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Os caminhos de Tieta: do romance ao melodrama televisivo


Tieta do Agreste, romance de Jorge Amado publicado em 1977, é um clássico da literatura brasileira. Trata-se de uma obra que mapeia, de forma sagaz, ácida, mas realista, a colcha de retalhos do moralismo provinciano que tão bem representa o Brasil distante da vida das metrópoles. Conduzida pela figura de Antonieta Esteves, a Tieta do título, a filha pródiga catalisadora de toda a ação e conflito presente no enredo, Tieta do Agreste é uma história com potencial dramático que, como veio a se confirmar, transcende os limites da literatura escrita e faz necessárias adaptações em outros meios.

A história de Tieta ganhou duas adaptações para o audiovisual: na televisão, em 1989, como telenovela, e em 1996, como filme. A adaptação televisiva, conduzida pelo autor Aguinaldo Silva, com a colaboração de Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, foi um retumbante sucesso. Obteve a segunda maior média de audiência da história da TV Globo. Só não foi superada por aquela que pode ser considerada sua antecessora direta, a antológica Roque Santeiro, co-assinada por Dias Gomes e pelo próprio Aguinaldo Silva

Não é exagero dizer que o sucesso de Roque abriu caminho para Tieta, no que diz respeito a representar, através do microcosmo de cidade do interior, a essência das relações pessoais e as políticas da sociedade brasileira. Sumariamente proibida pelos censores no dia da sua estreia, em 1975, Roque Santeiro, baseada na peça O Berço do Herói, de autoria de Dias Gomes  um autor bastante visado pelo regime graças às suas contundentes críticas sociais de cunho marxista  passou exatos dez anos engavetada. Sua produção foi retomada, com novo elenco, e exibida em 1985, o exato ano da extinção da ditadura militar e instituição da chamada Nova República. 

Sinhozinho Malta (Lima Duarte) e Viúva Porcina (Regina Duarte) em Roque Santeiro, de 1985

Roque capturou como nenhuma outra produção a necessidade de se ver um retrato do Brasil desvelado sem disfarces, desmantelando a farsa do Brasil heróico que a ditadura militar tentou promover. Tieta foi trazida ao público poucos anos depois, durante um período igualmente oportuno, quando a produção cultural brasileira começava a respirar os ares de relativa liberdade após o fim da censura prévia (que ainda vigorava, ainda que claudicante, mesmo após o fim oficial do regime), com a implementação da nova Constituição Nacional no ano anterior (1988), e com uma mensagem que justamente reforçava esses anseios por liberdade e uma renovação nos costumes. 

Tieta, arrisco dizer, superou em relevância outras adaptações do romance original. Agradou em cheio ao público com os tipos divertidos, quase teatrais, que tão bem dialogam com os tipos que circulam e habitam o país. Apesar de retratar temas espinhosos no enredo, como cárcere privado, pedofilia e até incesto, a telenovela conseguiu a proeza de fazer essa transposição de forma leve, que não ferisse o tom de comentário satírico, evitando a rejeição por parte da audiência.

A herança textual do folhetim e do melodrama


Mesmo a obra de Jorge Amado, um autor consagrado, deve respeitar alguns códigos que são próprios da cultura televisiva. Portanto, de alguma maneira, ela deve sofrer modificações para que possa funcionar em outro meio narrativo, no caso, o audiovisual em veículo de massa. Mais do que isso, dentro desse patamar existem também os códigos do gênero telenovela, cuja linhagem textual remonta aos antigos folhetins. Eles eram textos literários publicados diária ou semanalmente nos periódicos franceses, no século XIX, em formato seriado e concluído com “ganchos”. Mais tarde, serviriam de base para a estrutura da rádio e da telenovela e do melodrama (gênero teatral dramático cujas marcações eram pontuadas por deixas musicais). 

Tanto o folhetim quanto o melodrama se valem de uma estrutura dramática muito clara, que consiste na luta do bem contra o mal através dos conflitos entre a heroína, o herói e o vilão (na telenovela, consagrou-se a figura da vilã). O arco narrativo também é previsível: a história começa em relativa calma, que é desfeita pelas artimanhas dos vilões para desfazer a paz inicial, os conflitos se intercalam, mas, no final, a paz é definitivamente estabelecida com o triunfo dos bons sobre os maus. O casamento, instituição burguesa por excelência, é a grande praxe dessas narrativas e é considerada o prêmio, a consagração dos virtuosos na trama, especialmente para as personagens femininas. Aqueles personagens que não cumprem com determinados códigos de conduta moral são punidos. Com modificações ao longo dos anos, devido às mudanças comportamentais e sociais que se deram ao longo do século XX, a telenovela, obviamente, incorporou elementos que renovaram e elevaram o gênero ao longo das décadas. No entanto, a estrutura nuclear do folhetim-melodrama, a luta do bem contra o mal e o casamento no final, se manteve.


