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Cambalacho: quando um clássico bebe de outros


Em março de 1986, quando Cambalacho estreava na grade das sete da noite, ninguém imaginava que a novela de Sílvio de Abreu ultrapassaria a audiência do remake de Selva de Pedra, no ar no horário nobre naquele mesmo ano. O fato é que Tina Pepper (Regina Casé), a academia Psysical, a “perigosa” Andréia (Natália do Vale) e muitos outros elementos entraram para o rol de clássicos da teledramaturgia brasileira.

Cambalacho criou uma iconografia inesquecível. Se A Próxima Vítima é a novela policial-tropical, Cambalacho é a São Paulo dos anos 1980, o suco do Brasil daquele momento. Inflação, troca de moedas, roupas berrantes e ombreiras, está tudo ali. Tudo isso aliado a um texto afiado e bem-humorado, com veteranos “mais sérios” fazendo comédia, como Fernanda Montenegro e Cláudio Marzo, deu o toque que nos faz hoje, 35 anos após seu lançamento, reassistirmos e continuarmos rindo com os cambalachos de Naná (Fernanda Montenegro) e Gegê (Gianfrancesco Guarnieri).

O enredo 


Nossa história começa na Rua da Ponte, no Carandiru, em São Paulo. É lá que moram Naná e Gegê, duas personagens que vivem de pequenos trambiques, ou seja, os cambalachos do título da novela. A dupla aplica pequenos golpes para sustentar a filha de Naná, Daniela (Cristina Pereira/Louise Cardoso), que estuda na Suíça, e os outros filhos da personagem, que foram adotados por ela, recolhidos da rua.

Naná (Fernanda Montenegro) e Gegê (Gianfrancesco Guarnieri)

No entanto, isso não seria a mesma coisa se os dois trambiqueiros não fossem interpretados por Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri, dois dos nossos maiores atores de teatro. A química entre eles é crível, e nos faz torcer pelo casal, ainda que eles façam esses trambiques. A empatia que criam com o espectador é o que nos faz torcer por eles durante toda a novela, principalmente quando entram em conflito com a “cambalacheira mor” da trama, Andréia (Natália do Vale).

Cambalacho foi a primeira novela que Sílvio de Abreu escreveu sem a mão invisível da censura atuando. É por isso que as personagens principais da trama são duas golpistas - na época da ditadura civil-militar isso jamais teria sido possível. Com essa novela, Sílvio queria discutir a corrupção em todas as classes sociais. Embora o autor acredite que isso tenha se perdido por conta da comédia, tendo a discordar dele. Cambalacho mostra como os ricos podem roubar à vontade e não vão presos, mas o mesmo não se aplica aos pobres. Naná já era fichada na polícia por pequenos delitos, e ela viverá os reveses de ser uma mulher pobre que se tornou rica, o que sempre gera desconfiança em relação à sua honestidade em todo lugar.

Os enredos paralelos de Cambalacho se cruzam quando uma fortuna une o núcleo rico ao pobre. Andréia Souza e Silva (Natália do Vale) casa-se com o milionário Antero (Mário Lago), mas o acaba matando para ficar com a fortuna dele. Porém, ela sofre um revés ao descobrir que o falecido marido havia deixado tudo para sua filha desaparecida, a quem estava buscando antes de morrer. Naná e Gegê ficam sabendo disso pela televisão e decidem aplicar um "cambalacho" em Antero, com Naná se passando pela filha desaparecida dele. Com esse golpe, após a morte do milionário, a “cambalacheira” fica rica e passa a ser perseguida por Andréia, que não aceita ter acesso à fortuna de Antero.

Um clássico que bebe de outros clássicos 


Um dos motivos que me fazem ser muito fã de Sílvio de Abreu é como ele utiliza o cinema em suas narrativas. Assim como A Próxima Vítima, Cambalacho é repleta de referências a filmes clássicos. No livro Um Homem de Sorte, autobiografia de Sílvio de Abreu da Coleção Aplauso, o autor explica que foi educado pelo cinema e, por isso, a sétima arte está tão presente em seus trabalhos:

Sou um autor diferente dos outros. Sou visual e auditivo, não fui formado por leitura e sim pelo cinema. Quem ler um capítulo meu verá que lá estão todas as indicações: a luz, o tipo de cenário e até a inflexão.

