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Orlando: uma biografia e outros artigos feministas

Conhecida como um dos grandes nomes do modernismo inglês, Virginia Woolf nasceu no fim de um século em decadência, viveu os afloramentos culturais e sociais de sua época e atendeu, através de seus romances e ensaios, às mudanças da sociedade inglesa, transpondo na literatura novas configurações de se fazer romance. 

Muito famosa pela utilização do fluxo da consciência em seus escritos, a autora agiu de forma visionária, pois essa era uma maneira de mostrar as introspecções de suas personagens e de criar um vínculo entre a obra e o leitor, ou como explicita Robert Humphrey, grande teórico do fluxo da consciência:

“A intenção de introduzir a consciência humana na ficção é uma tentativa moderna para analisar a natureza humana [...] Portanto, a consciência é o lugar onde tomamos conhecimento da experiência humana. [...] Ele, efetivamente, não deixa nada de fora: sensações e lembranças, sentimentos e concepções, fantasias e imaginações.”

Dessa forma, através da não-linearidade, o leitor identificaria o fluxo em si mesmo e permitiria-se viver uma experiência sinestésica. Visto isso, é possível embarcar nas jornadas de Virginia e mergulhar no subconsciente de suas personagens, inclusive do histórico Orlando.

Depois de publicar um dos seus romances mais famosos, Ao farol, Virginia Woolf decide explorar, como ela mesma diz, "sua própria veia lírica", pensar mais a narrativa fantástica do que a forma e a experimentação poética, assim ela se permite visitar as discussões em voga do século e, através do gênero da biografia - literatura usada por seu pai para educá-la -, a autora descobre uma forma de “rebelar-se” contra todas as biografias masculinas que teve de ler durante a adolescência. Sendo assim, ela discorre sobre a vida de um homem que acorda, depois de já adulto, como mulher.

Descrito por Virginia Woolf como as “férias de uma autora”, Orlando foi inicialmente dedicado a Vita Sackville-West - um dos grandes fascínios de sua vida. Vita, mulher pertencente à aristocracia inglesa, era abertamente adepta ao safismo e, aos olhos de Virginia, a representação de uma mulher de verdade. Os deslumbramentos com os novos temas do século XX, como as discussões sobre sexo e gênero, a empertigaram junto à paixão por Vita a dar início ao então revolucionário e fantástico Orlando.

Vita Sackville-West

Para além das inspirações sáficas, a narrativa explora as teorias de gênero e a fluidez com que Orlando, um homem que viveu do século XVI até os tempos atuais do romance, no século XX, acorda em um belo dia e percebe-se mulher. A mudança não foi violenta ou invasiva, como podemos perceber no seguinte trecho:

“Orlando havia transformado-se em mulher - isso é inegável. Mas, em todos os demais aspectos, continuava a ser precisamente como era antes. A mudança de sexo, embora viesse a alterar o futuro deles, nada fizera para lhes mudar a identidade.”

A metamorfose sofrida por Orlando, jovem aristocrata - representação de Vita -, causa reflexões à própria protagonista em relação ao que é ser mulher e ao que é ser homem. Ao acordar no corpo feminino, a primeira reação de Orlando não é desesperar-se, mas sair da Turquia, onde era embaixador, e ir viver por um determinado tempo no meio de ciganos - até então sua mudança de sexo não era uma questão nem uma realidade na mente da protagonista. Entretanto, pela saudade da pena e do papel, decide então voltar para sua sociedade “civilizada”. 

Com os últimos guinéus, decide comprar todo um vestuário feminino e tomar uma embarcação para sua terra natal. Nesse momento a percepção da mudança de sexo começa a ser notada, assim como as “desvantagens e privilégios de ser mulher”, como expresso no livro, começam a aparecer, e junto a isso o pensamento de se estar navegando só, em um navio com homens, e como isso poderia afetar a noção de castidade tão requerida às mulheres:

“Todo edifício da governança feminina repousa sobre essa única pedra fundamental; a castidade é a sua joia, seu esteio, e elas se esforçam loucamente para protegê-la, morrendo quando a veem arruinada.”

É interessante pensar que Orlando viveu boa parte de sua vida como pertencente ao sexo masculino, quando nada lhe era negado, tudo era permitido. Como andar de navio só, por exemplo, ou permitir-se salvar a si própria e não depender do sexo oposto para isso; é justamente nesse ponto que a polissemia do romance pode ser explorada. O linguajar de Orlando começa a ser alterado, suas roupas começam a ser mudadas e a decência feminina começa a ser moralmente imposta, seus ideais masculinos começam a ser questionados. 

