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A caça às bruxas na Europa e sua raiz social em Calibã e a Bruxa

 

“A caça às bruxas na Europa foi um ataque à resistência que as mulheres apresentaram contra a difusão das relações capitalistas e contra o poder que obtiveram em virtude de sua sexualidade, de seu controle sobre a reprodução e de sua capacidade de cura.”

(Silvia Federici - Calibã e a bruxa)

Escrito pela historiadora e ativista Silvia Federici, a obra Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva estabelece e evidencia o papel da mulher nas lutas feudais, movimentos heréticos e formação da sociedade medieval e Estado, enquanto trata do movimento da caça às bruxas para além do misticismo e crenças da época, e sim manobra de exploração da mulher. O livro recebeu uma edição preciosa e uma tradução impecável pela editora Elefante no ano de 2019. 

Mulheres e a acumulação primitiva


Quando tratamos sobre a história do proletariado, a caça às bruxas segue sendo um menos fenômenos menos estudados, ao mesmo tempo em que na mídia não nos faltam exemplos de filmes, livros e séries que retratam (e repensam) o genocídio das mulheres ditas bruxas, muitas vezes tornando-o uma questão folclórica. Tendo mulheres camponesas como maior parte das vítimas, essas mulheres  “miseráveis que sofriam alucinações” foram descritas em termos médicos como parte de um “pânico”, uma “loucura”, uma “epidemia”, o que despolitiza os crimes cometidos por seus caçadores.

Como apontado por Federici, foi apenas com o movimento feminista que os estudos sobre a caça às bruxas saiu da clandestinidade e elas começaram a ser pensadas como símbolo de revolta feminina; diziam que centenas de mulheres não poderiam ter sido massacradas e submetidas às torturas mais cruéis se não tivessem proposto um desafio à estrutura de poder. Ainda mais se considerarmos que nesses mais de dois séculos de perseguição também ocorreu um momento decisivo para a história e posição das mulheres europeias, o chamado “pecado original”, processo de degradação que as mulheres sofreram socialmente com a instalação do capitalismo.

A caça que aprofundou a divisão entre mulheres e homens tomou forma por volta da metade do século XV. Em uma época de revoltas populares, epidemias e crise feudal, os primeiros julgamentos da bruxaria ocorreram no sul da França, na Alemanha, na Suíça e na Itália, mesma época também em que se desenvolveu a doutrina sobre a bruxaria, na qual se declarou a prática como heresia e crime máximo contra Deus, o que futuramente daria origem ao fúnebre Malleus Maleficarum (no Brasil, publicado com o título O Martelo das Feiticeiras), manual que orientava como descobrir e punir as bruxas que desafiavam a religião e a fé.

Edição de 1574 do Malleus Maleficarum

A perseguição chegou ao seu ápice entre 1580 e 1630, época na qual as execuções se multiplicaram e o Estado, juntamente da Igreja, começou a denunciar e a condenar a bruxaria e seus praticantes. Vale destacar que foi a Constitutio Criminalis Carolina, o Código Legal Imperial promulgado pelo rei católico Carlos V, em 1532, que estabeleceu que a prática de bruxaria deveria ser penalizada com a morte. Após 1550, países como Escócia, França e Países Baixos também condenariam à morte quem fosse considerada bruxa. 

A caça às bruxas foi a primeira perseguição na Europa que fez uso de propaganda multimídia visando criar uma psicose coletiva entre a população, espalhando panfletos que detalhavam os julgamentos mais impactantes. O Estado também propiciava um ambiente no qual expressavam publicamente sua preocupação com a propagação da bruxaria, o que causava o início do boca-a-boca, no qual os vizinhos se acusavam entre si.

Como parte dessa construção, os juristas, magistrados e demonólogos tinham papel central na sistematização dos julgamentos, dando um formato padronizado e que beirava o burocrático, o que explica a semelhança das confissões registradas. Com o apoio de grandes pensadores da época, como Thomas Hobbes, não podemos negar que existiu uma iniciativa política que, junto com a Igreja Católica e seu arcabouço metafísico e ideológico, estimulou tantas execuções. Silvia Federici afirma: 

"Sem a Inquisição, sem as numerosas bulas papais que exortavam as autoridades seculares a procurar e castigar as 'bruxas' e, sobretudo, sem os séculos de campanhas misóginas da Igreja contra as mulheres, a caça às bruxas não teria sido possível."

No século XVI, a caça às bruxas estava em seu auge e as mulheres eram os alvos mais comuns, e mesmo que a bruxaria fosse relacionada à grande parte das práticas femininas, a capacidade da mulher feiticeira, curandeira, encantadora e adivinha era considerada como mais grave e urgente, já que debilitava o poder e autoridade do Estado. Essas artes mágicas, no entanto, só foram tratadas como um feito demoníaco devido ao momento de crise e luta social. A intensidade das perseguições também cresceram juntamente às revoltas urbanas e rurais. Em tais revoltas, muitas vezes eram as mulheres que davam o pontapé e tomavam à frente da luta, como quando os homens foram encarcerados e massacrados. Então, coube às mulheres o levar adiante a resistência. Houve também uma continuidade entre a caça às bruxas e a perseguição que ocorrera com os hereges, que comumente castigou formas de subversão social e impôs a ortodoxia religiosa. 

