últimos artigos

Os romances da Bahia e a fuga de Jorge Amado da torre de marfim

A expressão “torre de marfim” sempre foi utilizada metaforicamente para designar locais isolados, afastados da sociedade, onde pensadores e intelectuais vivem, criando e desenvolvendo suas obras, completamente alheios às preocupações da realidade. Agripino Grieco, em seu texto "Literatura Proletária", publicado na edição de novembro de 1933 da Revista Momento, usou o termo para ressaltar que a nova literatura brasileira, produzida por jovens escritores no início da década de 1930, se afastava da “torre de marfim” e se envolvia nos meandros das dores do povo.

“Hoje, ninguém mais se envergonha de roçar pela blusa do operário, e há mesmo o perigo de cair no excesso oposto, de querer dar à blusa o tirânico prestígio antes atribuído à toga ciceroniana e à farda agaloada. Ninguém se envergonha de gastar psicologia com gente sem anel de grão ou títulos de nobreza, de meter num romance caipiras e tecelões, de sair do solar e entrar no mocambo, de aludir a cozinheiras e lavadeiras que que não usam o famoso colete de cetim preto de certas heroínas de Bourget.” 

Um dos principais expoentes da referida geração, que desconstruiu conceitos impregnados na velha forma burguesa de escrita, foi Jorge Amado. Em suas primeiras publicações, na série denominada por ele como “Romances da Bahia” – formada por O País do Carnaval, Cacau, Suor, Jubiabá, Mar Morto e Capitães da Areia –, o autor baiano já fugia do purismo idealizado para mostrar as dificuldades, as mazelas e os costumes do povo do estado com honesto realismo. 

O País do Carnaval: um Jorge Amado ainda cru

Em 1930, Jorge Amado tinha apenas 18 anos, e os sinais da juventude eram evidentes no texto de seu primeiro trabalho, O País do Carnaval. Considerado um romance de geração, o livro apresenta reflexões acerca do sentido da vida, da busca pela felicidade e do sentimento de pertencimento. O protagonista Paulo Rigger e seus amigos defendem, em verborrágicas discussões, distintas visões sobre inúmeras temáticas sociais, escancarando as próprias dúvidas e angústias do escritor. Temas como patriotismo, intelectualismo, moralismo, hipocrisia, religião e até mesmo machismo são colocados em pauta, demonstrando a ânsia de um autor ávido por expor todas as suas insatisfações de uma só vez. A obra flerta com o existencialismo, navega pelos meandros da filosofia e tenta refletir sobre a aura contraditória do Brasil. Em que pese não apresentar um Jorge Amado com posicionamento político bem definido, O País do Carnaval já retrata um autor com preocupações e interesses no assunto. De acordo com um trecho desse livro:

Paulo Rigger e José Lopes não saíam da redação, em longas conversas. Aqueles dois homens exatamente diferentes se compreendiam. Ambos não estavam satisfeitos com a própria vida. Ambos sentiam a necessidade de algo que não sabiam o que fosse, algo que lhes faltava. Eles chegaram à conclusão de que se vive para qualquer coisa superior. Ricardo Brás afirmava que a finalidade da vida, isto é, a Felicidade, só se encontra no amor. Jerônimo Soares insinuava o medo que talvez a religião satisfizesse essa ânsia de finalidade de todos os homens. Paulo Rigger inclinava-se para o que dizia Ricardo. José Lopes não duvidava que Jerônimo tinha razão, mas não chegavam nunca àquela certeza a que os outros tinham chegado. Entre eles, Pedro Ticiano, agora com uma terrível doença nos olhos que lhe ia roubando a vista, jurava, sobre a experiência dos seus sessenta e cinco anos, que o homem superior não tem finalidade. Vive por viver.

Importante ressaltar que o efervescente cenário político brasileiro do início dos anos 1930 teve influência direta no enredo de O País do Carnaval e também no caminho ideológico seguido por Jorge Amado. A década de 1920 havia sido de extrema criatividade cultural, caracterizando-se como um período muito transformador. No Brasil, houve a fundação do Partido Comunista, a realização da Semana de Arte Moderna e uma intensa insatisfação da população com os atrasos e desmandos do governo se espalhava. E foi exatamente essa insatisfação do povo com a república do café-com-leite que possibilitou a Getúlio Vargas a tomada de poder em 1930, ambiente retratado no romance. 

