erros que cometeram ou dos caminhos que seguiram, elas não mereciam a morte violenta, o descaso com que foram tratadas e o julgamento que estigmatizou suas figuras como merecedoras de seus destinos. Imoral não foi a vida que levaram, mas o fato de um assassino sem rosto e sem nome se tornar uma figura ilustre e admirada nas páginas da história. 

“As vítimas de Jack, o estripador nunca foram ‘apenas prostitutas’; elas eram filhas, esposas, mães, irmãs e companheiras. Elas eram mulheres. Elas eram seres humanos e, certamente, isso basta.”

Mais do que um ato de revisionismo histórico (necessário), The Five é um manifesto reflexivo sobre como tratamos vítimas e assassinos do passado e do presente. A maneira como nos lembramos mais dos perpetuadores do que de quem sofreu, parece dizer muito sobre nós enquanto sociedade. Também fica a mensagem de que, independentemente das escolhas de vida das vítimas, ainda assim são seres humanos que tiveram alegrias, tristezas, famílias, amigos e merecem ser lembradas pelo que foram e não pelo que foi feito delas. 


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Referências



Arte em destaque: Mia Sodré

Comentários

  1. Impecável o texto! Já tinha vontade de ler, agora aumentou!

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  2. Que texto incrível! Tenho o prazer de ser acostumada com a sua escrita impecável e essa não foi diferente. Fiquei com ainda mais vontade de ler algo essa obra. Seu texto é muito importante para que pensemos além do comum.

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  3. Que texto maravilhoso! Eu já tinha despertado o interesse nesse livro desde a sua resenha anterior no Canal, agora com esse texto eu tenho a certeza de que preciso ler. Parabéns por saber transcrever de uma forma tão completa como essa!

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