últimos artigos

A trajetória da poesia e do rock‘n'roll de Patti Smith em Só Garotos


Antes de seu amigo entre as décadas de 1960 e 1970 e companheiro até o final de sua vida, Robert Mapplethorpe, falecer, Patti Smith prometeu que um dia escreveria sobre a história dos dois juntos. Em Só Garotos, publicado aqui no Brasil pela Companhia das Letras em 2010, acompanhamos a jornada da artista, que viu o movimento revolucionário do rock‘n’roll ascender em Nova York, ao mesmo tempo em que lutava para sobreviver com poucos centavos, alguns livros de segunda mão e a arte visionária de Robert.

Filhos da segunda-feira

Patti Smith nasceu em uma segunda-feira, 30 de dezembro, na zona norte de Chicago, durante a grande nevasca de 1946. Patti teve que crescer rápido; aos dois anos começou a cuidar de sua nova irmã, em uma casa parcialmente alugada para terceiros, visando um dinheiro extra para a família. Anos depois, com mais um irmão a caminho, a família Smith mudou-se para Germantown, Pensilvânia, onde moravam em um alojamento temporário para funcionários. 

Aprenderam brincadeiras de infância: estátua, pega-pega e seu mestre mandou. Caçavam vaga-lumes, começaram a orar antes de dormir, por mais que Patti acabasse indagando sobre a singularidade da alma todas as noites, com medo de perdê-la durante o sono, até que criou sua própria oração. Ainda em sua infância, a poeta teve escarlatina, doença mortal nos anos 1950, que a roubou de sua amiga, que viria a falecer não muito depois e cujo enterro por conta da quarentena causada pela doença. Esse foi apenas um prelúdio dos inúmeros momentos trágicos os quais viria a enfrentar, algo que influenciou a melancolia de suas produções artísticas, seus versos carregam cicatrizes e marcas de sua trajetória.

Voltando à época anterior aos dias de rock n' roll e moedas contadas, agora em Nova Jersey, Patti encontrou refúgio na obra Mulherzinhas, de Louisa May Alcott, e inspirada pela personagem Jo, decidiu que um dia escreveria um livro. Smith, que cultivou um interesse por clássicos literários - hoje sendo mais e mais discutidos pelo grande público e por acadêmicos - criou-se dentro das páginas que lia, alimentando sua subjetividade única, seja em romances, poemas ou em cima do palco.

Em visita ao Museu de Arte de Filadélfia, decidiu que queria ser artista, mesmo não tendo certeza se tinha o que era necessário para tal. Começou a desenhar, dançar, escrever poemas, vasculhar livrarias atrás de livros sobre arte. Recebeu de presente a obra The fabulous life of Diego Rivera, e se imaginava como Frida para Diego, queria ser musa e criadora. O ser musa, como temos como exemplo a poeta Pagu foi para o movimento modernista aqui no Brasil, foi um lugar comum para as mulheres, principalmente em épocas quais a produção artística da mulher ainda não tinha o mesmo espaço que a das homens, mas, felizmente, Patti soube traçar uma caminho no qual foi além da musa, foi criadora.

Já Robert, que também nasceu numa segunda-feira, dessa vez dia 4 de novembro de 1946, cresceu em Long Island, sendo o terceiro de seis filhos. Desde a infância irradiava uma agitação e o desejo de agitar. Ao colorir seus livros, usava cores que ninguém mais usava, gostava de incomodar os outros. Aprendeu a desenhar, imagens distorcidas e abstratas. Era artista e sabia disso. Acabou abandonando a confissão católica a qual cultivou durante a infância por influência da família e seguiu o rastro do LSD, a fim de se dedicar a viver para sua arte. O abstrato acompanhou sua arte por toda sua vida, também ultrapassou o limite do LSD e migrou para outras drogas e a religião, sendo esse o início de uma das carreiras mais eloquentes da época.

Enquanto o artista rompia com os laços da família e de seus valores, em 1966 Patti acabou engravidando. Em uma época que gravidez e casamento eram sinônimos, a cantora se viu em uma encruzilhada: sabia que não tinha condições de criar uma criança, isentou o garoto que a engravidou de qualquer responsabilidade por conta de sua imaturidade e decidiu que não terminaria a faculdade e nem voltaria a seu trabalho em uma fábrica; ela seria artista. Assim, encontrou uma família interessada em adotar a criança, um casal de artistas. O bebê nasceu no aniversário do bombardeio de Guernica, mais um exemplo de como a vida da cantora sempre foi entrelaçada com a tragédia e a arte, tornando de sua arte um objeto memorialístico.

