A palavra "nostalgia" surgiu da união da palavra grega "nostos", que significa "volta para casa", e "algia", que significa "melancolia". Embora o termo tenha surgido após a Grécia Arcaica, já havia desde então um sentimento nostálgico, perpetuado por séculos de pintura, poesia e teatro. Quando os poetas gregos narram os grandes feitos dos heróis e voltam suas mentes para um passado de glória e sofrimento, há um certo quê de nostalgia. Mas talvez mais do que isso: há uma vontade incessante de eternizar os mitos e os homens que fizeram seu povo ser o que é. Há amor e há orgulho.
O passado é provavelmente o maior e mais sedutor mistério que a humanidade já encontrou. Olhar para culturas anteriores a nossa e com elas se identificar, é compreender de certa forma a essência do que nos faz humano. Afinal, encontrar algo similar em pessoas que viveram séculos e até milênios atrás é fascinante. Significa que nem mesmo o tempo é capaz de dissolver certos sentimentos, conflitos e narrativas. E o que fortifica essa ponte entre passado e presente é sempre a mesma (embora em formatos e jeitos diferentes): a arte. É através do escrever, cantar, pintar, dançar, que o passado permanece em nosso imaginário e ainda nos fascina.
Na cultura grega, bem como em todas as culturas tradicionais, a nostalgia é fundamental para criar um sentimento de nacionalidade. Ser tradicional no nível de uma cultura significa, em suma, conservar valores, manter a memória desse povo. Nostalgia, embora feita de saudade, não é apenas saudade, mas fruto de uma necessidade: não esquecer jamais do que um dia existiu e foi bom.
Não longe da Grécia, há uma cultura que, de forma semelhante, deixou uma marca de nostalgia em cada uma das suas grandes histórias: a cultura italiana. Mas não simplesmente a literatura ou o cinema italiano, e sim a arte criada por descendentes dos italianos que, por algum motivo ou outro, deixaram a Itália. Os ítalo-americanos foram centro de um fluxo imigratório intenso no século XX, da Itália aos Estados Unidos, e como todo grupo de estrangeiros, assustaram os mais conservadores da sociedade de sua nova terra. Contudo de forma ímpar, os ítalo-americanos (que não eram mais completamente italianos e nem estadunidenses, mas ainda se consideravam essencialmente italianos) brincaram com os estereótipos usados contra eles através da velha arte de contar histórias.
A nostalgia, quase que inconscientemente, se faz presente nas obras, sobretudo cinematográficas, com as quais os ítalo-americanos moldaram uma identidade que dialoga com estereótipos de cunho xenofóbico. É com esse recurso, de relembrar, recontar e - de certa forma - restaurar uma identidade cultural através de histórias que os gregos trabalharam nas suas epopeias. Dessa forma, eterniza-se uma memória coletiva por meio de narrativas, ainda que estas sejam fundamentalmente ficcionais.
O Poderoso Chefão (1972) |
Através da nostalgia se instaura um sentimento de identificação. Há comoção nas epopeias não apenas por sua natureza épica, mas por trazer de volta narrativas de gerações passadas com as quais os mais jovens ainda podem se identificar. Afinal, a maior qualidade dessas histórias é que são atemporais. É possível alguém se identificar com Aquiles em Ilíada mesmo não tendo vivido a Guerra da Tróia. É possível alguém que nunca foi à Itália se emocionar com o exílio de Michael Don Corleone, em O Poderoso Chefão. É possível se compreender enquanto pessoa quando se compreende seu povo.
Além disso, a epicidade também é uma característica em comum com as epopeias gregas e as histórias que chamaremos aqui de epopeias ítalo-americanas. Em grego, existe um termo chamado "phátos", que consiste em comover alguém através de palavras, causando um sentimento. A epopeia é, no geral, aquela história que desperta em quem as ouve um sentimento de grandiosidade, nostalgia e admiração.
Natureza épica e os heróis
Desde os temas narrados até sua própria estrutura, a epicidade das histórias sobre gângsteres se encontra também em seus heróis. Os heróis, desde o mundo grego, não eram criados para serem símbolos de moralidade. Pelo contrário, a maioria deles violavam o que se chama de código ético-moral. Sua qualidade de herói não se definia pela ausência de erros, mas pela superação destes através de uma árdua redenção.
Os heróis eram, de certa forma, cultuados naquela Grécia. Não chegaram a ser deuses, mas estavam acima dos homens comuns. Os homens comuns, afinal, não são feitos para serem heróis. Não mais. Aquele tempo já é distante e, desde então, resta a todos, desde Homero até os dias atuais, tomar os heróis como exemplo; ter em mente o potencial quase divino que os homens podem alcançar e almejar esse nível de honra. Essa concepção de heroísmo permaneceu no imaginário dos povos ocidentais por muitos séculos, se modificando e se adaptando a cada tempo.
Os heróis hoje são mais os “super” heróis. Talvez Odisseu possa ser considerado um “super” herói. De fato, os heróis mais contemporâneos não o são. E desde a Revolução Industrial essa tem sido a tendência: os homens são apenas homens (com um tanto de miséria enraizado à sua natureza, é verdade), então por que os mafiosos ainda são tão costumeiramente representados como heróis?
