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Maria Teresa Horta: a reescrita revolucionária das cantigas trovadorescas


A poetisa portuguesa Maria Teresa Horta, nascida em 1937, estreou na década de 1960, publicando livros como Espelho inicial (1960) e Cidadelas submersas (1961), e fez parte do movimento que ocasionou uma “virada” na poesia em Portugal, o Poesia 61 (1961), que também teve Casemiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz Luiza Neto Jorge como escritores. No entanto, foi na década de 1970, com o grande Minha senhora de mim, que Teresa Horta deu força a seu projeto poético revolucionário de reescrita.

Nos poemas que compõem a obra, a autora se propôs a reescrever as cantigas trovadorescas de amigo e de amor, que possuíam um eu-lírico feminino, mas não eram escritas por mulheres de fato, ainda mais se considerarmos que elas tinham pouco espaço para estudo e escrita, tendo esses trabalhos mais concentrados em conventos. Como essas mulheres não tinham voz ou espaço para se expressar e para existir, a visão do feminino tornou-se algo objetivado e estereotipado. Nas cantigas de amigo, por exemplo, ocorre uma inversão de quem fala, ocasionando um sequestro da voz masculina, como ocorria com a voz feminina.

A transgressão de Maria Teresa já se tornava evidente pelo título da publicação. A expressão “minha senhora” (“mia senhor”) era a maneira pela qual o homem dirigia-se à mulher medieval, mas quando emprega a expressão "de mim", se apropriando do que antes era um vocativo, a poetisa enfatiza a mulher como dona de si própria. Assim inicia-se seu projeto poético que segue em curso durante a década de 1970.

Maria Teresa Horta
Esse estabelecimento da subjetividade feminina desponta no poema que abre a publicação. Em Regresso, temos a presença do corpo de quem fala. Na primeira estrofe, a persona poética feminina regressa a si mesma e reencontra-se. Nos versos seguintes, as partes do corpo também reconectam-se. Na penúltima estrofe temos o “Trago para fora / o que é secreto”, que consiste no movimento de saída, representando a externalização do ser mulher e do corpo da mulher no poema.

No poema que dá título à obra, Minha senhora de mim, Maria reescreve a cantiga Comigo me desavim, de Sá de Miranda, e restabelece o feminino no corpo do poema. Por exemplo, na segunda estrofe, o eu-lírico toma a voz e apresenta-se sem disfarces. Reparemos também no refrão do poema, uma das características das cantigas trovadorescas.

Quando Minha senhora de mim foi publicado, rapidamente também foi recolhido e a censura portuguesa estipulou que a portuguesa não poderia mais escrever nada e que sua editora estava terminantemente proibida de publicar qualquer coisa assinada por Maria Teresa Horta. Mas, em 1972, ela, junto de Maria Isabel BarrenoMaria Velho da Costa, as “três Marias”, publicou o Novas cartas portuguesas. Tratava-se de um projeto em que as autoras reescreveram o clássico Cartas portuguesas, de Mariana Alcoforado, como uma série de poemas, cartas, contos que versam sobre Mariana e muitas outras, de mulheres para mulheres, algo que fora abominado pela Portugal conservadora.


Logo que publicado, as três Marias foram levadas para a delegacia, onde tiveram que depor sobre o que tinham feito. Em entrevistas, Teresa Horta até declara que, nessa delegacia, havia elas e uma prostituta, como se o que elas tivessem feito fossem equiparados à prostituição. Outra coisa interessante que decorre do lançamento de Novas cartas portuguesas foi que, para evitar que o livro se perdesse e fosse destruído, as autoras enviaram algumas cópias da obra para um amigo que estava saindo de Portugal, e inclusive, Simone de Beauvoir recebeu uma cópia dessa leva fugitiva.

Voltando à parte dessa perseguição que elas viriam a sofrer, iniciou-se um processo contra elas; fanáticos começaram a atacar e a mandar cartas de ódio. Teresa Horta inclusive chegou a apanhar de um desses conservadores extremos na rua. Mas mesmo proibida de escrever, ela produziu Educação sentimental, que acabou sendo publicado em 1975, um ano após a Revolução dos Cravos que libertou Portugal do fascismo. Inclusive, a autora já declarou diversas vezes que esse foi o dia mais feliz da sua vida. Em seu Educação sentimental, que leva o mesmo nome do livro de Gustave Flaubert, o erotismo e o corpo feminino se mostram ainda mais presentes. Diferentemente da obra de Flaubert, a mulher é a protagonista dessas experiências advindas do amor e sexo.

No poema O ventre, um termo levantando em muitos e muitos poemas, podemos ler esse repositório de diversas formas - como o lugar onde se guarda algo, de forma erótica ou como manifestação da linguagem a fim de atingir a liberdade. O ventre age como dínamo de um corpo ativo, e temos esse movimento – toque, um dinamismo interno e externo. Em diversos poemas de Educação sentimental, os verbos estão no imperativo, para forçar essa “instrução” ao ato, com domínio e segurança sobre o que se está falando. O sujeito feminino é ativo em todos os 114 poemas do livro, tanto que existe uma série de poemas dentre todos esses que falam de cada parte do corpo, até chegar ao ato sexual, também descrito sempre com a mulher como uma guia, como voz ativa e com o corpo presente.

As três Marias: Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta
Já no final da década, em 1977, Maria Teresa Horta publica Mulheres de abril, que trata sobre aquelas que contribuíram na Revolução dos Cravos. O abril do título vem do dia 25 de abril, que marcou a revolução. Como podemos ler na dedicatória da obra: 

“A todas as mulheres, minhas irmãs, que durante estes últimos três anos tanto me ensinaram sobre a liberdade, a dignidade e a coragem.”

No decorrer do livro temos uma série de poemas baseados em excertos de jornais portugueses sobre feminicídio, nas mulheres cotidianas, do meio rural e comunistas. No poema Mulher de abril, o ventre retorna, assim como em Trabalho de parto, no qual temos novamente o corpo da mulher presente, agora já liberto e livre de qualquer “moral”. Nesse ventre nasce uma Portugal livre do fascismo, mostrando o protagonismo da mulher na revolução.

Em suma, nos versos de Maria Teresa Horta, o corpo da mulher, seja o corpo erótico ou o da linguagem, é revolucionário. Apoiando-se na reescrita e retomada da figura da mulher que antes fora sequestrada no cânone literário, no posicionamento como voz ativa e no reestabelecimento das autoras, abre-se espaço para repensar a repressão através dos séculos, até os dias de hoje. Com as palavras do corpo e da pele, uma denúncia das fraquezas da sociedade.

Referências



Arte em destaque: Mia Sodré 

Parte do estudo desenvolvido com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo 2021/03799-5.
Juliana Toivonen
Licenciada em Letras pela Universidade Federal de São Paulo. Entusiasta da literatura de autoria feminina e do resgate de vozes e narrativas perdidas. Pesquisadora na área da literatura portuguesa. Publicou o livro "palavras roubadas de mulheres mortas" pela Margem Edições em 2021.

Comentários

  1. Site incrível!Tenho muito orgulho de seu trabalho como pesquisadora, Jô! Também fico muito feliz por conhecer mais sobre a Maria Teresa Horta.

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