Com início na cena musical da década de 1960, nos Estados Unidos, o punk surgiu do estilo autêntico de garotos que desejavam se expressar através do rock, de modo a marcarem sua presença no mundo e direcionarem sua revolta contra a sociedade nas composições. As primeiras bandas eram representadas por acordes pesados nas guitarras e jovens usando jaquetas pretas de couro, muitos deles oriundos de famílias disfuncionais, bairros pobres e ambientes violentos. Inconformados com um sistema que não os apoiava e os deixava abandonados para morrerem na rua, eles utilizavam a música como escape e também como uma maneira de denunciar essa inconformidade. Foi isso que tornou o punk, e a cena musical construída ao redor dele, um dos símbolos da contracultura e uma forma de resistência aos modelos tradicionais musicais e de comportamento que são impostos pela sociedade capitalista.
Lançado originalmente em 1996, Mate-me por favor (please kill me): uma história sem censura do punk traz relatos e recortes do surgimento do punk como movimento por meio de falas e experiências de bandas e artistas que foram pioneiros da cena. Entre as décadas de 1960 e 1980, estes personagens foram presenças marcantes em bares e casas de show alternativas em Nova York e Londres. The Velvet Underground, Nico, MC5, The Stooges, Iggy Pop, Debbie Harry, Patti Smith, Ramones, Sex Pistols, entre outros, são artistas importantes que marcaram esse período. O livro de Legs McNeil e Gillian McCain traz um compilado de entrevistas, comentários e falas de pessoas que se tornaram marcos na história da música e estruturaram as bases para o punk que conhecemos hoje. Assim, o movimento se tornou um símbolo de liberdade, mostrando a dificuldade que há na oposição ao fluxo da vida social normatizada.
O título do livro é uma referência a uma camiseta feita por Richard Hell e usada por Richard Lloyd, ambos da banda Television, com os dizeres "please kill me". Para além da referência à camiseta, a expressão se tornou símbolo das ideias excepcionais e até mesmo inconsequentes das pessoas desse meio. Dessa forma, a obra nos permite um olhar mais amplo e rico sobre as origens do movimento punk e o que ele significava para aqueles que o construíram.
"Lou Reed: Do meu ponto de vista, ninguém estava fazendo na música nada nem próximo da coisa real, exceto nós. Estávamos fazendo uma coisa muito específica que era muito, muito real."
A partir de 1965, The Velvet Underground entra em cena, recebendo notoriedade, inicialmente, pelo apoio de Andy Warhol. Artista consagrado na época, ele adotava bandas e potenciais celebridades, dando-lhes suporte e guiando-as nos primeiros passos do rumo à fama. Seu marco foi o diferencial na composição das letras, das notas e do estilo da banda. O público as achava geniais ou as odiava. Nico foi uma das primeiras mulheres a ter participação no rock que o punk começava a moldar, colocada como vocalista de algumas músicas do The Velvet Underground. Aos poucos, foram surgindo novos grupos e bandas, evidenciando o potencial de criar sua própria música sem seguir modelos prontos e comerciais. Muitas das canções lançadas por estes artistas não iam para as rádios, por conterem palavrões explícitos e apologia a drogas ilícitas, o que tornava mais difícil um sucesso extenso naquele momento. Mesmo assim, diversos grupos da cena fizeram sucesso naquele período, especialmente em Nova York, Londres e Los Angeles.
“Paul Morrissey: Nico era espetacular. Tinha um carisma único. Era interessante. Era diferente. Tinha uma voz grave magnífica. Tinha um visual extraordinário. Era alta. Era alguém.”
Por outro lado, é preciso ressaltar que, apesar da mensagem interpretada pelo público e da visão que temos hoje do punk, aqueles garotos tocando rock e usando roupas escuras e rasgadas não tinham um propósito de ruptura social e conscientização das falhas sistêmicas. Tampouco pretendiam denunciar a repressão da liberdade de expressão e mostrar caminhos alternativos de vida que não consistiam na fórmula escola-trabalho-família-aposentadoria. Eles queriam, sim, se expressar, mas o fenômeno tinha muito mais a ver com viver o momento e conseguir algum dinheiro para comprar entorpecentes.