Em 1967, ela estava em meio às dúvidas de quais seriam seus próximos passos e sua obsessão pelas palavras de Arthur Rimbaud, que tornou-se seu arcanjo e inspiração. Patti decidiu mudar-se para Nova York, almejando encontrar caminhos para seguir seu sonho. E aos vinte anos, em uma segunda-feira, se viu sozinha numa cidade “cambiante e sexual”, como ela própria descreve. Não tinha onde dormir nem o que comer, dormia em praças e pedia por comida velha com outro morador de rua. Enquanto procurava um emprego, ela tinha uma certeza, de que era livre. 

Foi nesse verão que conheceu Robert Mapplethorpe.

Só garotos

Patti, agora contratada em uma livraria no centro, um trabalho que fazia sentido devido à sua inclinação às artes, ficou fascinada pelas bugigangas vindas de países distantes. Um dia, um menino que já havia esbarrado com ela pelo Brooklyn entrou na loja e decidiu comprar a peça preferida da cantora, ambos interessados pela simbologia cristã do colar. Patti disse então: “Não vá dar isso a nenhuma outra garota além de mim”. Movimento ousado, mas de uma ousadia que seria alimentada e estimulada nos anos posteriores, indo cada vez mais longe do ambiente quase rural que vivia antes de se mudar para Nova York.

Com fome, aceitou ir a um jantar com um escritor que frequentava a livraria. Mais tarde, para fugir da iminente ida ao apartamento do escritor, reconheceu o garoto que comprara seu colar preferido da loja, correu a ele e pediu para que fingisse ser seu namorado. Os dois correram. O garoto era Robert, e não se separaram mais depois disso. Robert e Patti, agora juntos, buscaram refúgio na casa de uns amigos de “Bob”. Nesse dia, Robert mostrou pela primeira vez sua arte para Patti, que viria a ser sua maior confidente artística e uma de suas modelos mais frequentes. A parceria dos dois seguiu até o resto da vida de Robert, mas nesse início se mostrou essencial para o crescimento e amadurecimento de ambos.


Em meio ao desemprego e frustrações, Patti arranja um emprego na livraria Scribner's, casa de autores como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald. Robert pediu demissão para se dedicar aos seus inúmeros projetos de arte. Ele viu Janis Joplin ao vivo e de cara reconheceu que ela seria uma grande estrela. Patti foi ao show do The Doors e ao ver Jim Morrison teve a sensação de que poderia ser uma estrela do rock como ele. Porém não seria após esse show que a artista se iniciaria como um dos grandes ícones do rock e do movimento punk nos Estados Unidos e no mundo, por mais que toda essa "demora" tenha criado uma escrita tão cheia de influências e referências que tudo isso é engolida pelos versos de Patti, tornando sua poética única e original. 

Martin Luther King foi baleado no Lorraine Hotel, Valerie Solanas atirou em Andy Warhol, Robert Kennedy foi assassinado. Patti e Robert se separaram momentaneamente, ele foi para São Francisco estudar enquanto Patti mudou-se para o apartamento de uma amiga. Patti foi para Paris com sua irmã, de lá, trocava artes e confidências com Robert, que agora morava com amigos. Patti voltou para os Estados Unidos no mesmo dia em que o homem andava na lua pela primeira vez. Robert estava doente e eles sabiam que precisavam ir para um lugar melhor, então juntaram suas moedas e decidiram mudar-se para o Hotel Chelsea, local fatídico mas essencial para a trajetória das nossas futuras estrelas.

Hotel Chelsea

O Hotel Chelsea, histórico hotel que foi lar de mais de cinquenta grandes artistas e dono de mortes excêntricas e crimes sem resolução, acumula um volume inacreditável de história por seus corredores e paredes. No Chelsea, havia rumores de que baús de Oscar Wilde apodreciam no fundo do porão. Dylan Thomas havia passado suas últimas horas ali. Bob Dylan compusera “Sad-eyed lady of the lowlands” no mesmo andar em que viviam. Arthur C. Clarke escreveu 2001: Uma Odisseia no Espaço quando estava hospedado no hotel. 

Lá, Jack Kerouac escreveu o livro On the Road. Leonard Cohen também teve seus dias de composições hospedado no hotel vitoriano. Figuras como Stanley Kubrick, Ethan Hawke, Uma Thurman, Jane Fonda, Iggy Pop, Édith Piaf, Joni Mitchell, Alice Cooper, Frida Kahlo, Madonna são outros nomes que deixaram sua marca no Chelsea. Uma lista enorme de ícones da cultura mundial, mas naquele dia, aspirantes à artistas imploravam por uma vaga, a fim de crescerem como seres criativos.