“Quando homem, insistirá em que as mulheres fossem obedientes, castas, perfumadas e bem cuidadas. Agora vou ter de pagar pessoalmente por esses desejos, pois as mulheres não são (a julgar por minha breve experiência deste sexo) obedientes, castas e perfumadas e bem cuidadas por natureza.”

Através da narrativa, Orlando exemplifica a história inglesa e, após dois séculos vivendo o sexo feminino, ele/ela começa a perceber as mudanças que o século XIX traz, a necessidade imposta à mulher de gerar filhos, casar-se e amadurecer. Nesse contexto, a personagem já enfrentava os estereótipos atribuídos ao segundo sexo, a mulher devia preferir o amor à ação. “O amor, disse o poeta, é tudo na vida de uma mulher”, mas esse amor definido pelos homens não era aceito pela protagonista, esses modos atribuídos de não se ter desejos ou aspirações era negado. A vida da mulher vitoriana passa a ser “uma sucessão de partos”, e os sexos se distanciam ainda mais.

No ano de 1931, Virginia lê seu ensaio Profissões para mulheres para a Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres. A autora discorre sobre o conceito do “anjo do lar”, o fantasma que impede a mulher de expressar-se em suas profissões, que as lembram das imposições sociais: ser pura, feminina, não ter opinião própria. No fim da era vitoriana, Virginia passou a ser atormentada pela figura do anjo e percebeu que era natural à mulher de seu tempo encontrar o tal fantasma e render-se diante dele, afinal, o que era a mulher escrevendo, ganhando seu próprio sustento em um tempo convencionalmente masculino?

Orlando, enquanto pertenceu ao sexo masculino, viveu trinta anos em mordomias aristocratas, permitindo-se escrever, amar, vestir-se e montar a cavalo livremente, mas ao acordar como mulher começou a notar seus fantasmas. Agora, ela devia cobrir os tornozelos, no fim ela não queria desvirtuar os pobres homens, enquanto homem sempre mantinha a mão livre para empunhar a espada, mas como mulher, a mão destapada servia como auxílio ao cetim do vestido que caía nos ombros, e o fantasma sussurrava a Orlando, e consequentemente a Virginia: "Querida, você é uma moça. Seja afável; seja meiga; lisonjeia; engane [...] Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria". Apesar das implicações dos sexos, Orlando não deixou de aceitar e gostar de pertencer ao sexo feminino. “Aumentaram os prazeres da vida, suas experiências se multiplicaram.” A questão principal não era o temor em ser mulher, mas o mundo que até então havia sido definido pelo outro sexo.

Orlando adentrou o século XX, o tempo a alcançou, enfim o século novo, o mais liberto. A personagem casa-se, dá a luz a seu primogênito. Ela recebe a aceitação de sua obra de séculos O carvalho, Orlando recebe sua libertação finalmente. Orlando percebe que, em seus 300 anos, foi infinitamente homem e mulher - estamos no século XX, os conceitos de androginia estão aflorando aos pensadores. A personagem é o próprio tempo e a história, foi a linha que costurou os trezentos anos da Inglaterra. Entretanto, nem Orlando nem Virginia poderiam, mesmo no século do novo mundo, descrever e responder o que é ser mulher. Tanto a aristocrata quanto a artista preocupada com o dinheiro deviam matar todos os dias seus respectivos anjos do lar, sufocar o fantasma da pureza e do lisonjeio.

Por ser o primeiro romance da autora a refletir sobre as questões de gênero e afastar-se do centro das configurações da família tradicional, Orlando contém uma potência que atravessa os séculos e traz, junto ao ensaio Profissões para mulheres, reflexões sobre a nova mulher do século XX. Ninguém sabe o que é a mulher, a ela ainda não foi permitido explorar todas as facetas da capacidade humana. A mulher moderna, como Orlando, Vita e Virginia, exercia agora profissões. Elas eram escritoras, ganharam “a casa que até agora era só dos homens", têm pela primeira vez um teto todo seu, mas ainda precisam se ajustar a esse ambiente ou, como Virginia Woolf diz em seu ensaio, podem fazer as perguntas sobre essa “casa” e podem, enfim, decidir as próprias respostas. 

Referências

  • O fluxo da consciência (Robert Humphrey)
  • Orlando: a vita nuova de Virginia Woolf (Sandra M. Gilbert)
  • Artigo (Paulo M. Campos)

Arte em destaque: Mia Sodré  

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