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O Estigma de Satanás, male gaze e as origens do folk horror

Existe algo no folk horror que mexe com a imaginação das pessoas. No geral, o cinema de horror é político e trata de medos sociais. Quando olhamos para suas subdivisões, encontramos diversos tipos de medos e abordagens. No folk horror, esse medo está na perturbação da inocência e na aniquilação da comunidade. Também se faz presente o medo do Outro, figura tão associada ao gótico, mas que pode ser vista no subgênero. O Outro, que vem de longe, o estrangeiro, o estranho, aquele que não se conforma às regras sociais, é esse que causará o horror dentro daquele cenário. 

As origens do folk horror

Em O Estigma de Satanás (The Blood on Satan's Claw no original) podemos ver tudo isso de uma só vez. Os tropos estão todos ali, cada qual fazendo sua parte para uma trama que nos assusta não pelo demoníaco, como o título pode sugerir, mas sim pela maldade das pessoas quando lhes é dada uma oportunidade. Se o rural parece ingênuo e bonito é porque não o olhamos em toda a sua complexidade. Sob um olhar acostumado aos horrores - sejam eles humanos ou sobrenaturais -, a atmosfera transforma-se de acolhedora para aterrorizante justamente por sua beleza atroz. Como disse Robert Wynne-Simmons, roteirista de The Blood on Satan's Claw

"O tema central de todo o filme é a eliminação das antigas religiões. Não pelo cristianismo, mas pela crença ateísta de que todas as coisas devem ser bloqueadas de se instalarem na mente. Portanto, o juiz representa um iluminismo obstinado, que diz: ‘Não deixem essas coisas esconderem em cantos escuros. Tragam-nas para a luz do dia e eliminem-nas." 

O filme faz parte da chamada trilogia profana, que conta com O Caçador de Bruxas (Witchfinder General) e o aclamado O Homem de Palha (The Wicker Man). Todavia, O Estigma de Satanás não é tão famoso quanto seus irmãos. Embora seja necessário pontuar que o termo folk horror se difundiu de tempos para cá, uma das primeiras vezes em que foi usado aconteceu justamente no jornal Kine Weekly em uma matéria a respeito do filme, em 1970. Em entrevista para a Fangoria, Piers Haggard, diretor de O Estigma de Satanás, disse que o filme tratava-se justamente de um folk horrorComo bem observou Howard David Ingham, autor de We don't go back: a watcher's guide to folk horror, o longa é o único filme anterior a 2008 que foi deliberadamente pensado para ser folk horror

E basta isolarmos esse fato para fazer desse filme um clássico. Todavia, ele se perde em alguns momentos e possui uma certa "lição de moral" conservadora e misógina, o que não ajuda muito o público a simpatizar com a narrativa. A cena do estupro tampouco ajuda. A sexualidade é condenada, sendo explorada mais através do abuso do que de práticas consensuais - existe uma cena de estupro gratuita e a demonização de adolescentes que claramente representavam os hippies dos anos 1970 é feita de forma escancarada. Como o próprio roteirista afirmou, o filme não é sobre uma religião vencendo a outra (cristianismo vs paganismo), mas sobre o homem iluminista daquele século XVII vencendo o mal através da razão, sem deixar-se impressionar por contos folclóricos. Mas a que custo? 

Misoginia e male gaze em O Estigma de Satanás 

Embora os moradores daquele vilarejo acreditem que o diabo está por trás de tudo, é possível ler o filme como as más ações de adolescentes que tiveram finalmente uma oportunidade de sair da linha. Liderados por Angel Blake (Linda Hayden), que torna-se a cabeça do culto satânico, eles estupram e matam pessoas da comunidade, em especial outros jovens que não querem juntar-se a eles, tudo em nome da pele de Satã, que nasce na pessoa escolhida para o sacrifício que propiciará a materialização do mesmo. 