Não muito mais tarde, o assassinato de Sharon Tate pela família Manson tomavam todas as manchetes, e Robert, que era fascinado pelo comportamento humano, se viu inspirado por tamanha insanidade. O assassinato, conhecido como o evento que encerrou a década de 1960, deu o pontapé par a década de 1970, na qual o casal seguia em busca de centavos para se alimentarem ao mesmo tempo em que cresciam como artistas. Patti tinha cada vez mais interesse em ser poeta, mesmo que Robert acreditasse que ela poderia ser poeta e cantora. 

Robert estava ascendendo socialmente, começou a usar uma Polaroid para tirar suas fotos, tendo Patti como sua primeira modelo. Ele também começou a se envolver com David Croland, escondido de Patti. Mas tinham prometido que nunca iriam se abandonar, então seguiram juntos, mesmo que separados.


Em Woodstock, envolveram-se com estrelas do rock‘n’roll da época, e através do engenheiro de som amigo, conheceram outros artistas. Todd, o engenheiro, apresentou Patti como “a poeta” para Janis Joplin, e assim ela seguiu chamando Patti. Toda a comunidade musical frequentava o Chelsea, e Janis era a rainha da roda. Incentivada por Robert, Patti começou a ler seus poemas em público, criando seu vínculo com o palco. Agora já parte do movimento musical setentista, comprou seu primeiro violão em uma loja de penhores e aprendeu os primeiros acordes usando músicas do Bob Dylan. Com o retorno de Janis Joplin à cidade, Patti acabou compondo uma música para ela, Janis se enxergou na música e mostrou interesse em gravá-la. 

De volta a Paris, Patti recebeu a notícia de que Jimi Hendrix havia falecido aos 27 anos e nunca retornaria a Woodstock para criar a “linguagem universal” que tanto queria. Não muito tempo depois, Janis Joplin também veio a falecer aos 27, sem nunca ter gravado a música composta por Patti. Em ambos os casos, ela sentia que havia perdido um amigo.

Em 1971, Patti realizou a leitura de seus poemas, mas dessa vez infundindo o mundo da escrita com o ataque frontal do rock‘n’roll, sendo a primeira vez que utilizaram uma guitarra elétrica dentro da St. Mark’s Church. Após a ocasião, revistas de poesia foram atrás de Patti, interessadas por novos poemas; propostas de leituras de Londres e Filadélfia; um livro de poemas; a possibilidade de um disco pela Blue Sky Records. Essa seria a primeira vez que Smith seria publicada, o primeiro passo para uma carreira de sucesso como escritora, que rendeu grandes prêmios, como o National Book Awards pela obra Linha M, no ano de 2010, além de, é claro, ser responsável pela chamada "poetização de rock'n'roll".

Robert se entregou ainda mais para a fotografia, hábito que iniciou-se após Patti influenciá-lo a fotografar para utilizar as fotos em suas colagens e composições, mas a fotografia tornou-se o objeto em si. Ele fotografou a capa para a coletânea de poemas de Patti, Kodak. Patti, que antes não almejava trabalhar com música, após participar de uma peça na qual interpretava uma uma música, sentiu vontade de se aventurar na área, finalmente cedendo às súplicas de Robert.

Resolveram se mudar do Chelsea no dia 20 de outubro de 1972, dia do aniversário de Arthur Rimbaud, arcanjo de Patti; tudo ia mudar.

Juntos em caminhos separados

Patti e Robert foram viver separados: Robert em um loft que Sam comprou para ele; John Lennon e Yoko Ono tinham um espaço atravessando a rua. Logo Andy Brown se ofereceu para publicar um livro de poemas de Patti pela Gotham Book Mart, o que despertou seu orgulho secreto e a inspirou a pegar sua máquina de escrever novamente, uma Hermes 2000. A capa do livro seria uma fotografia feita por Robert. O livro impressionou Brown, que disse que se ela escrevesse um ensaio sobre Rimbaud, ele publicaria, o que a levou a fazer uma nova viagem a Paris, a fim de buscar inspiração. 