Sílvio costumava muito em ir ao cinema e nunca escondeu sua paixão por musicais. Em Cambalacho, ele eleva isso ao máximo, fazendo com que a última cena da novela seja um grande musical, no qual bailarinos interpretam os personagens icônicos de sua trama. Nessa grande apoteose da teledramaturgia brasileira, alguns bailarinos aparecem dançando em cima de um prédio, uma referência direta ao musical GodSpell: A Esperança, no qual as personagens dançam no terraço do finado World Trade Center.

No entanto, as referências aos musicais da novela não param por aí. Sempre que a trama está muito pesada, o musical é uma das ferramentas usadas para suavizá-la. Assim como os musicais dos anos 30, que surgiram em contraposição à monotonia e à fragmentação da vida real, Cambalacho viaja para uma realidade paralela, que mais se parece com um musical da Metro-Goldwyn-Mayer do que com qualquer outra coisa. 

O musical enquanto utopia


É no musical que encontramos momentos de utopia em Cambalacho. É o caso da personagem Thiago (Edson Celulari). Preso ao passado turbulento com seu pai, Antero (Mário Lago), é na dança que ele se sente livre e consegue criar um mundo próprio. São nesses momentos que o vemos dançando ao lado de Ana Machadão (Débora Bloch), um de seus interesses amorosos na novela. Naquele momento, Ana não é mais uma mecânica que se veste com roupas masculinas, mas sim a deusa do bailarino, arrumada e asseada. O casal executa alguns passos junto a outros bailarinos, e naquela utopia não existe mais nada. É interessante essa dinâmica, pois, no mundo real, eles passam a novela inteira brigando. Quando dançam, é como se houvesse um acordo tácito entre ambos, como se aquele mundo dos musicais não permitisse espaço para as altercações da vida real.

Porém, como toda telenovela que se preze, é claro que existe um amor do passado envolvido na história de Thiago e Ana Machadão. Trata-se de Daniela (Louise Cardoso), recém-chegada da França, a filha perdida de Naná. Ela representa a tentação para Thiago, um amor perigoso, que teve suas consequências quando os dois se conheceram em Paris. Em um determinado ponto da novela, Daniela também começa a povoar os números musicais de Thiago. Aqui, é evidente a inspiração de Sílvio de Abreu no musical A Roda da Fortuna, com Cyd Charisse e Fred Astaire. Nesse filme, existe um número chamado The Girl Hunt Ballet, no qual Charisse e Astaire encenam um filme noir coreografado. É claro que Cyd interpreta a femme fatale, e ela a todo momento é motivo de fascínio e medo da parte de Fred. Em determinada cena do número, que ficou muito famoso por ter sido usado por Michael Jackson em Smooth Criminal, Cyd dança para seduzir o parceiro. Seus movimentos são lascívios e ao mesmo tempo fortes e suaves, trata-se uma cena muito potente nos musicais por conta de sua ousadia. Em Cambalacho, Daniela exerce a função de Cyd Charisse nos números musicais em que participa. Thiago tenta escapar dela, e ao mesmo tempo começa a enxergar Ana pelo espelho. Ele alterna as duas visões, e de repente as duas aparecem juntas para disputá-lo. A todo momento, pelos números musicais, seremos lembrados do perigo que Daniela representa. 

