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A jornada do herói na novela Pai Herói


Quem é o herói de Pai Herói? O próprio título da novela, Pai Herói, pode denunciar grandes contradições - será que o pai é o herói? Será que ele sequer é um herói? Nessa jornada, o herói - de fato, aquele que nos conduz pela sua aventura - deverá desconstruir verdades para então ocupar seu lugar. Estaria Janete Clair de alguma maneira condensando em duas palavras um dos mais cruciais estágios da complexa jornada do herói, teoria arquetípica desenvolvida por Joseph Campbell em seu seminal livro O Herói de Mil Faces?

Lançado em 1949, O Herói de Mil Faces ocupou-se de esmiuçar a estrutura arquetípica comum a diversas histórias tanto da mitologia grega quanto de sagas épicas (como a batalha de Gilgamesh) e até mesmo grandes figuras religiosas (as histórias de Jesus, Buda e Moisés foram analisadas pelo autor). Campbell teria traçado um caminho de desenvolvimento que seria compartilhado, integral ou parcialmente, por todas elas. A teoria de Campbell serviu de base para inúmeras histórias épicas criadas posteriormente, sendo Star Wars, a saga criada por George Lucas em 1977, o caso mais emblemático.

No caso da novela de Janete Clair, exibida em 1979 e baseada na radionovela Um Estranho na Terra de Ninguém, André Cajarana (Tony Ramos), um homem simples da pacata cidade de Paço Alegre, em Minas Gerais, criado pelo avô depois de anos em um orfanato, é um herói um tanto improvável. Ele não busca nenhum destino grandioso - tudo o que ele deseja é saber a verdade sobre o seu pai. A morte do homem que o criou propulsiona o rapaz a ir para o Rio de Janeiro para encontrar seu verdadeiro pai, uma figura para ele mítica, a quem acreditava ser um grande homem, iniciando-se assim a sua aventura na cidade grande e desconhecida. Lá ele enfrentará uma série de adversidades, grande parte delas imposta por Bruno Baldaracci (Paulo Autran), seu padrasto, a quem André atribui a culpa pelo desaparecimento do pai.

Tony Ramos como André Cajarana

Como podemos ver, André não está em busca de uma grande aventura - é a aventura que vai de encontro a ele no momento em que ele coloca o seu destino em movimento. Ao longo de seu percurso, ele se verá frente a frente com todos os elementos daquilo que se considera uma jornada heroica: um antagonista disposto a pôr abaixo os seus planos (Bruno Baldaracci); não uma, mas duas grandes paixões - Carina (Elizabeth Savala), uma bailarina de família abastada, presidente do grupo Limeira Brandão, alvo de grandes disputas, e Ana Preta (Glória Menezes), moradora do subúrbio e dona de uma casa de samba. André encontra também em César Reis (Carlos Zara), tio e marido de Carina, um grande desafeto, já que este casou-se com a sobrinha por interesse e vê em André um óbvio adversário. Mas, sobretudo, a busca de um sentido para a própria existência é o que move André, mesmo que ele não saiba exatamente o que irá encontrar.

Janete Clair e a representação da masculinidade


Janete Clair, a “Maga das Oito”, foi uma autora que ousou trazer para o centro das tramas das telenovelas da Globo histórias centradas em figuras masculinas, divergindo das tradicionais tramas românticas que enfocavam o sofrimento das protagonistas por amores impossíveis. Não que as novelas escritas por Janete abdicassem do conflito romântico, que é o cerne do gênero telenovela, mas pela primeira vez havia um forte elemento de aventura em cenários tipicamente brasileiros, comandados por personagens masculinos. Foi o caso de Irmãos Coragem (1970) e Cavalo de Aço (1973), por exemplo - ambas protagonizadas por Tarcísio Meira, protótipo do grande herói épico brasileiro.