Contudo, ainda que se tenha criado um frenesi na comunidade após a suposta pata de Satã encontrada na plantação, uma outra leitura possível é a libertação de costumes rígidos aceita por jovens, que viram em sua figura imagética do diabo uma possibilidade de fuga. Todos eles frequentam a igreja num culto de domingo pela manhã, uma espécie de aula em que o padre é duro e repressor para com todos, especialmente para com as jovens meninas presentes. Angel já era popular então; disso para sentir-se livre sob o jugo libertador de Satanás e tornar-se líder de um novo culto, é um passo. 

O filme se passa em torno de 1690 e possui diversas falhas - se não históricas, certamente ofensivas. Angel Blake, por exemplo, é mostrada como a mulher que manipula os homens com uma falsa acusação de estupro, levando à prisão do padre local, acusado em uma cena que existe por dois motivos: para mostrar como Angel é má e dissimulada e para que Linda Hayden, sua intérprete, fizesse um nu frontal ao oferecer-se ao padre, que a rejeita. É preciso lembrar que Linda Hayden tinha apenas dezessete anos na época, ou seja, além do olhar masculino (male gaze), temos também uma menor de idade em cena de nudez completa. É no mínimo desconfortável. 

Pouco depois, há uma cena incrivelmente longa de estupro, na qual uma jovem do vilarejo é atraída pelos seguidores de Angel Blake até uma clareira, onde é sexualmente abusada e morta enquanto outros membros do culto se masturbam. É perturbadora a forma como o corpo feminino continua sendo violado sob um olhar masculino repetidamente durante o filme inteiro. Até mesmo cenas de suposto empoderamento (como a de Angel com o padre) são feitas de forma a mostrar a mulher como encarnação diabólica, corpo satânico existente para a luxúria. É, de certa forma, uma releitura da figura da bruxa - se ela não pode corrompê-los, os mata, entregando-os a seus rituais que envolvem práticas sexuais não consensuais. 

Bruxaria, cristianismo e iluminismo: o mal que habita cada crença 

Ao olharmos para o século XVII na Inglaterra, é interessante lembrarmos de algumas coisas. Vamos começar pela maneira com que a figura satânica era vista. Como o próprio juiz afirma diversas vezes durante o filme, a crença no satanismo e na bruxaria já havia sido arraigada. Mas isso não fez com que todas as pessoas, especialmente as do campo, parassem de acreditar e culpar forças diabólicas quando algo dava errado. Todavia, a figura de Satanás sempre foi ambígua: se por um lado é algo a se temer e odiar, por outro ela é sedutora, pois é oposta ao cristianismo e leva consigo a ideia de liberdade. Isso relacionado à maneira como as mulheres eram vistas na época nos permite entender melhor por que Angel - e tantas outras jovens do vilarejo - seguem alegremente os mandamentos de Satã, ainda que tenham que sacrificar uma ou outra pessoa - seus amigos - para tal. É um preço pequeno a pagar em nome da liberdade - religiosa, social e sexual. 

O Estigma de Satanás é um filme interessante porque não nos dá respostas fáceis. Sim, existe uma histeria de satanismo num vilarejo no interior da Inglaterra do século XVII. Mortes acontecem, cenas terríveis de estupro também. O comportamento de todos está alterado e eufórico. Mas não é como se fôssemos levados a torcer pelo juiz, o suposto "herói" da narrativa, ou mesmo pelo padre ou pelo cristianismo em si. Seja a religião cristã ou os preceitos do iluminismo, não parece haver algo bom em que se agarrar contra o caso do satanismo instaurado na comunidade. 

No final, o que importa é que todos estão mergulhados em suas crenças. E isso os conduz de tal forma que não há uma luta do bem contra o mal, mas de uma crença contra a outra - ambas problemáticas, ambas enclausuradoras em sua própria maneira. Talvez seja esse o maior trunfo do filme: mostrar o mal que as pessoas causam a si mesmas e aos outros, ao lado de Deus, do Diabo ou da Lei. 


Referências 




Arte em destaque: Mia Sodré 
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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