Mulheres e o corpo


Considerando que a grande diferença entre a heresia e a bruxaria é que a bruxaria é um crime feminino, ambos os praticantes foram acusados de sodomia, infanticídio e adoração aos animais, mas entre os séculos XVI e VXII, 80% das pessoas julgadas na Europa eram mulheres acusadas de bruxaria. E a explicação para a tendência da mulher se relacionar com o demônio era na verdade bem simples: sua luxúria insaciável. A debilidade mental e moral da mulher dava origem a essa perversão; a mulher era um ser diabólico. 

A perversão sexual e as acusações de infanticídio eram ligadas às práticas contraceptivas, que em teoria faziam parte de uma conspiração para boicotar a potência geradora dos homens e dos animais, fazendo parte de uma seita infanticida que visava ofertar o corpo dessas crianças ao Diabo. O imaginário popular, então, veria a bruxa como uma velha luxuriosa, hostil à vida nova e que se alimentava de crianças e usava seus corpos para fazer poções mágicas - e isso ouvimos até hoje em histórias infantis. As altas taxas de mortalidade infantil típicas da época, que vinham do crescimento da pobreza e desnutrição, também enfatizavam essa acusação de infanticídio, já que as crianças recém-nascidas morriam subitamente e não resistiam à grande quantidade de enfermidades a qual eram expostas. 


Essa alta gama de enfermidades e as epidemias causaram também um declínio populacional na Europa. O corpo-feminino-reprodutor deveria, então, trabalhar em prover um novo crescimento demográfico, e mulheres que “boicotavam a potência geradora” e faziam uso de métodos contraceptivos iam contra essa tendência do feminino como máquina de produzir mão-de-obra. Sobre isso, Federici diz: 

"O que podemos afirmar com certeza é que a caça às bruxas foi promovida por uma classe política que estava preocupada com a diminuição da população, e motivada pela convicção de que uma população numerosa constitui a riqueza de uma nação."

A bruxa, para além da mulher que evitava a maternidade, era a mulher libertina e promíscua, a prostituta e a adúltera, mulheres que praticavam sua sexualidade, e essa má reputação era uma prova de culpa nos julgamentos. Se a mulher era rebelde e não chorava sob tortura, era uma prova de culpa. As acusadas eram despidas e completamente depiladas, já que existia uma crença de que o demônio se escondia entre seus cabelos, depois eram furadas com agulhas por todo seu corpo, em busca de um sinal do demônio, eram estupradas - se a virgindade fosse constatada, era um sinal de inocência. Seus membros eram arrancados, seus ossos, esmagados, eram queimadas vivas e enforcadas publicamente, um evento que era visto como lição.

A caça às bruxas mudou também a relação entre o diabo e a bruxa. A mulher agora era uma criada, uma escrava, o súcubo de corpo e alma, enquanto o diabo era seu dono, senhor, cafetão e marido. Novamente tomando partes do Malleus Maleficarum, as mulheres eram destruidoras do corpo masculino, contaminavam ao serem tocadas, e o prazer que propiciavam era mais amargo que a morte. Em teoria, bruxas também podiam castrar homens e deixá-los impotentes; algumas roubavam os pênis dos homens e os escondiam em ninhos de aves. Com a propaganda desses casos feita, ocorria ainda mais uma separação entre os homens e as mulheres; o homem temia a mulher e a mulher era colocada ainda mais como um ser fraco e inferior, por se render aos encantos do diabo.


Para encerrar essa sequência de exemplos dos absurdos a que as mulheres bruxas foram submetidas, elas também foram acusadas de tomar a aparência animal, tendo o “familiar” em forma de sapo como mais frequente, já que ele simbolizava a vagina e sintetizava a sexualidade, a bestialidade e o mal.

Podemos, então, finalizar essa reflexão com a conclusão de que a Igreja Católica, o Estado e o patriarcado trabalharam furiosamente para a condenação da mulher livre, seja socialmente ou sexualmente. E pensar esse período de caça às mulheres (para além das bruxas e crenças religiosas) foi um importante momento para a história da opressão e luta das mulheres - das mulheres que não queriam ser máquinas reprodutoras, que não queriam se subverter às mudanças sociais capitalistas e que não queriam ser impedidas de exercitar sua subjetividade sexual. Das mulheres do corpo. 


Arte em destaque: Mia Sodré  

Juliana Toivonen
Licenciada em Letras pela Universidade Federal de São Paulo. Entusiasta da literatura de autoria feminina e do resgate de vozes e narrativas perdidas. Pesquisadora na área da literatura portuguesa. Publicou o livro "palavras roubadas de mulheres mortas" pela Margem Edições em 2021.

Comentários

  1. Como exemplo dos filmes, podemos citar "João e Maria: caçadores de bruxas" que é um exemplo claro de todas as atrocidades cometidas contra as mulheres no período da caça às bruxas, como descrito neste artigo. Adorei o texto,Ju!

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