Essa viagem a levaria a escrever novos poemas que seriam musicados, “Rock and Rimbaud”, que teve um público que ia de Steve Paula até Susan Sontag. Patti se interessava cada vez mais em fundir poesia e música, o rock‘n’roll. Patti e seu companheiro musical, Lenny, decidiram então gravar um compacto, escolheram o estúdio de Jimi Hendrix para a empreitada. Imprimiram 1500 cópias e as vendiam a 2 dólares para lojas e livrarias. Tocando regularmente como uma banda, foram a Los Angeles tocar no Whisky a Go Go, onde The Doors tinham tocado. Foram a São Francisco; em Nova York procuraram um novo guitarrista, se viam como aqueles destinados a preservar o espírito revolucionário do rock‘n’roll. 

A banda chegou a grandes emissoras; Clive Davis ofereceu um contrato de gravação com a Arista Records, com Lenny, Richard, Ivan e Jay Dee eles haviam se tornado grandes. Em um dos shows, Bob Dylan entrou no clube, que para Patti fez aquela noite uma noite de iniciação, na qual ela tornou-se completamente ela mesma na presença de quem mais se inspirava. Após mais de 10 anos em busca de si mesma e de se ler em sua arte, Patti começava a entender a força do seu papel como uma mulher do rock.

Em 1975, novamente no estúdio de Jimi Hendrix, Patti e seus companheiros de banda gravaram em cinco semanas seu disco de estreia, Horses, considerado até hoje como um dos melhores álbuns já feitos. De acordo com Patti, o disco transmite a gratidão que ela sentia pelo rock tê-la ajudado a passar pela adolescência, e a alegria que sentia ao dançar. Robert, é claro, seria o responsável pela capa do disco; com um fundo branco e uma camiseta branca, conseguiram registrar a icônica foto de Patti segurando seu paletó sobre o ombro. O álbum, mesmo com um desempenho comercial mediano, é considerado como uma revolução cultural. A música “Because the night” virou um hit absoluto. Robert, orgulhoso, disse: “Patti, você ficou famosa antes de mim”.

De mãos dadas com Deus

Na primavera de 1979, Patti foi embora de Nova York para começar uma nova vida com Fred Sonic Smith em Detroit.

Em 1986, Robert foi diagnosticado com aids, ao mesmo tempo em que Patti descobriu que estava grávida do segundo filho. Trabalhando em seu novo disco, Dream of life, Patti decidiu pedir para que Robert fotografasse a capa do álbum, como nos velhos tempos. Quando ligou para Sam Wagstaff para perguntar mais sobre a situação de Robert, Patti descobre que ele também foi acometido pela doença e que na verdade era o pior entre os dois.

Robert tinha certeza de sua recuperação; nas semanas seguintes do encontros dos dois, realizaram diversas fotos, Robert compartilhou seus trabalhos com sua confidente, um trabalho genial. 

No dia 14 de janeiro de 1987, Sam faleceu em decorrência da aids. A morte de Sam enfraqueceu a esperança de Robert, o ocorrido inspirou a canção “Paths that cross”. Pouco depois o ídolo de Robert, Andy Warhol, também viria a falecer, novamente, uma frequência assustadora de tragédias em sequência, um prelúdio. Voltaram a se encontrar em Los Angeles; já fraco, Robert acompanhou uma sessão de gravação de Patti.

A última fotografia que Robert fez de Patti foi da cantora com sua recém-nascida filha. Aos 41 anos, Robert tinha tudo o que sempre desejou: um estúdio perfeito, objetos sofisticados e recursos para tudo que quisesse inventar. Ele tinha deixado sua marca como artista e como uma figura artística, algo que sempre esteve destinado a ser.

No dia 9 de março de 1989, Robert faleceu. Patti ainda guarda um cacho de seu cabelo, um punhado de suas cinzas, uma caixa com suas cartas e um pandeiro de pele de cabra. Robert Mapplethorpe segue sendo um dos maiores fotógrafos de sua geração e sua visão sobre o erótico e a cena homossexual ainda são colocados em debate. Patti Smith, agora com 75 anos, é uma sobrevivente do cenário insalubre o qual foi acometida no início de sua carreira, mas agora trocou de lado e virou quem influencia. Como exemplo, há a música Patricia, da banda Florence + The Machine, uma homenagem para a cantora, lançada em 2018.


Leia mais:


Arte em destaque: Caroline Cecin

Juliana Toivonen
Licenciada em Letras pela Universidade Federal de São Paulo. Entusiasta da literatura de autoria feminina e do resgate de vozes e narrativas perdidas. Pesquisadora na área da literatura portuguesa. Publicou o livro "palavras roubadas de mulheres mortas" pela Margem Edições em 2021.

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)