Os musicais também aparecem em outro momento bem interessante da novela, quando Thiago está montando a estreia de seu musical no Brasil. Ele chama a bailarina Maria Vargas (Rosemary) para fazer parte dele. É como se Cambalacho tivesse duas frentes: em uma temos a utopia dos musicais, e na outra um retrato dos bastidores do show business. Mais uma vez, Cambalacho parece beber de A Roda da Fortuna, pois o filme também fala sobre o mundo do teatro musical. A incerteza de um financiamento, os percalços de ser ator são elementos que atravessaram não apenas A Roda da Fortuna, mas outros filmes clássicos, como A Malvada. Quanto à Maria Vargas, a estrela do musical, parece haver uma inspiração muito forte em outra personagem dos musicais, a atriz do cinema mudo Lina Lamont (Jean Hagen), de Cantando na Chuva. Maria e Lina querem ter suas ordens cumpridas e não admitem que questionem seu talento. Na verdade, Maria é o retrato clássico do ego gigantesco de uma atriz, que não está apenas restrito aos musicais, mas que ganha características exageradas, gerando situações absurdas engraçadas, no musical.

A comédia pastelão dos anos 20 e 30 


A comédia clássica do cinema, representada por nomes como Buster KeatonLaurel e Hardy e Harold Lloyd, também está muito presente em Cambalacho. Assim como os momentos musicais, ela está ali para suavizar os momentos difíceis da história. O pastelão, também conhecido como slapstick em inglês, está a todo tempo presente nas trapalhadas de Gegê e Naná. Vale destacar que o pastelão ainda é um recurso muito utilizado nas telenovelas hoje em dia, principalmente nas tramas de época escritas por Walcyr Carrasco, como O Cravo e a Rosa e Êta Mundo Bom.

O slapstick surge nos anos 1920, durante o cinema mudo. Mesmo hoje, mais de cem anos após o lançamento de clássicos como A Corrida do Ouro, percebemos que o humor de torta na cara, pessoas caindo e brigas exageradas ainda é uma fonte de riso inesgotável. Por ser um humor tão simples, mas também muito engraçado, ele funciona em Cambalacho. O pastelão é usado com outros personagens, como Thiago e Ana Machadão, mas ele ganha contornos especiais em Naná e Gegê. Isso porque é impossível não se lembrar da dupla Laurel e Hardy, astros do pastelão durante os anos 30, porque assim como eles, os protagonistas de Cambalacho possuem diferenças gritantes entre si, o que aumenta ainda mais a graça do que eles fazem. Um exemplo de pastelão acontece logo na primeira cena da novela, quando Gegê e Naná aplicam um cambalacho fingindo serem um padre e uma freira respectivamente. Ao serem descobertos, eles fogem de carro, e o caráter absurdo da situação é evidenciado pela trilha sonora, uma espécie de solo de banjo, que toca toda vez que os dois se metem em confusões.

A comédia pastelão é muito baseada em tipos e situações. Em Harold Lloyd, por exemplo, ficou famoso por sua persona na tela: em seu rosto grandes óculos redondos, no corpo roupas largas. A ideia de Lloyd era opor-se à elegância de Charles Chaplin. Em Cambalacho, Naná e Gegê criam personas o tempo inteiro. Uma delas é a Madame Narda, uma vidente inventada por Naná, para que eles possam arrancar dinheiro para sustentar Daniela no exterior. As sessões em que Madame Narda incorpora entidades do além são o suco das situações absurdas do pastelão, com direito a Gegê fazendo a voz do fantasma que se comunica com Madame Narda. A propósito, Fernanda Montenegro revisitou a persona de Madame Narda em um ensaio fotográfico, anos depois.

Apesar de não pertencerem ao cinema, Os Três Patetas também aparecem em Cambalacho. A comédia física desses três irmãos, que começaram durante os anos 20 e atuaram até os anos 70, é muito presente na trama de Sílvio de Abreu. Os Três Patetas tinham curtas-metragens de 20 minutos, que geralmente passavam nos intervalos entre as matinês dos filmes, e divertiam muito os estadunidenses na época da Grande Depressão. Torta na cara, dedo no olho, chutes e pontapés faziam parte do humor deles. Em Cambalacho, uma das cenas mais evidentes de comédia física acontece quando Lili Bolero (Consuelo Leandro) atira ovos na cantora Ângela Maria durante uma festa de rua. Ângela é convidada para cantar na inauguração do empreendimento de Naná, e da plateia temos Lili, que afirma ter sido passada para trás pela Sapoti, que começa a gritar e a atirar ovos na cantora. É um momento de muitos gritos e confusões, e o humor fica por conta dos berros de Lili ao finalmente se vingar daquela que furou seu olho nos tempos da Rádio Nacional.

