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Dickinson: a poeta além de suas palavras


Fazer uma cinebiografia é sempre um trabalho complexo, quer o indivíduo em questão esteja vivo ou não. Mas quando a pessoa é alguém que viveu há mais de cem anos, cuja única e principal fonte são seus textos e as cartas que trocou com amigos e parentes, tudo se torna ainda mais complicado. Como fazer com que o público não só compreenda, mas também empatize com alguém que eles jamais terão a oportunidade de conhecer? Mergulhar com afinco na obra de um autor realmente nos torna mais próximos dele ou apenas faz com que o mistério seja maior?

Sem se importar com o grande peso dessa responsabilidade, Alena Smith resolveu produzir e escrever uma série sobre a escritora Emily Dickinson, tida por muitos como a melhor poeta estadunidense. Em entrevista, Alena afirmou:

“Eu fiquei realmente cativada por essa questão de como uma artista que não é reconhecida em seu próprio tempo encontra a persistência para continuar e fazer um corpo de trabalho tão enorme e, em última análise, transformador do mundo.”

Dickinson acompanha a juventude da autora interpretada pela indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante em Bravura Indômita, Hailee Steinfeld (que também assina como uma das produtoras da série). Ela nos mostra uma jovem por volta dos vinte anos que ainda está descobrindo qual seu propósito no mundo enquanto tenta se livrar de aprender a fazer as tarefas de casa, como sua mãe insiste. A Sra. Dickinson (Jane Krakowski) faz questão de que as filhas aprendam a realizar tarefas domésticas com maestria na intenção de torná-las donas de casa perfeitas para quando casarem. Porém, desde o início fica bem claro que Emily não tem vocação nenhuma para ser esposa e dona de casa; ela, inclusive, repete exaustivamente que não quer casar. Emily era a filha favorita do pai, Edward Dickinson (Toby Huss), que diferente de sua esposa, queria que a filha por perto, sem jamais casar para que não abandonasse sua casa. E, de fato, assim ela o fez: morou na casa de sua família até sua morte. 

A série tenta transformar Emily em uma jovem comum, com típicos problemas comuns, como o primeiro amor, dúvidas, erros, acertos e todas as típicas dores do crescimento. Assistir Emily ter conversas e mais conversas sobre amor e seu desejo de poder estudar ou ser publicada, ou ir a festas dançar, beber e se divertir com seus amigos faz com que o público possa empatizar com ela em diversos momentos. Entretanto, algo diferencia Emily de qualquer outra adolescente comum: sua relação com a escrita. Suas palavras fazem com que ela seja qualquer coisa menos ordinária.


A trama se realça quando vemos Hailee Steinfeld como Emily completamente imersa pelas palavras. Sua relação com a escrita é tão intensa que poucas pessoas a entendem. É basicamente uma necessidade tanto física quanto psicológica; ela precisa escrever tal como precisa respirar e se alimentar. Precisa tanto ao ponto de enlouquecer quando não tem inspiração para fazê-lo. Em determinado episódio, a obsessão de Emily pela escrita faz com que ela finja que está muito doente e que não consegue levantar da cama, só para que possa ficar o dia inteiro no quarto totalmente imersa pelas palavras sem interrupções.

Há, no entanto, um grande empecilho para que Emily se torne uma autora publicada: seu pai. Edward Dickinson costumava ocupar posições importantes na política e era totalmente contra a ideia de uma mulher ser publicada. Mesmo não tendo nenhum interesse em que sua filha casasse, seus pensamentos sobre as mulheres eram totalmente condizentes com a maioria dos conservadores da época. Ele acreditava que a função da mulher era cuidar da casa e da família, e que por isso não precisava ter ensino superior ou emprego.

Ao transformar a vida de Emily Dickinson em série, Alena Smith também devolve a Susan Gilbert (Ella Hunt) seu devido lugar de direito. Sue não era apenas a melhor amiga confidente de Emily, e posteriormente sua cunhada - ela também era sua amante, sua musa inspiradora, sua única e principal leitora e, por que não dizer também, o grande amor de sua vida.

