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Ao Farol: sensibilidade e introspecção na obra de Virginia Woolf


A história da família Ramsay ilustra as páginas de Ao Farol, que é dividido em três partes e pode ser classificada como uma de suas obras mais famosas — não sendo a mais fácil de usar como pontapé inicial no mundo de Virginia Woolf. Nascida em 1882, seu universo é composto por uma coleção de famosos marcos, como Mrs. Dalloway (1925), Orlando (1928) e A Viagem (1915). 

No livro em pauta, seguimos não apenas um personagem central, mas diversos, cujos pensamentos servem de fio condutor da narrativa. Introspecção permeia delicadamente todas as páginas da escritora autodidata, especialista em tecer belíssimos estudos de personagens, e é através deles que podemos vagar pela mente da britânica, presenteados por sua grandiosa descrição de fluxos de consciência. Deixar-se levar por Virginia é como dar uma volta na vida da autora, em sua experiência de vida pessoal, e de soslaio capturar todos eles, caso seja um dos familiarizados com sua biografia. 

Está tudo ali: o amor, o isolamento, a paixão, a depressão, o desfazer do ser humano. Ao falar sobre os efeitos da Primeira Guerra Mundial na vida daqueles que cria em Ao Farol, ela faz uma extensiva desconstrução de muitos homens daquela época. E, quando o faz, evoca experiências próprias, pois crescera em um meio intelectual que também sofreu com os impactos do conflito. Isso pode ser lido na figura do Sr. Ramsay, um homem amargo, isolado na própria cabeça, cujo ego e estudo permitem que elabore declarações sagazes, mas não lhe concedem a chance de se aproximar da família. Sem trato emocional, vive consigo mesmo e parece se segurar na incapacidade de marcar os que estão ao seu redor. 

Na contramão dele, temos a sua esposa, uma mulher elegante, cuja beleza e sensibilidade lhe foram dadas com imensa gratidão. A Senhora e os sentimentos de admiração, paixão, e encanto provocados por ela servem de compasso para os personagens em Ao Farol — desde seus hóspedes ao seu marido e filhos, até a pintora Lily Briscoe, que tem por objetivo desenhar a matriarca dos Ramsay e capturar sua essência num canvas que permanece em branco durante a maior parte do livro. Conhecemos o Farol pela primeira vez através dos olhos da Sra. Ramsay, o distante Farol, cercado pelo oceano e pelo sonho de visita dos seus filhos. 

O Farol é testemunha distante não apenas da família central, mas peça-chave do terceiro ato do livro. Como dito, existem três arcos centrais nas páginas: A Janela, O Tempo Passa e O Farol. Sua segunda parte foi escrita de maneira peculiar, que nas mãos daquela considerada uma das mais importantes escritoras na história do romance e da poesia, acaba dilacerando e consumindo o leitor, ainda que suas páginas sejam breves. O segredo da inglesa parece morar em sua sensibilidade, impressa em cada frase, capaz de correr por todos os parágrafos e nunca provocar cansaço. 

Woolf tinha uma compreensão de mundo que é compartilhada com o público em todas as suas criações; aqui, ela mora no pensamento de cada personagem e na forma como eles reagem aos acontecimentos centrais da trama. O luto, a mágoa, a dor e o tempo aparecem como tópicos centrais na história — e, conforme ela é desenvolvida, também conhecemos o silêncio, o isolamento. O vazio existencial que mora em cada um de nós, mas adormece quando temos por quem sentir emoções, quando acordamos com algo em mente, por mais simples que seja. 

E, mesmo quando quase cem anos moram entre a escrita do livro e os dias atuais, o impacto da solidão existente nas entrelinhas de Ao Farol consegue se sustentar. Em paralelo ao período em que vivemos, tempos nos quais a simplicidade parece um defeito, Woolf nos lembra que as emoções vêm em primeiro lugar. Elas guiam os nossos instintos e, não importa o quão intelectual, fechado ou distinto seja o ser, ao final ele vai se ver sozinho com as próprias verdades e com seu castelo imaginário. 


Cada um de nós carrega consigo uma infinidade de conflitos, batalhas travadas na cabeça ou contra o mundo. Dificuldades na família, com terceiros, com as próprias metas. Em cada personagem existe uma forma diferente de frustração, e ao leitor cabe escolher alguma que mais lhe pareça familiar ou devida. 