É o que se pode dizer da maior parte das novelas de sucesso: mesmo que elas ousem em diversos aspectos, seja na crítica política e social, seja na linguagem dos personagens ou mesmo na identidade visual, essa estrutura básica, ancestral, deve ser mantida de alguma forma. Muitas tramas que se propuseram a quebrar essa tradição narrativa de forma muito brusca e radical, fracassaram. É importante lembrar que trata-se de um gênero narrativo que sobrevive do hábito, da rotina. A telenovela faz parte da vida diária do brasileiro e é natural também que se espere que ela forneça ao espectador alguma sensação de estabilidade. No entanto, de que forma uma trama como a de Tieta, uma história realista sobre a saga de uma mulher humilhada em busca de vingança, pode corresponder às expectativas dos rituais da telenovela e ser (muito) bem-sucedida?

As necessárias adaptações ao código dramático televisivo


A Tieta de Jorge Amado, portanto do Agreste, vem do contexto do universo criativo do autor, um expoente do modernismo regionalista, que aborda os embates sociais e de classe e faz críticas contundentes à desigualdade e ao poder paralelo do coronelismo, mas também retrata a religiosidade e a sabedoria popular em sua nativa Bahia. Nessa história, a jovem Tieta (Betty Faria) é uma pastora de cabras, de família muito pobre, mas traz em si um espírito contestador e comportamento considerado imoral para a pequena Santana do Agreste. Ela ganha uma má reputação na cidade por levar seus amantes para as dunas e desfrutar de uma vida sexual livre. Ao ser denunciada pela irmã Perpétua (Joana Fomm), uma beata rancorosa e moralista, ao pai Zé Esteves (Sebastião Vasconcelos) ela é expulsa da cidade, mas faz a promessa de, um dia, voltar para a cidade e se vingar de todos os que a julgaram e humilharam. Essa premissa básica da história foi aproveitada para o enredo da telenovela. Porém, para que pudesse ter fôlego ao ser exibida ao longo de sete meses e “funcionasse” como novela, o autor Aguinaldo Silva teve que tomar diversas liberdades e modificar núcleos, criar personagens e reescrever trajetórias.

Diante de todos os elementos que compõem o universo de Tieta e o perfil de seus personagens, como fazer com que o espectador se identifique com eles, reconheça os heróis e vilões e uma trama que se encaixe nos códigos melodramáticos? A começar pela protagonista: além de jurar vingança, descobre-se, com o desenrolar dos acontecimentos, que Tieta ganhou a vida como prostituta, ou “quenga”, no linguajar típico de Santana do Agreste. Não seria ela muito ambígua para ser a heroína? Outras personagens poderiam fazer as vezes de “mocinha”, como Leonora, a jovem protegida de Tieta. Temos na figura de Perpétua a vilã prototípica para se torcer contra; o avarento Zé Esteves, pai de Tieta e Perpétua. Os outros personagens, tipos populares muitas vezes indolentes e fuxiqueiros, não caberiam na gavetinha de “virtuosos” que o melodrama preconiza. Mas, por outro lado, este é o trunfo da telenovela: o dever de entreter o espectador. No caso de Tieta, a saída do autor Aguinaldo Silva foi apostar na comicidade  recurso que abre o precedente da imperfeição e da ambiguidade, do absurdo e do ridículo  e transformar grande parte da obra numa comédia de costumes, apenas mantendo alguns elementos que não a distanciem demais do melodrama típico das oito da noite.

A personagem com maior potencial melodramático e hierarquicamente mais relevante na trama, por associação à protagonista, é Leonora (Lídia Brondi). É o seu núcleo, estruturado no conflito amoroso com Ascânio (Reginaldo Faria) e Helena (Françoise Furton), respectivamente o maior amigo de infância de Tieta e sua ex-esposa, que trará a proposta do amor romântico sofrido e batalhado. A jovem vem de São Paulo, junto com Tieta, e carrega com ela o segredo sobre o verdadeiro paradeiro das duas na capital. Discreta e meiga, porém com alguns “vícios” de menina da cidade grande, ela sente-se deslocada em meio à conservadora população de Santana do Agreste. Logo na chegada, apaixona-se à primeira vista por Ascânio. A partir daí, Leonora cultiva o desejo de se entregar a um amor verdadeiro e ter uma vida simples, com uma família tradicional. Portanto, ela tem a intenção de se redimir em relação à sua vida antiga, o que a faz, em princípio, digna da torcida como mocinha, mesmo que ela omita (ou minta?) a sua verdadeira origem. Mas o romance com Ascânio não vem fácil: primeiro, existem os desencontros e os desentendimentos por conta das diferenças de pensamento, já que Ascânio, um homem mais velho e um tanto machista, espera uma mulher cordata e leal, que não o traia, como o fez sua ex-mulher, Helena. Aliás, Helena é outro vértice de conflito para o par ultrarromântico da novela, já que ela pretende separar o casal para ter Ascânio de volta. A diferença crucial do livro para a novela é que o primeiro, por se tratar de uma obra realista, dá um desfecho triste e até trágico para a sofrida Leonora: ela não fica com Ascânio, que a rejeita ao descobrir seu passado como prostituta. Já na novela, respeitando os ritos melodramáticos, Leonora e Ascânio passam por todas as provações impostas à sua relação mas, no fim, acabam juntos.