Cacau: a hora e a vez do romance proletário

Em 1933, já militando na Juventude Comunista do PCB, Jorge Amado publica Cacau, obra que narra a vida dos trabalhadores rurais na zona cacaueira do sul da Bahia e os maus tratos sofridos por eles nas mãos dos coronéis. Os ideais socialistas, a consciência de classe e a luta contra a servidão começam a surgir no trabalho do escritor, o que leva Cacau a ser apreendido por agentes do governo Vargas e a ter sua comercialização proibida sob a acusação de ser material pornográfico. 

Apesar disso, o livro fora um sucesso, virando referência da nova literatura nacional, e Jorge Amado se transformando em protagonista dentre os seus pares.

Fato curioso é que, na epígrafe de Cacau, Amado deixa evidente a sua tentativa de fuga da “torre de marfim” com o texto: “Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia”, e pergunta: “Será um romance proletário?”.

Doutrinariamente, o movimento conhecido como “Romance Proletário” dura de 1930 a 1935, e tem dentre suas principais obras, além de Cacau, Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, Os Corumbas, de Amando Fontes, O Quinze, de Rachel de Queiroz, e Parque Industrial, de Patrícia Galvão, a Pagu.

Porém, como bem pontua o professor Roberto Amado em seu curso Revelações sobre o Romance Proletário, a literatura feita no início dos anos 1930 no Brasil não era necessariamente “proletária”, tendo em vista que um “romance proletário” precisa responder “sim” para pelo menos uma das perguntas:

  1. É um romance escrito por proletários?
  2. É um romance lido por proletários?
  3. É um romance que fala sobre proletários?

Evidente que o que vinha sendo feito não era escrito nem lido por proletários. Sobre o fato de tratar a respeito deles, o professor Roberto Amado destaca que o “proletariado”, a classe trabalhadora, apesar de toda a opressão sofrida, sempre foi incluída no contexto social nacional, com salário, direitos e organização. Os livros citados, em especial os de Jorge Amado, tratam, na realidade, daqueles que Friedrich Engels chamava de “lumpenproletariado”, ou seja, os excluídos, miseráveis, que passam fome, que vivem na seca e que morrem à míngua. Roberto Amado ainda ressalta que o chamado “Romance Proletário” sempre carregou a imagem de ser ideológico e de fazer proselitismo político, fato determinante para que, por muito tempo, se desvalorizasse a proposta estética e literária de suas obras.

Suor: um romance coletivo

Jorge Amado também negou ter havido um movimento racional e orquestrado de desenvolvimento de um “Romance Proletário”, mas se orgulhava de ser rotulado como autor “político”. Em seu texto Apontamentos sobre o moderno romance brasileiro, publicado na Revista Lanterna Verde de maio de 1934, Amado ressalta que a nova literatura é um grito da massa, da multidão, não importando mais o sentimento de heroísmo individual, bastante presente no que era feito anteriormente.

Jorge Amado e a esposa, Zélia Gattai
 
No mesmo texto, o escritor expõe o conceito de “Romance Coletivo”, no qual não há protagonistas singulares, e, sim, uma coletividade em destaque. De alguma forma, seu terceiro romance, Suor, é um excelente exemplo da ideia. Interessante salientar que o professor Roberto Amado destaca não ser completamente verdade que Suor não tenha protagonista, pois muitos especialistas consideram haver nele vários protagonistas.

Lançado em 1934, Suor conta a vida difícil de diversas pessoas que vivem em um enorme cortiço na Ladeira do Pelourinho. Operários, prostitutas, imigrantes, estivadores, pescadores, mendigos, mais de 600 moradores se amontoam em aproximadamente 116 quartos, em condições de absoluta insalubridade. Mais uma vez, há uma forte crítica ao capitalismo e à exploração do homem e, como era de se esperar, foi queimado em praça pública em 1937 pelo Estado Novo.

Jubiabá, Mar Morto e Capitães da Areia: a maturidade de um autor

Um ano depois de Suor, Jorge Amado publica Jubiabá, um romance de formação com um protagonista muito bem definido e com representativas características de heroi. Em Jubiabá, Jorge Amado alcança uma maturidade invejável com um texto coeso, de fôlego, que ganhou admiradores em todo o mundo e até hoje é extremamente cultuado como um dos maiores êxitos de seu autor. Narrando a história de vida de Antônio Balduíno, o enredo transita nas dificuldades da vida no morro, na magia do candomblé, no sofrimento das crianças de rua, na exploração dos trabalhadores rurais, nos riscos enfrentados pelos pescadores e pelos homens do cais. Portanto, Jubiabá pincela várias temáticas que viriam a formar a essência da carreira de Jorge Amado.