Em Irmãos Coragem, um fenômeno de audiência e repercussão, a narrativa se passa na pequena cidade de Coroado, local fictício do interior de Goiás, e centra-se em três irmãos, João (Tarcísio Meira), o mais velho e líder, Jerônimo (Cláudio Cavalcanti), o irmão do meio, romântico e sonhador, e Duda Coragem (Cláudio Marzo), o mais novo, que sai de Coroado para ser jogador de futebol no Rio de Janeiro. Eles se levantam contra os desmandos do latifundiário Pedro Barros (Gilberto Marinho), que com o poder do dinheiro controla o comércio de diamantes local ao comprar votos, corromper a polícia e manter o punho de ferro sobre a população. A trama principal, com seus conflitos e plano de fundo rural, era basicamente um faroeste tupiniquim. Já o núcleo urbano, que se passava no Rio, ficava por conta do caçula Duda, que era um astro do Flamengo. A combinação entre faroeste e futebol na trama foi o que atraiu o público masculino para a novela que, segundo o Memória Globo, conquistou maiores índices no seu último capítulo do que a final da Copa do Mundo de 1970. Cada um dos três irmãos Coragem representavam uma face masculina: João era o tipo viril, tinha forte senso de justiça e, graças às suas qualidades, se torna líder dos garimpeiros; Jerônimo, o irmão do meio, era o mais retraído dos três, um tipo mais introspectivo; e Duda era o mais moderno, descolado, o elo com o Brasil urbano. 

Os irmãos Coragem: Jerônimo (Cláudio Cavalcanti), João (Tarcísio Meira) e Duda (Cláudio Marzo)

No caso de Pai Herói, a trama romântica é crucial na jornada de André Cajarana. Uma trama de Janete que serve como paralelo a essa é O Astro, de 1977. Nela, Tony Ramos vive Márcio Hayalla, filho do todo-poderoso Salomão Hayalla (Dionísio Azevedo), que ao não conseguir acertar as profundas diferenças de visão de mundo com o pai, abdica das riquezas do mesmo em uma cena bastante simbólica: tal qual São Francisco de Assis, ele se despe completamente das suas roupas e abandona todos os seus pertences, saindo da casa paterna em busca de algo totalmente seu. Márcio inicia sua própria jornada ao negar a figura paterna, ao passo que André a cultiva e até a cultua.

A própria presença de Tony Ramos dá a André um sentido de cavaleiro de copas, já que o ator empresta a ele um tipo sensível, um homem afável e profundamente conectado com o mundo das emoções. Ele nos conduz através da sua jornada arquetípica com afeto e esperança, mesmo diante de duras provações.

Como a jornada do herói se relacionada com Pai Herói 


Para termos claro como a história de André Cajarana se relaciona com a jornada do herói, é preciso que tenhamos em mente as etapas básicas da narrativa heroica de acordo com o estabelecido com o antropólogo britânico. São elas:

  • a partida: o herói deixa o mundo familiar para trás;
  • a iniciação: o herói aprende a navegar pelo mundo não familiar;
  • o retorno: o herói volta para o mundo familiar.

Nessa primeira etapa, o herói deixa o chamado “mundo comum” e atende um chamado à aventura, que é o que fará a narrativa entrar em movimento. Nesse meio tempo, ele se sente inseguro quanto a essa missão e pensa em desistir (recusa ao chamado), quando então encontra aquele que será o seu mentor, que o aconselhará e lhe dará incentivo para seguir em frente. Já na etapa de iniciação, ao entrar no “mundo especial”, o herói precisará colocar em prática tudo o que veio aprendendo ao longo de sua trajetória, pois é ali que enfrentará o seu grande desafio - o maior obstáculo ou inimigo. A terceira e última etapa é o retorno, quando o herói conclui sua jornada e pode retornar ao seu ponto de partida levando consigo algo que aprendeu ou conquistou ao longo de seu percurso. Isso pode ser algo material (riquezas, prêmios) ou simbólico (experiência, sabedoria).

Janete Clair, autora de Pai Herói

Dentro dessas três grandes etapas, existem 17 estágios intermediários na jornada, mas o mais importante para essa análise é o estágio 9, ou “expiação com o pai”. Este é considerado o ponto de virada, pois é quando o herói precisa enfrentar ou se reconciliar com uma temível figura de deus-pai, repensar seus objetivos e temores. Tudo o que ele viveu até então culmina neste momento, e este momento será chave para o porvir.

