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Mãe, filha, esposa, faxineira e escritora – uma breve biografia de Lucia Berlin

Nos últimos anos, o mercado editorial tem “redescoberto” autores que, em vida, não foram reconhecidos pelos seus trabalhos literários. Alguns nomes parecem estar recebendo atenção pelos editores, ganhado novas edições, traduções e, portanto, novos leitores. A romancista nova-iorquina Edith Wharton, a poeta estadunidense Emily Dickinson, a contista argentina Silvina Ocampo e a romancista brasileira Carolina Nabuco são alguns exemplos.

Pesquisando sobre a contista estadunidense Lucia Berlin (1936-2004), passei por resenhas e análises que sugerem essa “justiça” feita postumamente com a autora. Apesar de ter alguns contos e coletâneas publicados em vida, Berlin só ficou conhecida 11 anos após sua morte, em 2015, quando a The New York Times considerou A Manual for Cleaning Women um dos 10 melhores livros do ano. O sucesso foi estrondoso. Novas coletâneas da autora têm sido lançadas nos EUA desde então e dezenas de traduções pelo  mundo. No Brasil, pela Companhia das Letras, o livro foi lançado sob o título Manual da Faxineira, com tradução de Sonia Moreira.

Lucia Berlin nasceu Lucia Brown em 12 de novembro de 1936 no Alaska. Passou seus primeiros anos de vida constantemente mudando-se com sua família para alojamentos onde seu pai, como engenheiro de minas, era enviado: as montanhas de Idaho, Kentucky, Montana. Sempre longe dos centros urbanos, isolados no wilderness e muito próximo dos trabalhadores imigrantes mineiros.

“Eu tinha cinco anos na época, na mina Deuces Wild, em Montana. De tantos em tantos meses, antes de nevar, meu pai e eu escalávamos as montanhas, seguindo marcas que o velho Hancock tinha feito nas árvores nos idos de 1890. [...] A cabana de Hancock ficava na beira de uma campina em forma de cratera, bem no alto da montanha. Céu azul em cima e ao redor dela. O cachorro dele se chamava Blue. [...] ‘Nós trilhamos este continente inteiro juntos... As mesmas montanhas, o mesmo oceano, de alto a baixo’. Eu nasci no Alasca, não me lembro de lá. Ele vivia dizendo que eu devia me lembrar, na casa de repouso, então acabei fingindo que conhecia Gabe Carter, que me lembrava de nome, do urso que apareceu no acampamento.”
(Dor Fantasma, em Manual da Faxineira)

Quando seu pai parte para lutar na Segunda Guerra Mundial, Lucia, com aproximadamente seis anos, sua mãe e irmã mais nova mudam-se para a casa dos avós maternos no Texas. Alguns contos se passam neste cenário: alcoolismo, abusos sexuais e psicológicos. Seu avô era dentista, sua avó lhe culpava pelos abusos que seu avô cometia e sua mãe estava sempre trancada no quarto. Lucia, sempre sozinha, procurava refúgio no tio quando, esporadicamente, estava sóbrio, e em casa, ou na casa vizinha, cuja família imigrante era numerosa e a acolhia.

“No início eu fiquei com medo de entrar na oficina atrás dele, mas depois ele me puxou lá para dentro. Estava escuro, como uma sala de cinema. Ele acendeu os bicos de Bunsen resfolegantes. Eu continuei sem entender, sem conseguir ver o que ele queria que eu visse. Ele pegou uma dentadura de cima de uma prateleira, pousou-a no bloco de mármore e a empurrou para perto da chama. Eu sacudi a cabeça. ‘Continua olhando’.
Vovô abriu bem a boca e eu olhei para os dentes dele, depois para a dentadura e para os dentes dele de novo. 'São iguais!', eu disse. A dentadura era uma réplica perfeita dos dentes na boca do meu avô; até as gengivas tinham o mesmo tom feio, pálido e doentio de rosa. [...] ‘Como é que você vai encaixar a dentadura?’ [...]
'Tem uns caras novos fazendo desse jeito. Você tira a impressão antes de arrancar os dentes, faz a dentadura e a encaixa antes que as gengivas tenham chance de encolher.'
'Quando você vai arrancar os dentes?'
'Agora mesmo.'”
(Dr. H. A. Moynihan, em Manual da Faxineira)

Quando seu pai volta, a família muda-se para Santiago, Chile. Sua mãe continua sendo uma figura ausente, sempre trancada no quarto. Nesse cenário, os contos são embalados pelo calor latino: os Andes, o espanhol, as freiras do colégio, e uma adolescência regada de privilégios.

