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Registrando vivências: o aspecto autobiográfico na ficção de Simone de Beauvoir

Primeiro ícone feminista, com o lançamento de O Segundo Sexo (1949), para além de filósofa e teórica, Simone de Beauvoir também foi professora e escritora de ficção. Com pelo menos 27 obras publicadas, sua potência criativa se manifestou na escrita através dos papéis que exerceu ao longo da vida, sua posição social, política e pessoal. Nascida na França em 1908, ela cresceu com a intenção se tornar escritora em algum momento, desejo expressado já aos 15 anos. Simone graduou-se em Filosofia na faculdade e publicou seu primeiro romance alguns anos depois, em 1943, chamado A Convidada. Para a normatividade da época, sua vida não foi nada comum para uma mulher. Ela teve a oportunidade de estudar com afinco e ser reconhecida por isso, nutrir romances sem precisar de um casamento, e viajar pelo mundo e atuar em prol da causa das mulheres e de outros movimentos.

Uma das grandes sacadas de sua literatura é que sempre têm alguma conexão com a própria Simone — questões, situações e pessoas baseadas em sua vida pessoal. No livro A Cerimônia do Adeus (1981), a autora trata principalmente de sua relação com o filósofo Jean-Paul Sartre. Em Mal-entendido em Moscou (1965), traz questões vivenciadas em uma viagem à capital russa com o mesmo homem. A história de A Convidada se baseia na relação que a escritora e seu companheiro tiveram com outra mulher. Simone fala, acima de tudo, da mulher. E do ser mulher.

Em A Mulher Desiludida (1967), lemos sobre certa fase da vida de três mulheres diferentes, passando por situações de peso emocional que envolvem maternidade, família, casamento, divórcio e o descobrimento de si mesma. Nas palavras carregadas de emoções, os capítulos descrevem com fidelidade os efeitos prejudiciais da socialização feminina, explicados com fundamento teórico em O Segundo Sexo, processo que educa as mulheres desde crianças a serem cuidadoras, passivas e submissas, procurarem um casamento com um homem e fazerem disso sua razão de viver. Quando a mínima coisa no percurso matrimonial se desvia, é o fim do mundo para uma mulher que deu tanto de si para fazer aquilo acontecer.

Falta de merecimento, crença em uma incapacidade e insegurança são alguns dos aspectos que envolvem as mulheres com a Síndrome da Impostora, derivada da socialização feminina. Talvez por isso a escrita de Simone, especialmente em A Mulher Desiludida, seja tão pesada: pela crueza com que consegue abordar esses temas sem romantizá-los. Simone tinha uma profunda capacidade de transmitir em narrativas a condição de ser mulher e seus percalços, provavelmente por seu exercício como filósofa. Dessa forma, o que escrevia em seus textos teóricos, como em A Velhice (1970), era transmitido em forma de narrativa ficcional nos textos literários — nesse caso, sobre aspectos relacionados ao tratamento de pessoas idosas na sociedade e os problemas que enfrentam conforme envelhecem.

Uma autora contemporânea com quem é possível comparar a escrita de Simone e as temáticas abordadas é Elena Ferrante. Há inúmeras semelhanças no estilo narrativo e nos temas tratados por ambas as autoras, apresentando personagens femininas e desenvolvendo narrativas de sentimentos conflitantes, pensamentos e questionamentos a todo momento. Obras como Um Amor Incômodo (1992), Dias de Abandono (2002) e a Tetralogia Napolitana (2011-2014) ilustram bem esse contexto. As angústias e os prazeres narrados pelas protagonistas sugerem um teor autobiográfico por parte das autoras. No entanto, torna-se uma especulação ao se tratar de Ferrante, já que sua verdadeira identidade é anônima. Contudo, é algo possível de ser afirmado quando se trata de Beauvoir. 

A pesquisadora Eliana Calado tem um estudo sobre o aspecto autobiográfico na ficção da autora, que afirma devir do grande interesse que Beauvoir nutria por si mesma. Ver o mundo através do próprio ser a ajudava a compreender ambos, e foi algo que marcou sua trajetória como escritora e intelectual. "É possível dizer que ela se mostrou fortemente convicta da importância em compreender e comunicar a sua própria existência" (Eliane Calado, 2012). Certamente, isso também contribuiu para que um incontável número de mulheres compreendessem questões acerca da própria existência e dos próprios sentidos, sem mencionar especificamente sua contribuição para o feminismo e a posição feminina na sociedade. Esse também era um de seus objetivos, segundo Eliane Calado, o caráter autobiográfico de seus textos era um projeto de utilidade pública diante da ideia de Beauvoir de que qualquer forma de verdade pode ser proveitosa ao coletivo. 

Simone de Beauvoir foi uma mulher que viveu sua potência criativa ao máximo em todas as esferas possíveis de sua vida. Podemos ver isso através da quantidade de obras literárias e projetos empreendidos. Quando falamos da escrita de Simone, também falamos de sua vida e sua posição social, política, pessoal. Separar a autora da obra, nesse caso, é algo extremamente difícil, pois ela carregava suas páginas com questões pessoais adaptadas a outros nomes e situações ficcionais. 

Por esse mesmo motivo, foi duramente criticada, tanto por acusarem-na de falsa criatividade ao utilizar elementos de sua realidade em suas histórias, como por expor e admitir questões que a mostravam como uma mulher falha. Nesse sentido, a crítica a chamava de traidora do feminismo, pois era como se, ao sofrer por um homem ou admirar seu peso intelectual, estivesse traindo os princípios feministas de independência quando, na verdade, Simone estava praticando justamente aquilo que pregava: humanizar a mulher. Podemos crer na possibilidade de que um de seus objetivos, ao viver e escrever sua verdade, era humanizar o sexo feminino. Mostrar ao mundo os sentimentos e falhas de uma mulher é mostrar que ela não é perfeita – portanto, é humana. Essa ideia se baseia na afirmação expressada em O Segundo Sexo

"O homem é definido como ser humano e a mulher é definida como fêmea. Quando ela comporta-se como um ser humano ela é acusada de imitar o macho."

Ou seja, toda sua obra leva à compreensão de que a mulher é um ser humano. Mesmo sendo feminista, ela não será perfeita, porque ninguém o é. Os homens não o são e os perdoamos por isso – ou a sociedade o faz. Assim, por intermédio de toda sua escrita de ficção, carregada de romances, sofrimento, conflitos internos e externos e personagens complexas que se apoiam na visão da própria realidade, podemos ver que mulheres são nada mais e nada menos do que seres humanos. E dar valor às suas histórias e sentimentos, sem julgamentos vazios, é enxergá-las como tal. 

Assim, ler suas obras é se identificar com trechos e diálogos construídos em cima de um realismo que mostra como as protagonistas lidam com desafios e mortes simbólicas. Afinal, foi observando e registrando as próprias vivências que Simone buscou dar sentido e valor à própria existência, bem como compartilhar isso com as outras mulheres.

Referências 

  • O Segundo Sexo (Simone de Beauvoir) 
  • Entre ficções e confissões – a escrita autobiográfica de Simone de Beauvoir (Eliana Calado) 



Arte em destaque: Mia Sodré 
Camila Ferrari
Pesquisadora e apreciadora de tons sóbrios. Com um pé na realidade e outro em algum mundo fantástico, é através da leitura e da escrita que define as bordas de si mesma. Sente o aroma de café de longe e é habilidosa em deixar livros espalhados pela casa.

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