Lili Bolero: a mãe do melodrama


Uma das personagens que é por si só uma referência aos clássicos é Lili Bolero, interpretada por Consuelo Leandro. Quando a novela começa, conhecemos sua história de sofrimento. Ela é uma cantora de rádio fracassada que, segundo reza a lenda na história, foi passada para trás por Ângela Maria, quando as duas cantavam na Rádio Nacional, durante os anos 1950. Lili sonha em gravar um disco e voltar às paradas de sucesso como cantora de bolero. Porém, ela enfrentará um caminho digno de um melodrama latinoamericano em busca da realização desse sonho.

Uma de suas primeiras cenas no começo da novela é ela cantando em uma churrascaria, como garota-telegrama. É engraçado e ao mesmo humilhante vê-la sujeitando-se a uma situações daquelas. A interpretação de Consuelo Leandro consegue nos levar ao riso e à tristeza em questão de segundos, parecer caricata e emocionante ao mesmo tempo. Isso é muito importante para que possamos construir uma relação de empatia com a personagem.

Lili Bolero é muito parecida fisicamente, diga-se de passagem, com Ângela Maria, outra diva do melodrama, mas cantado. Isso também é importante para que sua hisória pareça crível para nós. Voltando aos clássicos do cinema, a cantora fracassada tem uma história digna de um grande filme latinoamericano de melodrama dos anos 30 ou 40. Nos ateremos aqui à sua relação com sua filha, Tina (Regina Casé), um dos diálogos mais visíveis de Cambalacho com o melodrama.

Na cultura ocidental, a mãe é uma figura mítica, que remete à Virgem Maria. Uma imagem de sacríficio e pureza. A mãe é uma figura que não se discute, e não é à toa que ela ainda é usada como mote de telenovelas até hoje, embora repaginada, como em Amor de Mãe, de Manuela Dias. Em Cambalacho, é o sacrifício de Lili Bolero pela filha, abrindo mão da própria carreira, que a aproxima dessa figura tão explorada nos melodramas latinoamericanos. De acordo com Silvia Oroz em O Cinema de Lágrimas da América Latina:

"O melodrama cinematográfico latinoamericano foi um discurso sobre a mãe e manteve uma sintonia total com os espectadores. A mãe da tela sintetizava todos os valores que. acultura ocidental inventou para ela. Liberdad Lamarque, Sara Garcia, Rita Montaner pertencem à magnífica galera latinoamericana do protótipo, definidas pela "bondade" e pela capacidade mística de se sacrificarem por seus filhos."

Em um determinado da novela, quando o pai de Tina reaparece, o trambiqueiro Armandinho da Cruz (Oswaldo Loureiro), ele decide tornar a filha famosa. Vendo o potencial que a garota tem, seu jeito extravagante de se vestir, evocando Tina Turner, Armandinho decide empresariar a filha. No entanto, havia um problema: Tina não tinha uma voz bonita. É aí que Lili entra em cena, é ela quem gravará a música de trabalho da filha. O único trabalho de Tina é dublar a mãe. Dessa forma, Lili joga fora sua carreira de cantora, que parecia estar decolando naquele momento, uma vez que ela havia gravado o tão sonhado disco de retorno. 

Pelo sucesso da vida, com a ideia de que está ultrapassada, ela embarca na ideia de Armandinho. A infelicidade dela é notável, e percebemos o quanto essa mãe ama a filha, ainda que a contragosto, a ponto de sacrificar o sonho de uma vida por ela. A mãe que faz tudo pelos filhos, e suporta até o desprezo deles, aparece de uma forma bastante parecida no filme Puerta Cerrada, de 1939, com Liberdad Lamarque. Na última cena, a mãe, que renuncia ao filho para que ele tenha uma vida melhor, o observa de longe. Ela desmaia ao vê-lo e logo em seguida morre nos braços dele. Inclusive, essa história encontra ecos em Stella Dallas: Mãe Redentora, de King Vidor, um melodrama estadunidense dos anos 1930.