A ideia de meritocracia é muito presente nas narrativas sobre gângsteres. Não se trata mais de um poder divino, como uma força sobrehumana ou inimigos sobrenaturais. Os conflitos e os paradigmas não são mais os mesmos. Todavia ainda existe esse certo culto ao potencial que não se pode mais alcançar, mesmo quando os heróis são homens comuns. O mérito dos heróis se dá pelo medo que eles impõem nos demais. É um universo muito masculino e muito violento, que reflete as dificuldades enfrentadas por esse grupo social minoritário. O que fica muito claro nos filmes de Martin Scorsese, nos quais a faceta mais violenta e de masculinidade reprimida do estereótipo mafioso vai à luz.
“Jimmy era o tipo de cara que torcia pelo bandido no cinema.”(Os Bons Companheiros)
Além disso, a metalinguagem também parece ser um elemento em comum entre as epopeias gregas e os filmes ítalo-americanos. Quando esse cinema já estava popularizado há décadas, David Chase, em Família Soprano, fez algo interessante na TV: colocou membros da máfia citando trechos de filmes sobre a máfia. É a história dentro da história. Família Soprano homenageia ao mesmo tempo que ressignifica a imagem de “herói” para a cultura ítalo-americana desenvolvida a partir de O Poderoso Chefão. Nesse jogo de metalinguagem, os autores reforçam a relevância desse gênero na sociedade da época, refletindo sobre o que significam e como importam. Nos dois poemas de Homero, existem cenas em que personagens cantam poesia épica. Homero, cantando sobre homens que cantavam.
Sendo assim, uma história edifica o potencial da outra em uma cadeia contínua. Isso não apenas em comparação à poesia épica e aos filmes da máfia, mas dentro dessas próprias categorias. A Eneida, poesia latina (que não por acaso, também foi modelada para criar um sentimento de identidade), não apenas se apoiava na poesia homérica como buscava superá-la. E de certo, toda grande obra é única. É o que define um clássico: que esta obra encante como nenhuma outra e o sentimento perdure. Nunca haverá outro O Poderoso Chefão, mas houve Os Bons Companheiros em 1990, e Sopranos em 1999, assim como O Irlandês em 2019. Todas essas obras, em suma, contêm elementos que as unem, mais do que as diferem.
A palavra e a memória
Ilíada e Odisseia são as precursoras da epopeia grega. Homero, conhecido por seus dois poemas, não inventou as histórias que contava, mas se consagrou pela maneira pela qual contava. Os mitos gregos presentes nas histórias eram conhecidos por todos na Grécia, de maneira que o poeta não precisasse preencher todos os espaços para que a história estivesse completa. A Ilíada, por exemplo, se inicia do meio para o final da Guerra de Tróia, não em seu início, porque ele não precisa dizer como ela começa, todos já sabem. Mas Homero contava as histórias como ninguém mais; era uma história contada de forma oral, quase que cantada. Aquiles era conhecido como herói, mas seus feitos se tornavam mais épicos quanto mais belo era o poema que lhes dava vida. As palavras tinham um poder fundamental na Grécia Arcaica, de perpetuar os mitos e manter aceso o sentimento de pertencimento a cada grego e sua respectiva localidade.
Nesses universos os temas são épicos, as roupas são elegantes, as batalhas e duelos são sangrentos e, na maior parte das vezes, apenas um lado sai com vida. Apenas sentimentos extremos permeiam esses lugares onde tudo é épico. O tema de Ilíada é a cólera de Aquiles, que produzirá vingança, sofrimento e luto. Essas emoções e reações parecem ser comuns aos heróis, uma vez que a honra tem um alto preço.
Portanto, além dos temas épicos (tais quais as grandes aventuras de Odisseu no mar, ou o império erguido por Tony Soprano), as narrativas se valem do êxito de explorar a vida e a morte, o amor e a vingança. E tudo de maneira profunda. Essas histórias são, no fim, sobre a vida. A vida na perspectiva de pessoas que querem se lembrar. E como na vida, sempre há consequências para as ações dos grandes homens. Às vezes, é um final feliz após uma longa jornada de volta para casa (como em Odisseia, ou na obra-prima de Francis Ford Coppola), e às vezes, uma jornada de sofrimento e redenção (em Ilíada e no seriado Família Soprano). Mas seja como for, a vida aparece nua nessas obras, logo, a comoção torna-se inevitável ao testemunhar algo que se dissolve em uma espiral de sentimentos que parecem abraçar o mundo.
Por fim, não se trata somente de comparar as narrativas, mas impressionar-se com o fato de haver tanta similaridade entre histórias com mais de um milênio de distância no tempo. Trata-se, ademais, de reconhecer através da necessidade evidente de narrar que essa arte diz muito sobre o que a humanidade significa. As maiores obras das sociedades sempre são aquelas que representam não um indivíduo, mas uma legião inteira. E mais: uma legião de pessoas comuns e mortais que veem seus próprios feitos, terríveis e belos, aqueles cujos nomes não serão esquecidos. Os homens um dia morrem, mas suas histórias são eternas.
Referências
- Odisseia (Homero)
- Religião grega na época clássica e arcaica (Walter Burkert)
- Screening the mafia: masculinity, ethnicity and mobsters from the Godfather to the Sopranos (George S. Larke-Walsh)
Arte em destaque: Mia Sodré
Comentários
Postar um comentário