Como já dito, o período compreendido pelo movimento do “Romance Proletário” se encerra, doutrinariamente, em 1935. Entretanto, isso não quer dizer que os autores abandonaram as suas características a partir daí. É verdade que com Mar Morto há uma grande quebra no estilo de Jorge Amado. A obra se notabiliza por ser extremamente poética e lírica, com uma aura mística poderosa, em que pese não abandonar o foco nos sofrimentos dos excluídos, nas dores dos trabalhadores do cais, dos mestres de saveiros e das mulheres que esperam na areia sem saber se Iemanjá irá devolver os seus amores com vida.

“O oceano é muito grande, o mar é uma estrada sem fim, as águas são muito mais que metade do mundo, são três quartas partes e tudo isso é de Iemanjá. No entanto, ela mora é na pedra do Dique do cais da Bahia ou na sua loca em Monte Serrat. Podia morar nas cidades do Mediterrâneo, nos mares da Califórnia, no mar Egeu, no golfo do México. Antigamente ela morava nas costas da África que dizem que é perto das terras de Aiocá. Mas veio para a Bahia ver as águas do Rio Paraguaçu. E ficou morando no cais, perto do Dique, numa pedra que é sagrada. Lá ela penteia os cabelos (vêm mucamas lindas com pentes de prata e marfim), ela ouve as preces das mulheres marítimas, desencadeia as tempestades, escolhem os homens que há de levar para o passeio infindável no fundo mar.”

Gilberto Freyre em seu texto Sociologia e Litteratura, publicado na Revista Lanterna Verde de novembro de 1936, ressalta que a prosa criada pelos novos autores dos anos 1930 suplanta a poesia, que o forte vence o belo, que o feio vence o bonito, e destaca que há um misto de sociologia e literatura nas obras. Curiosamente, as palavras de Freyre são anteriores à publicação de Capitães da Areia, trabalho reconhecido como um dos principais exemplares da mistura entre sociologia e literatura na carreira de Jorge Amado. Último dos seis livros dos “Romances da Bahia”, Capitães da Areia é quase uma aventura, com personagens carismáticos e perfeitamente construídos, que expõe um problema social muito grave da Bahia e do Brasil, que é o envolvimento de menores abandonados com o crime.

Em suma, ainda que de enorme importância para um pensamento político-ideológico da época, é notável que é preciso reconhecer muito mais o chamado “Romance Proletário” por sua nova proposta estética apresentada e pela sua riqueza literária, que valoriza os diálogos e os costumes das ruas, e aproxima, de forma intensa, os autores e o sentimento do povo.

Jorge Amado, em sua série “Romances da Bahia”, criou um dos mais ricos inícios de carreira já vistos na literatura. Partindo de um romance de geração, protagonizando o romance proletário, passando pelo “Romance Coletivo”, pelo romance de formação, por uma obra de cenário lírico e concluindo com uma aventuresca análise sociológica. Mais do que escrever seis romances de valor literário imensurável, Jorge Amado principiou a sua trajetória fugindo da “torre de marfim” e jogando luz sobre as mazelas e as necessidades do povo sofrido da Bahia.

Referências 

  • A propósito de um romance: Cacau, artigo de Alberto Passos Guimarães (Revista Boletim de Ariel)
  • Literatura Proletária (Revista Momento)
  • Apontamentos sobre o moderno romance brasileiro (Revista Lanterna Verde)
  • Sobre um romance do Norte, artigo de Moacyr Werneck de Castro (Revista Acadêmica)
  • Sociologia e Litteratura (Revista Lanterna Verde)
  • Curso Revelações sobre o Romance Proletário (USP)
  • Jorge Amado: uma biografia (Joselia Aguiar) 


Arte em destaque: Mia Sodré (para ver mais, clique aqui
Carvalho
Escritor, advogado e podcaster mineiro. Acredita na arte e na indignação como elementos essenciais para a transformação social. Prepara seu primeiro romance, enquanto se alimenta do som e da fúria de Belchior.

Comentários

  1. Muito bom o texto! Ficou bem claro o que é o romance de proletariado e como o Jorge Amado foi um autor mais próximo do povo e mais distante das torres de marfins!

    ResponderExcluir

Formulário para página de Contato (não remover)