Além da própria história sofrida de vida, Lili também costuma citar as divas do melodrama em suas falas, sempre que compara sua história a delas. Uma das histórias citadas por ela também serviu de inspiração para Cambalacho: Imitação da Vida. Esse é mais um filme de sacrifício de mães pelas filhas, embora com uma pegada bastante diferente. É interessante o recurso de ver uma personagem que bebe tanto do melodrama citando os melodramas, é como se ela também vivesse nessa utopia. Lili espera que um príncipe encantado, representado por Armandinho da Cruz, venha salvá-la da miséria e de um amor não correspondido pelo cunhado, Gegê. Os devaneios em que Lili Bolero cita o cinema nos mostra no quanto Sílvio de Abreu tinha uma visão muito escapista do cinema, de que ele poderia nos embriagar e nos fazer esquecer da realidade dura que a vida real nos impõe.

A narrativa policial em Cambalacho 


Também há espaço para o filme policial, aqui representado pela morte do milionário Antero. Ao longo da novela, acompanhamos Andréia e suas maldades. Nos primeiros capítulos, ela se casa por interesse com ele, e aqui é impossível não tecer relações com a femme fatale dos filmes noir. Andréia é a mulher fatal, cujo rastro de destruição vai deixando na vida dos personagens com quem se relaciona ao longo dos 174 capítulos.

Depois de se casar com Antero e ver que ele não cederá aos seus encantos como ela imaginava, Andreia começa a enlouquecer. Para se ver livre do marido, decide envenená-lo durante uma viagem de iate. Essa é com certeza uma das cenas mais tensas de toda a novela, pois a vemos colocando o veneno no copo dele, e logo depois ele assume o controle de uma lancha, que explode, já que ele perde a visão por conta do veneno. A partir daí, começa a jornada de viúva apaixonada da assassina. 

É impossível não pensar em Pacto de Sangue, filme noir clássico de Billy Wilder, quando falamos sobre Andreia. Toda sua postura e frieza ao planejar o assassinato do marido evocam muito a impiedosa Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck). Como Andreia, essa personagem também planeja friamente o assassinato do marido, para ficar com o dinheiro da indenização do seguro dele. É muito interessante perceber que a motivação de ambas as personagens está ligada a uma infelicidade de serem quem são, de não poderem usufruir do dinheiro dos maridos como bem queriam e uma certa falta de liberdade. Andreia se casara com Antero acreditando que estava fazendo um bom negócio. A propósito, um negócio fechado em parceria com seu irmão, Wanderley (Roberto Bonfim), que praticamente vende à irmã a Antero.

Ao longo da novela, Andreia conhece Athos (Eduardo Galvão), um motoqueiro ambicioso, e que trabalhava para Antero na época do acidente/assassinato. Ele é o único que sabe a verdade sobre a morte de Antero, e por isso Andreia decide seduzi-lo, assim ele ficará quieto. Athos (Flávio Galvão) é um dos melhores exemplos do estereótipo masculino que vemos nos filmes noir. Ao mesmo tempo ambicioso e apaixonado pela "perigosa", como Andreia é chamada na novela, ele não se importa em estar à beira do abismo, prestes a despencar de lá. Athos gosta do perigo, mas principalmente da sensação de controle sobre Andreia.

Nesse sentido, Athos se parece muito com Walter Neff (Fred MacMurray), o outro protagonista de Pacto de Sangue. Walter, um segurador, vê na oportunidade de ajudar Phyllis a matar o marido uma forma de ganhar muito dinheiro de forma fácil - e ainda ficar com a garota. Ao fim do filme, ele terá sua punição, assim como Athos o terá em Cambalacho. Porém, até isso acontecer, o caminho dessas personagens estará repleto de reveses e quase descobertas. 