A ruptura do filho com o pai tem inúmeros ecos em histórias mitológicas (Zeus destronando Urano, para citar apenas um exemplo) e foi amplamente debatida na psicanálise. Sigmund Freud se apropriou, dentre outras obras literárias, do mote da peça Édipo Rei, de Sófocles, para criar as bases de sua teoria sobre o chamado Complexo de Édipo, no qual se ocupa mais de explicar as etapas de desenvolvimento da sexualidade humana - nessa, o filho direciona seu primeiro desejo sexual-afetivo para a mãe e seu primeiro instinto de aniquilação para o pai. Na peça, Édipo fora retirado do seio da família ainda bebê quando seu pai, Laio, descobre ao consultar o oráculo que um dos seus filhos o matará. Édipo, já adulto, retorna a Tebas e se envolve com Jocasta, sua mãe, e mata Laio, seu pai, sem saber que esses eram seus pais. Freud, portanto, dá uma dimensão simbólica ao mote da peça ao discutir os impulsos naturais de sucessão, no qual um filho precisa “matar o pai” para assumir o seu lugar de referência e autoridade. Como afirmou Joseph Campbell: 

“Um herói escapa do mundo comum para uma região de maravilhas sobrenaturais. Forças extraordinárias são encontradas, e uma vitória decisiva é conquistada: o herói volta dessa misteriosa aventura com o poder de conceder bênçãos a seu semelhante.”

Ao analisarmos a história de André Cajarana, observamos que a força-motriz que propulsiona a sua jornada é justamente a busca pelo pai e a defesa do seu legado, um pai que ele não conhece e tem apenas no seu imaginário a princípio. O que será que ele realmente busca ao tentar encontrar quem foi seu pai? Muito provavelmente, ele busca a si próprio, descobrir a sua própria verdade, a peça faltante do seu quebra-cabeça pessoal. É interessante observar que o nome de André Cajarana seria André De La Mancha, mesmo sobrenome do Dom Quixote de Miguel de Cervantes. Não é por acaso: Dom Quixote De La Mancha trava uma árdua batalha contra os dragões que na verdade não passam de moinhos de vento; da mesma forma, André construiu um propósito de vida em cima de uma ilusão. Ao descobrir a verdade sobre o pai - que não era, definitivamente, herói -, vai precisar “matá-lo” e reconstruir as bases das suas crenças. Essa é a sua expiação paterna: confrontar a verdadeira história de seu pai, nua e crua, e criar um destino para si próprio a partir dali.

Apesar de introspectiva se comparada com outras novelas de tramas abertamente mais épicas, inclusive da própria Janete Clair, Pai Herói também oferece uma saga com elementos ditos mágicos que conduzem o espectador para além da realidade propriamente dita - também em contraste com a sua antecessora, a realista Dancin’ Days, de Gilberto Braga, que revolucionou o gênero com seu naturalismo. Como disse o crítico Artur da Távola em sua coluna para o jornal O Globo em 8 de fevereiro de 1979, o clima proposto por Janete Clair em Pai Herói “pode ser chamado de mágico, por causa dos elementos que o compõem”. O autor enumera: 

“A existência da figura do herói. [...] Herói, não no sentido da heroicidade das histórias em quadrinhos e dos filmes, mas na concepção das histórias e feitos da mitologia. Em toda narrativa mitológica, o primeiro momento do herói é aquele chamado: ‘A inocência e a partida para a aventura’.”

Távola também menciona outros pontos: a “figura de representação de todo bem e toda bondade”, personificada em Carina (a quem ele se refere como “anima positiva”, princípio feminino, ou seja, a fada ou a heroína); a existência de um mistério a ser elucidado para entendimento da trama, corporificado na figura de Malta Cajarana (Lima Duarte), avô de André. O último ponto levantado por Távola, de consideração geral, seria de que na narrativa mágica os conflitos não são históricos, de natureza social ou política, dado a um determinado contexto, mas sim de caráter universal, tais como ódio, rivalidade entre irmãos, ciúme, amor entre diferentes, dentre outros temas que são atemporais. “O conflito universal, psicológico, atemporal, ‘ahistórico’ etc. é o que caracteriza a narrativa mágica”, conclui o autor.

Carina (Elizabeth Savalla) e André Cajarana (Tony Ramos)

Sendo assim, Pai Herói,como outras tramas de Janete Clair, se ocupa de trazer o grande espírito mágico e universal das narrativas dramatúrgicas para o horário nobre da televisão, porém com elementos da mais absoluta autenticidade local, uma combinação que cria grande identificação com o espectador. Janete, com seu texto peculiar e compromisso com a emoção, possuía a habilidade de levar o brasileiro comum para ser o herói de grandes jornadas.

Referências


Arte em destaque: Mia Sodré 

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