“Colégio Santiago, 1952. Seis de nós na escola pretendíamos estudar em universidades americanas e tínhamos que fazer um curso de educação cívica e história americana com a nova professora, Ethel Dawson. Ela era a única professora americana na escola, as outras eram chilenas ou europeias. [...] Ela nos mostrava filmes e slides sobre os problemas enfrentados por mineradores e estivadores chilenos, todos por culpa dos EUA. A filha do embaixador estava na turma e também algumas filhas de almirantes. Meu pai era engenheiro de minas, trabalhava com a CIA. Eu sabia que ele realmente acreditava que o Chile precisava dos EUA. Miss Dawson achava que estava abrindo jovens mentes impressionáveis, quando na verdade estava falando para adolescentes americanas mimadas. Cada uma de nós tinha um papaizinho americano rico, bonito e poderoso. Garotas dessa idade sentem pelos pais o mesmo que sentem pelos cavalos. Uma paixão. Ela dava a entender que nossos pais eram vilões.”
(Boa e má, em Manual da Faxineira)

Lucia volta para os EUA em 1954 para fazer faculdade em Albuquerque, New Mexico. Casou-se cedo com o escultor Paul Suttman, num momento em que seus pais a ameaçavam enviá-la para a Europa. Quando estava grávida do segundo filho, ele simplesmente foi embora. Conheceu Race Newton, o músico, com quem também se casou. Mudaram-se para Nova York, onde ele podia investir em sua carreira musical e afastar-se do amigo Buddy Berlin, com quem Lucia teve um caso em New Mexico. Num dia de inverno, Lucia acordou com o telefone tocando, era Buddy. Pegou seus dois filhos e fugiram para Acapulco, México. Lucia e Buddy se casaram, Lucia tornou-se Berlin e deste casamento nasceram seus outros dois filhos. Mas Buddy era viciado em heroína e, não importa para onde fosse o casal, o vício e os traficantes os seguiam.

Eventualmente, Lucia voltou para os EUA, separou-se de Buddy, mudou-se constantemente de casa e cidade, sempre procurando o emprego que lhe permitisse cuidar de seus filhos. Trabalhou como diarista, recepcionista de hospital, professora. Sua vida foi cheia de idas e vindas. Escrevia à noite, quando podia. Havia escolhido estudar jornalismo para ser escritora, mas a escrita tornou-se a atividade noturna.

“Querida Conchi [...] Minhas aulas do jornalismo estão indo bem, os professores são ótimos, parecem até repórteres de filmes antigos. Mas eu estou começando a ter uma sensação estranha. Escolho jornalismo porque queria ser escritora, mas o negócio todo do jornalismo é cortar foras as melhores partes...”
(Querida Conchi, em Manual da Faxineira)

Esse caminho tortuoso é onde se passam seus contos. Da Cordilheira dos Andes à Sandia Mountains, do deserto texano às lavanderias pagas nas ruas de Nova York, da sala de estar à recepção do hospital, da casa dos avós maternos às clínicas abortivas. Estes são os cenários. As personagens são as mães, filhos, avós, vizinhos, crianças ignoradas pelas família, mães alcoólatras, traficantes de drogas, imigrantes. Principalmente imigrantes: os mineiros do leste europeu que trabalham para seu pai, a família síria vizinha de seus avós, os hispano hablantes nos EUA, a moça mexicana que não fala inglês, os pacientes crianças com deficiência física da clínica médica, os condenados à prisão.

Seus contos trazem uma solidão profunda. Todas as personagens estão sozinhas, procurando saídas para situações cotidianas que lhe sufocam. Estão sempre no limite. Por ter vivido em tantos lugares diferentes, sempre em movimento, Berlin consegue, em poucas páginas e narrativa envolvente, mesclar suas personagens ao cenário num casamento perfeito.

Lucia Berlin inspira-se em sua própria vida para contar suas histórias. Logo nas primeiras páginas somos seduzidos e ficamos nos perguntando, a cada linha, o quanto aquilo é real ou não. Cada conto é independente, mas existe uma continuidade. Personagens, lugares e situações vão se repetindo. No final da coletânea, é possível traçar uma espécie de autobiografia fantasiosa da autora.

A maioria dos seus contos foram escritos entre as décadas de 1960, 1970 e 1980. Na introdução de Welcome Home, seu filho, Jeff Berlin, diz que, nas suas memórias de infância, a mãe estava sempre com sua máquina de escrever. Ele e os irmãos pensavam que ela escrevia cartas – muitas cartas. Só anos depois descobriram que, na verdade, não eram cartas que sua mãe escrevia, mas histórias.

Lucia Berlin não está sendo “redescoberta” pelo mercado editorial. Assim como as outras escritoras mencionadas no início do texto, somente agora essas mulheres reais estão tendo espaço para serem publicadas e serem lidas. Em vida, Lucia Berlin era vista como mãe, empregada, filha, esposa... Não a viam como escritora. Só agora essas mulheres reais podem ser vistas como tudo isso e também como escritoras, como elas gostariam. 

É uma tristeza que a autora não tenha recebido o reconhecimento que merece, mas seus filhos lideram um projeto de divulgação da obra da mãe. É um privilégio atual poder ter acesso facilmente a seus contos e obras de autoras tão geniais quanto ela que não tiveram espaço em suas próprias épocas.  

No Brasil, apenas A manual for cleaning women ganhou edição pela Companhia das Letras, sob o título Manual da Faxineira: contos escolhidos. Nos EUA, foram lançados recentemente Evening in Paradise: more stories e Welcome home: A memoir with selected photograph and letters, ambos em 2018 e ainda sem tradução no Brasil.

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Arte em destaque: Mia Sodré  

Giovana Faviano
Historiadora de formação. Interessada em tudo que envolve subjetividade e criatividade humana. Ama ler, escrever e cozinhar. Se não está fazendo uma destas três coisas, então está tomando um cafézinho.

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