Betty Faria como Tieta do Agreste

E quanto a Tieta, a personagem-título? Eivada de contradições, a “cabrona”, como por vezes é chamada, chega em Santana do Agreste como um terremoto, pondo abaixo as modorrentas estruturas da sua cidadezinha natal. Seja na extravagância das suas roupas, que destoam de todas as cores locais, ou na (falsa) generosidade com que distribui presentes, a fim de causar discórdia entre aqueles que pretende punir, Tieta provoca estranhamento, choque e fascínio. Todos se perguntam qual é a fonte de tanto luxo, mas muito poucos têm coragem de confrontá-la (nem o fariam, sob o risco de perder as benesses). Uma de suas jogadas mais controversas foi ter seduzido o próprio sobrinho, o jovem seminarista Ricardo (Cássio Gabus Mendes), que padece com a tentação no quarto ao lado. Ao mesmo tempo, Tieta tem relações genuínas e leais. Um exemplo é Carmosina (Arlette Salles), a grande amiga de juventude, funcionária do correio local e solteirona (portanto, “invicta”e virgem), a grande confidente de Tieta e a única pessoa a quem a protagonista confidenciou seu plano de vingança. Também temos Tonha (Yoná Magalhães), sua madrasta, mas quase da mesma idade, uma mulher muito sofrida e submissa ao avarento e agressivo marido. Nem mesmo seus sentimentos são somente negativos ou suas intenções inteiramente torpes: ela acaba por se apaixonar por Ricardo, o que acaba por colocar seus planos de revanche em segundo plano, ainda que temporariamente.

É claro que Tieta não trouxe apenas a discórdia; ela trouxe literal e simbolicamente a luz para Santana do Agreste. Literal pois, graças à sua influência, conquistada pelo contato com figuras importantes da política, ela fez com que o abastecimento de energia elétrica passasse pela cidade. E, simbolicamente, graças ao seu comportamento livre e independente, que foi catalisador de profundas transformações na malha social. Ela levou o que hoje em dia chamamos de “empoderamento”, em especial às oprimidas mulheres da cidade.

Voltando ao início do texto, quando falamos que Tieta veio num momento muito oportuno na história do Brasil, quando havia intenso anseio de liberdade, a personagem representou esse zeitgeist de tal maneira que, mesmo sendo a personagem-título de uma novela, deu-se ao luxo de romper com inúmeros ritos da narrativa melodramática. Ela não foi, em momento algum, a heroína indiscutivelmente virtuosa, pelo contrário: seus fins justificaram seus meios em inúmeras ocasiões e tiveram consequências desastrosas para alguns dos envolvidos. Embora tenha tido alguns envolvimentos, notadamente com Ricardo e Osnar, outro velho conhecido, Tieta terminou a novela sozinha. Para outra protagonista, isso certamente assinalaria uma punição, uma quebra fundamental da tradição, já que ela não cumpriu com o rito do matrimônio. Porém, para Tieta, funciona justamente para reforçar sua identidade autônoma, sua simbologia de liberdade e independência feminina. Tieta vai estar com um homem apenas se desejar e se isso não representar a perda da sua integridade. Até porque, um casamento significaria criar laços com Santana do Agreste, e a própria disse inúmeras vezes que só estava por ali “passando uma chuva”.

Conciliar concessões à tradição e às inovações ao texto teledramatúrgico e fazer com que isso resulte em um êxito de repercussão e audiência é uma alquimia de muitos fatores, entre eles a conjunção de um texto bem elaborado e rico, que dialogue com seu tempo e com as demandas da sociedade, que proponha tanto entretenimento quanto algum nível de reflexão e que proponha questões ao espectador. Talvez seja essa a receita para uma obra que não apenas não perde, mas renova sua relevância aquilo — que hoje em dia, de forma bastante leviana, diga-se de passagem chamam um clássico. Tieta foi relançada em 2020 pelo Globoplay e, durante praticamente o ano todo, foi a novela mais assistida da plataforma em número de horas. Acho que ela veio passar uma chuva. 


Texto: Theodoro Castro
Imagem de destaque: Sofia Lungui 

Comentários

  1. Já li alguns livros do Jorge Amado e gostei muito da escrita do autor, a forma como ele aborda temas relevantes e faz uma crítica a diversos problemas existentes na sociedade.

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