Podemos romantizar o punk o quanto quisermos, podemos exaltar sua musicalidade livre e fora dos padrões e admirar as qualidades que guiaram muitas pessoas a ter um conduta e perspectivas de vida mais autênticas e artísticas. Mas a verdade é que o início do punk como gênero musical e movimento foi qualquer coisa menos romântico. Não foram origens inspiradoras, em busca da justiça e a construção de um exemplo de quebra do sistema - eram apenas garotos fazendo música dentro das habilidades que possuíam, sem enxergar muito além, tratando de drogas no cotidiano, falta de dinheiro e sexo. Talvez por esse mesmo motivo tenha sido tão marcante, porque suas origens não eram brilhantes, mas uma desordem. A própria desordem era o modelo antissistêmico, que busca tão opressivamente impor uma ordem que não serve a todos.
O punk não era sobre extensas aulas de música colocadas em prática em acordes complexos e músicas rebuscadas que dificilmente um garoto de classe baixa seria capaz de reproduzir sem um professor. Eram jovens se arriscando a tocar o que conseguiam, com composições simples, que mostravam que qualquer um era capaz daquilo. Seus ídolos lhe mostravam o caminho e você podia facilmente percorrê-lo até eles nos palcos de bares underground e casas de show alternativas. Contudo, não se tratava somente da música. A corrente do punk nas décadas de 1970 e 1980 foi marcada por substâncias ilícitas, desorganização e irresponsabilidade, traições e acidentes, fluxos caóticos que seguiam as ações dos artistas. Muito aconteceu de shows serem cancelados por algum membro da banda estar tão entorpecido que não conseguia caminhar, ou por conta de artistas que vomitaram na plateia ou desmaiaram no palco.
Iggy Pop foi um dos artistas que descobriu que qualquer coisa era possível. Seus shows costumavam ser marcados por alguma ação perigosa e chocante, como rolar em vidro quebrado ou usar vestimentas improváveis, como lençóis, e pintar o rosto de branco. Ele fazia qualquer coisa que lhe viesse à mente no dia do show. O foco não era a qualidade, mas sim cometer algum ato que boa parte do público consideraria absurdo.
Outros artistas, como o New York Dolls, contribuíram para uma quebra de paradigma sobre a estética considerada masculina na época, com suas saias, salto alto e maquiagem para performar as canções nos palcos. Isso chamava muita atenção e atraiu um público imenso, demonstrando que roupas ditas como femininas ou masculinas podiam ser vestidas por qualquer um, visão transgressora naquele período. Patti Smith, por exemplo, preferia vestimentas sóbrias, como jeans e camisetas brancas. Ela chamava atenção não pela forma como aparentava, mas por ter um magnetismo comentado por todos que fazia a plateia ir somente para vê-la em suas leituras de poesia e apresentações musicais. Foi uma das mulheres que mais obteve sucesso nesse meio na época. Patti era e ainda é uma artista admirada por ter facilidade para a criação de todo o tipo de arte, desde poesia à música e à escrita literária. A canção Because the night e os livros Apenas garotos e o O ano do macaco são algumas de suas obras mais consagradas.
“James Grauerholz: Patti se apresentou com Lenny Kaye, e ela foi um arraso. Teve muita noção de show-biz, foi irresistível. Patti soube como prender a atenção do público e levá-lo junto através de cada curva de sua pequena jornada à essência. Ela levava a plateia às alturas – depois a jogava lá de cima, então a apanhava e a seguir deixava- cair. [...] Ela arrasou.”
Outra questão interessante que Mate-me por favor traz é que não nos situa apenas em relação ao histórico musical, mas também sobre o contexto dos artistas e das bandas, o que acontecia com cada indivíduo em determinada época. Assim, sabemos o que alguns dos músicos que marcaram aquele momento pensavam de Patti Smith, por exemplo, e também a influência de relações interpessoais em suas criações. É um olhar mais íntimo a respeito de acontecimentos e situações em torno de nomes marcantes.
As origens do punk tiveram raízes fortes, tanto é que ainda ouvimos falar de seus artistas, ainda os escutamos e consumimos seus conteúdos. Apesar da falta de interesse de seus percursores em ativismo e militância, pode-se dizer que todo ato de resistência e oposição ao sistema vigente é, sim, um ato político. E exercer o que o punk ditava na época, ou ainda atualmente, é um modo de manter abertas diferentes perspectivas acerca da sociedade, do gênero musical e da atitude que temos frente ao mundo.
Arte em destaque: Mia Sodré
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