últimos artigos

O mundo de Filhos de Sangue


Ler Octavia E. Butler é um marco. É muito mais que uma experiência de leitura da Rainha da Ficção Científica e Mãe do Afrofuturismo, é toda uma experiência vivida em cada palavra escrita. São tantos os sentimentos e as situações que não cabem em um artigo só, mas tentaremos analisar um de seus contos mais famosos chamado Filhos de Sangue.

O conto é ganhador do prêmio Hugo e Nebula, um mais importantes da ficção científica mundial. Escrito em 1995, o leitor é levado para dentro da cabeça de Gan, um rapaz que começa a questionar seu papel de gerador das crias da alienígena T’Gatoi.

Seguindo os tropos da ficção científica desde as primeiras linhas, o primeiro tópico que chama a atenção no conto é a expulsão de um grupo de sua terra natal e a fixação em um território já habitado. Os seres humanos, chamados de Terranos, são expulsos da Terra e acham um lugar para se fixar na comunidade dos alienígenas Tlic. Os Tlic, que estavam em processo de extinção, descobrem nos humanos uma chance de implantação de seus ovos para fins de continuidade da espécie e criam essa relação de simbiose, dependência e poder. 


E, afinal de contas, por mais que estejamos falando de alienígenas e humanos, a expulsão de pessoas de sua terra natal acontece a todo momento e é algo extremamente nocivo. Os processos de repatriação são complexos e desafiadores, principalmente quando o lugar de fixação já é uma área ocupada por outros grupos de pessoas. A questão da Outridade, do Outro, é um ponto bem importante na ficção científica e é um tópico que aparece de diversas formas. A Outridade é, por muitas vezes, a ameaça, o diferente, o ser que está no limite do “aceitável” (para a humanidade). E, se por muitas vezes em histórias de FC, seres alienígenas, marcianos e verdes empreendem uma missão colonizadora para conquistar a Terra, em Filhos de Sangue Octavia consegue subverter essa lógica. Quem são os Outros no mundo dos Tlic são os humanos e, diferentemente do que se espera, eles são os subjugados naquele ambiente.

Muitos críticos e leitores de Octavia Butler enxergam esse viés da história como uma forma de metáfora da escravização e do processo de sequestro e expatriação de milhões de pessoas negras para serem escravizadas em colônias. É uma leitura possível e os argumentos são plausíveis. Ao mesmo tempo, a própria Octavia desbanca essa leitura em um comentário posterior ao conto.

A leitura é um exercício interpretativo constante, palavras escritas inspiram visões diferentes, e essa parte é a mais rica da experiência. Enquanto leitoras, podemos interpretar o livro como uma metáfora sobre a escravidão, o que não significa que a questão da subjugação do Outro não esteja ali. Ela está. Porém, a história é maior que isso, e talvez seja aí que algumas abordagens críticas acabam vacilando.

Nesse contexto, os Tlic acham nos humanos uma chance de sobrevivência e ali se criam relações que são baseadas na simbiose. Por muito tempo, esse processo foi nocivo para os terranos, que eram explorados sem distinções pelos primeiros. Mas T’Gatoi faz parte de um grupo político que cria a Reserva, um lugar controlado onde os Tlic escolhem seus humanos para serem geradores em uma relação de longo prazo e uma espécie de confiança familiar. Essa Reserva é criada como uma forma de “dar limites” para os Tlic, que tinham muita sede de procriação.

"T’Gatoi era perseguida no exterior. Seu povo queria que nós estivéssemos disponíveis. Apenas ela e sua facção política se colocavam entre nós e as hordas que não compreendiam por que havia uma Reserva."

O pai de Gan gestou T’Gatoi e Gan foi escolhido, mesmo antes do seu nascimento, para gestar os filhos de T’Gatoi. O menino aceitava essa tarefa de bom grado, sendo inclusive hostilizado por outras pessoas por conta disso (nesse sentido, o menino é o Outro nessa relação entre terranos). Mas, após presenciar o nascimento dos filhotes Tlic, ele começa a se questionar sobre seu papel. Com descrições bastante insólitas e sangrentas, conseguimos entender o porquê de a personagem ficar tão perturbada.

"Durante muito tempo me disseram que isso [o parto] era uma coisa boa e necessária que os Tlics e os terráqueos faziam juntos, uma espécie de parto. Eu tinha acreditado… até aquele momento. Sabia que o parto, fosse como fosse, era doloroso e sangrento. Mas isso era algo diferente, algo pior."

São diversos pontos que ecoam dessa relação: Gan, desde criança, estabelece uma relação muito forte com T’Gatoi; era ele quem passava a maior parte do tempo com a alienígena enquanto os irmãos aprendiam sobre os negócios da família. Gan parece olhar para a Tlic de uma forma muito carinhosa e fascinada. Mas não conseguimos deixar de lado que há, no nível mais básico, uma relação de poder da Tlic para com aquela família. Será que em outra situação Gan teria criado essa relação e aceitaria a gestação?


O que acontece ali é o acordo de co-habitação no planeta, são as obrigações terráqueas naquela sociedade. O que acontece ali na Reserva é uma tentativa de tornar o processo menos doloroso e exploratório, e a reprodução dos Tlic faz parte da sobrevivência da espécie, que agora pode crescer saudável. É a escolha de uma opção mais pacífica, mas não menos opressora para alguns terranos, como o irmão de Gan.

E, assim como a nossa sociedade, são relações que se estabelecem e são complexas. O carinho e fascínio de Gan por T’Gatoi foi, em seu nível mais basilar, criado por uma relação de poder. Mas essa base não é o fator-chave, pois esse poder também é a troca necessária, a simbiose entre espécies. Na teoria, naquela Reserva, há de se ter consentimento para que a implantação ocorra. E para Gan também é tudo muito ambíguo. Mesmo que não entenda muito aqueles sentimentos, ele queria gestar as crias de T’Gatoi. Não podemos ter certeza mas, no final da história, Gan consegue implantar uma ideia na mente de T’Gatoi que abre possibilidades para uma relação de mais transparência entre Tlics e Terranos.

O conto também mostra uma perspectiva de T’Gatoi da questão. Tlic parecia verdadeiramente acreditar no projeto da Reserva, porém, teve que entrar em jogos políticos que envolveram terranos como moeda de troca para ganhar poder. T’Gatoi também parece se importar com Gan e, por vezes, ser mais carinhosa que a própria mãe do garoto. Para ela, a implantação é questão de sobrevivência, garantia de continuidade da sua linhagem.

O conto não tece conclusões definitivas. A base da relação de Gan com T’Gatoi é o poder, mas há outros sentimentos, não um viés apenas utilitário. As escolhas nesse conto já partem de um lugar de pré-determinação; caso Gan não aceite, a irmã pode ser a gestora. E é essa diversidade de lados e interpretações que enriquece essa história de menos de 40 páginas sobre relações de poder, dependência de espécies, novos horizontes, o querer e o carinho.

Filhos de sangue é um conto que nos prende e nos retira da zona de conforto do começo ao fim. Octavia escreve com fluidez e lindamente. E para quem nunca teve contato com a autora, esse e outros contos e artigos que estão no livro Filhos de Sangue e Outras Histórias, publicado pela editora Morro Branco, com tradução de Heci Regina Candiani, são uma ótima primeira leitura. A capa estonteante e uma edição incrível são a cereja do bolo. 


Referências



Arte em destaque: Mia Sodré (para ver mais, clique aqui

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)