Durante muito tempo o papel de Susan Gilbert na vida da escritora foi apagado ou reduzido; inicialmente porque nos tempos de Emily ainda não havia uma palavra para nomear o relacionamento amoroso entre duas mulheres, e depois por despeito e machismo.

Emily Dickinson

A relação de Emily e Sue é o grande coração da série, mesmo sua autora tendo plena consciência de que naquela época era impossível duas mulheres viverem um relacionamento totalmente público livremente. Desde o primeiro momento torcemos para que dê tudo certo e que elas consigam ficar juntas, ainda que esse “juntas” seja apenas em encontros escondidos e olhares cruzados durante jantares.

É lindo ver o relacionamento das duas crescendo conforme elas vão amadurecendo individualmente; como elas passam de não ter certeza dos seus sentimentos para aceitá-lo com o coração totalmente aberto. O amor de EmiSue é tão puro e genuíno que acabamos compreendendo totalmente por que inspirava tanto a própria Emily a escrever. Abaixo, um dos diversos poemas que Emily Dickinson escreveu diretamente para Sue (retirada do livro Poesia completa volume 1, com tradução de Adalberto Müller): 

"Tenho uma irmã em casa
E outra além da cerca.
Só uma tem certidão -
Mas as duas são minhas.

Uma é da mesma estrada -
E usa os meus roupões -
A outra fez um ninho
Pros nossos corações.

É ave de outro canto -
É outro o seu refrão -
Toca para si mesma,
Abelha de Verão

Brincamos na montanha -
Como se fosse a Infância -
Seguro na mão dela -
Isso encurta a distância.

E ainda tem o seu zumbido,
nesses anos todos,
Engana a borboleta;
Ainda no seu Olho
Vive a Violeta -
Molda meios e maios -

Derramei o orvalho -
Mas salvei a manhã -
Escolhi a estrela cadente
No infinito da noite -
Susan - eternamente!"

Hailee Steinfeld e Ella Hunt transbordam química em cena, tanto nas mais picantes quanto naquelas com diálogos marcantes. Hailee possui um tom cômico inteiramente único, chega a ser impressionante como ela consegue facilmente virar a “chavinha” e mudar totalmente o tom rapidamente. E quem também carrega a comicidade da série é Anna Baryshnikov, que interpreta a irmã mais nova de Emily, Lavinia Dickinson. É ela a responsável pelas falas e momentos mais engraçados. Entretanto, se engana quem acha que Lavinia é somente o alivio cômico, pois ela também é responsável por trazer temas atuais e importantes para a trama, como o slut-shaming.

Para conquistar o público atual, Smith não só usa uma linguagem contemporânea como também cantores e bandas atuais para compor a trilha sonora. Nomes como Lizzo, Maggie Rogers, Leonard Cohen e Sofi Tukker são alguns do que podem ser ouvidos ao longo dos episódios. Além é claro de Hailee e Ella, que também emprestam suas lindas vozes em diversos momentos. 

A terceira e última temporada de Dickinson chegou na Apple TV+ dia 05 de novembro, e a trama vem contando sobre como Emily passou pela Guerra Civil americana, período esse em ela escreveu mais da metade de toda sua obra. 


Arte em destaque: Mia Sodré  

Lilia Fitipaldi
Jornalista; virginiana com ascendente em aquário; 27 anos; lufana orgulhosa, escritora. Cinéfila - de E o Vento Levou a Vingadores Ultimato. Louca das séries, do esoterismo, dos gatos, dos musicais, a maior fã/defensora de Taylor Swift, Sara Bareilles e Maggie Rogers que você vai conhecer. Me esforço para descobrir o máximo do mundo da Broadway e às vezes me perco no mundo dos livros e das séries.

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