Em Ao Farol, somos agraciados com o detalhado imaginário de Woolf, uma vez que ela escolhe recursos recorrentes durante a construção do livro: a água, a presença feminina, a introspecção e a luz. Em diversos trechos, encontramos referências ao oceano, ao mar e à água, também usada para descrever certos personagens, como a Senhora Ramsay. Todos os aspectos foram ali colocados propositalmente, uma vez que Woolf era instruída no mundo da escrita e tinha uma excelente mão para fundir imagens com sua prosa, acrescentando toda uma profundidade emocional capacitada para despertar as mais variadas reações no receptor da mensagem.  

Somos conduzidos por uma história que “escuta o mar” do começo ao fim e o leitor mal percebe esse detalhe; ele está lá como ouvinte das reflexões internas de Lily, da raiva que o filho James acumula por seu pai; é confidente da segurança que a matriarca dos Ramsay transpassa e amiga do vazio que devora o intelecto do Senhor Ramsay. O último é atormentado pelo fato de que jamais deixará uma contribuição duradoura no mundo, suas palavras serão engolidas pelo tempo, como areia pelas águas do mar, como Virginia Woolf jamais o foi. 

Ela é indelével, sua tinta continua estimulando a mente dos leitores, suas reflexões continuam acompanhando longas noites ou dias introspectivos, sua poesia a manterá para sempre num patamar de qualidade onde estão os mais consagrados. E é a sua sensibilidade, sua inteligência aguçada, sua prosa envolvente, seu estado constante de olhar para o que acontece dentro que poderemos encontrar tanto no terceiro ato de Ao Farol quanto nas demais obras de Woolf. 

Muitos atribuem a depressão da autora ao seu estilo de escrita introspectivo, mas sabemos que isso não é verdade. É o jeito de notar os detalhes e valorizar os sentimentos. Sua obra para sempre vai durar, pois em cada sílaba há um quê de verdade. Feminista e crente na independência das mulheres, Woolf tem um jeito de lidar com as suas personagens que serve de inspiração para autores até os dias de hoje. Encontramos uma crítica ao comportamento masculino da época que é relevante em tempos contemporâneos na figura do Sr. Charles Tansley, famoso pelo trecho “as mulheres não sabem pintar, as mulheres não sabem escrever…”. Nele, certamente mora a percepção de Virginia acerca dos companheiros escritores da época ou de outrora, uma linha de pensamento retrógrada que, porém, atravessou o século e convive conosco atualmente. Existe um desbalanceamento óbvio ao valor que atribuem ao intelecto de um homem e uma mulher mesmo pulando um século. 

Há também, na composição de Ao Farol, o ato de estar sempre exercitando alguma forma de arte dentro da própria arte; isso está presente no livro na forma da artista plástica Lily, que não pertence apenas à primeira parte da história, como sobrevive até o seu final. Nem todos os visitantes da casa na Ilha de Skye, Escócia, onde se desenrola o romance, chegam ao seu fim com vida. Mas existe uma garantia: eles continuam na memória dos sobreviventes. 

Aqui, nem sempre vamos ler o que aconteceu numa narrativa linear ou mesmo direta. Existe, sim, o emprego de frases que soltam revelações impactantes de forma aleatória, mas outros fatos serão encontrados na narração de lembranças, conforme vamos lendo um personagem perdido em seus pensamentos. O próprio tempo é usado como recurso: a primeira parte do livro acontece em um dia, seguindo um salto temporal de dez anos, e, novamente, um dia. Mesmo espaços curtos, como o decorrer de vinte e quatro horas, podem ser preciosos na simplicidade dos integrantes da família e em suas emoções que vamos conhecer não durante alguma espécie de fato condutor longo ou eventos múltiplos. 

Aliás, existe, sim, um fio. Algo que nos acompanha do começo ao fim. Ele tem forma na pessoa de Lily Briscoe e seu objetivo de finalizar o quadro, e no desejo de James Ramsay em chegar ao Farol. Ambos acontecem apenas dez anos depois, simultaneamente, com o destino interligando a pintura de Briscoe e o desejo de James já perdido uma década atrás. Os dois personagens, marcados pela figura da Sra. Ramsay e perdidos no espaço-tempo, aliviados pelo fim da guerra e transformados pelas cicatrizes que a mesma deixará neles, lançam uma sombra em suas almas, para sempre. 


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Texto: Nathália de Morais 
Imagem de destaque: Mia Sodré 
Nathália Morais
Pernambucana com o sertão nas veias. Apaixonada por fantasia, true crime e escrever mundos.

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