Athos seduz a irmã de Andreia, Amanda (Suzana Vieira), para ajudar a "perigosa". Em nenhum momento, Athos parece ter consciência da seriedade de seus atos. A cenas em que isso acontece são na casa dele, mais ou menos o "solo sagrado", porque abriga três pilares da moralidade de Cambalacho: os dois irmãos de Athos, Aramis (Paulo Cesar Grande) e Porthos (Maurício Mattar) e o tio Biju (Emiliano Queiroz). É nesses momentos que Athos cai na real, mas não dura muito tempo. Ele está disposto a ir até o fim para ficar rico.

Mais uma vez, Sílvio de Abreu insere essa dinâmica policial em uma novela, e ela funciona como contraponto à comédia. Além das maldades de Andréia, temos o grande mistério: quem é a filha desaparecida de Antero? Ao longo da novela, descobrimos que ele deixou tudo planejado, como se soubesse que morreria.

Como em A Próxima Vítima, Sílvio de Abreu insere um personagem para ser os olhos do espectador na investigação da filha de Antero: a detetive belga Dominique Montmartre (Jacqueline Lawrence). Ela entra na novela como governanta, e só descobrimos sua verdadeira identidade muito tempo depois. Dominique é esperta e inteligente, uma inspiração direta em Hercule Poirot, que chega a ser citado na novela. A detetive vai nos atualizando sobre as buscas de sua agência, que tenta encontrar a filha desaparecida de Antero. Inclusive, em uma cena hilária, Dominique revela que diz às pessoas que é francesa, pois se disser que é belga, logo a associarão à figura do famoso detetive.

Os ecos de Cambalacho 


Cambalacho contou com mais de 170 capítulos, mas é uma novela tão dinâmica que quase não sentimos o tempo passar. Ao misturar humor, crime e melodrama, Sílvio de Abreu entregou uma novela que conseguiu ultrapassar Selva de Pedra, novela do horário nobre em 1986. De acordo com o site Notícias da TV, Cambalacho, no mês do maio, liderou os aparelhos de TV ligados no Rio de Janeiro. Eram 91, 1% de telinhas quadradas acompanhando as peripécias de Naná e Gegê.

Ismael Fernandes, em seu livro Memória da Telenovela Brasileira, um dos grandes dicionários do gênero, define a novela como:

O grande sucesso de 1986. Mais uma mostra do espírito inventivo de Sílvio de Abreu ao transformar suas tramas folhetinescas e numa deliciosa e divertida comédia. Muitas ideias excelentes, perfeitas integração do texto com o elenco e direção (Jorge Fernando).


Naná (Fernanda Montenegro)

Os elementos de Cambalacho seriam reaproveitados em A Próxima Vítima, novela do mesmo autor, de 1995. Fica evidente o quanto Sílvio de Abreu, ao recriar os clássicos, conseguiu criar seus próprios clássicos da teledramaturgia. Não há uma novela dele em que não haja uma referência ao cinema clássico. De Laurinha Figueiroa, de Rainha da Sucata, inspirada em Blanche DuBois de Uma Rua Chamada Pecado, até Filomena Ferro, inspirada em Don Corleone, Sílvio de Abreu nos proporciona um passeio por referências incríveis.

Em 1986, o Brasil parou para assistir a essa mistura incrível, e certeira, de humor, suspense e musical. Com reprises no Vale a Pena Ver de Novo e no Canal Viva, Cambalacho mostra que segue como um clássico daqueles anos 80, permeados pela inflação galopante, a troca de moedas e a redemocratização. Se você deseja entender como eram os anos 80 pelas mãos de um grande autor, assista à Cambalacho. Você não vai se arrepender. 


Arte em destaque: Sofia Lungui

Comentários

  1. Nunca vi Cambalacho, apesar da minha mãe falar muito bem, mas fiquei com mais vontade depois desse texto. Muito bom, muito bem escrito e com curiosidades muito interessantes. Do Silvio de Abreu eu queria bastante ver "A Próxima Vítima", que é muito elogiada, mas não tive a chance de ver, assim como a maioria das obras dele. As poucas que eu vi acho medianas.
    PS: Que texto bem escrito. Quem dera eu conseguisse escrever as coisas tão certinhas assim, com pontuação no lugar certo e etc. Fico todo confuso nisso. Parabéns pelo texto

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