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Um clássico do terror gótico: O que terá acontecido a Baby Jane?


Em outubro de 1962 chegou aos cinemas O que terá acontecido a Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane? no original), que estreou no dia de Halloween. O filme, além de ter dado origem a um novo subgênero no terror, o hagsexploitation, também representou o retorno de duas grandes estrelas às telas de cinema, Bette Davis e Joan Crawford. Considerado um clássico do terror gótico, é também aquele famoso caso de quando a obra cinematográfica se sobressai mais que a de origem literária. 

O autor do livro título é o romancista e roteirista estadunidense Henry Farrell, ele que na época, além de estar passando por uma crise financeira, havia acabado de descobrir que sua esposa estava com câncer. Farrell decidiu que precisava escrever um livro comercial o suficiente para ser adaptado para o cinema. Com êxito, seu livro, assim que publicado em 1960, teve seus direitos comprados para a Broadway e mais tarde para os cinemas. Enfim sua esposa conseguiu se curar da doença e ele lançou mais obras que também receberam adaptações para a telona.

O livro

A trama do livro tem início no ano de 1908, período em que o cinema e a televisão não estavam em vigor, e o principal entretenimento da população estadunidense era o Teatro Vaudeville, gênero teatral de origem francesa que fez muito sucesso nos EUA de 1880 até começo da década de 1930. Esse tipo de entretenimento trazia apresentações de diversos tipos, como cantores, dançarinos, artistas circenses, animais silvestres sendo adestrados, enfim, uma variedade de números.  O escritor buscou inspiração em crianças, em especial meninas que se apresentavam nesses espetáculos. Era muito comum garotinhas trajadas como mini-adultas cantarem e dançarem encantando a todos; elas inclusive recebiam o apelido "Baby" antes de seus nomes. Um nome muito lembrado nesse meio foi o da atriz "Baby" Rose Marie, que se tornou uma estrela mirim muito notável na época e conseguiu manter sua carreira de atriz até o seu falecimento, em 2017. 

Voltando à trama do livro, em uma dessas apresentações conhecemos Baby Jane Hudson, uma garotinha que tem entre seus oito ou dez anos de idade. Ela é uma estrela mirim que canta e dança nesses espetáculos para um público gigantesco. Descobrimos então que a menina é extremamente famosa, conhecida em todos os lugares por onde passa. O talento de Baby Jane é tamanho que o público chega a desconfiar se ela realmente é uma criança.

No primeiro contato que temos com a personagem, notamos de cara o quanto ela é mimada e um pouco manipuladora. A menina tem consciência de que sustenta a família (ela ganhava muito dinheiro com suas performances) e faz questão de jogar isso na cara dos pais apenas para conseguir um sorvete. E quando consegue o que desejava, muda totalmente de semblante, voltando a ser uma doce e adorável menina.  

Bette Davis como Baby Jane Hudson na adaptação de O que terá acontecido a Baby Jane?

O livro dá um salto temporal para o ano de 1959, e a partir disso somos apresentados a mais uma personagem, Blanche Hudson, irmã mais nova de Baby Jane. Ela se tornou uma atriz de prestigio da Era de Ouro de Hollywood, em especial na década de 1930, enquanto Baby Jane caiu no esquecimento e não conseguiu conquistar o mesmo que a irmã quando adulta. Mas apesar do sucesso, Blanche teve sua carreira interrompida após um terrível acidente que a deixou paraplégica.  Através de boatos inseridos o enredo, é dito que a possível causadora do acidente seria sua própria irmã, Jane Hudson, que atropelou a atriz enquanto ela abria o portão de sua casa. 

Mais de vinte anos depois do ocorrido, as irmãs Hudson moram juntas em uma antiga mansão em Hollywood. As duas mulheres com pouco mais de cinquenta anos vivem reclusas naquela casa, lidando com traumas e lembranças do passado. Mas a relação que as irmãs mantêm é totalmente abusiva, repleta de sentimentos como ódio, inveja e medo.

"Ela pode ser sua própria irmã, querida, sua própria carne e seu sangue, mas você tem de encarar que, no fundo, ela a odeia com veneno, e nada lhe dá mais prazer do que ver você ser castigada."

A diferença de personalidade entre as duas é explicita. Enquanto Blanche tem uma imagem mais calma, bondosa e conformista, Jane é o total oposto; além de ter desenvolvido problemas com bebidas, ela também é uma mulher emocionalmente instável. Blanche sente medo da irmã e sempre se culpa pela condição em que as duas se encontram. Jane a despreza, é perceptível o quanto ela odeia ter que cuidar da irmã que está na cadeira de rodas mesmo que ela ainda consiga exercer um poder sobre a irmã, uma pessoa com deficiência motora. 

A rivalidade entre elas é tanta que, desde a infância, isso permeava a vida das duas, em especial imposta pelo pai, que deixava claro o quanto a Jane era talentosa e sua irmã mais nova nunca conseguiria tal feito. Na vida adulta, os papéis se invertem. A irmã mais nova, uma mulher de uma beleza arrebatadora, conquista o tão desejado estrelato, ao passo que Jane vive à sombra da irmã, principalmente por conta de um acordo no contrato, que fazia com que a cada filme que Blanche fizesse, o estúdio produzisse um para Jane também. Por mais louvável por possa ter sido essa atitude, não é essa a comoção que ela causa.

Por meio de memórias como essas conhecemos ainda mais sobre a vida das duas, os conflitos vividos entre elas e como o ódio e o ressentimento podem transformar uma relação entre duas irmãs em um pesadelo. A saúde mental dessas mulheres vai se deteriorando cada vez mais. As duas que outrora foram grandes estrelas se tornaram mulheres velhas e esquecidas pela sociedade. Mas, graças a reprises dos filmes antigos que Blanche fez, a atriz volta a ser pauta na boca do público, isso transforma ainda mais a relação das duas, que já era problemática. 

Acompanhamos como a sanidade, em especial de Jane, é destruída a cada página. A partir disso, ela, que detém todo o poder sobre a irmã, começa a privá-la de tudo e maltratá-la, usando isso como uma forma de se vingar.  A mansão em que elas moram, assim como nós, começa a ser espectadora de atos horríveis, deixando-nos ainda mais aflitos e com medo de tudo que acontece no decorrer da história.  

"Sua loucura havia começado com seu medo de perder Blanche, de perder, finalmente, o perdão de Blanche".


O que terá acontecido a Baby Jane? nos coloca em uma atmosfera completamente claustrofóbica e aterrorizante. A cada capitulo somos surpreendidos com memórias reveladoras e atitudes que não imaginávamos, principalmente da personagem que considero protagonista, Jane Hudson. Desde o inicio, ela carrega a característica de problemática, maluca e de uma possível vilã. Mais do que isso, ela se torna também vitima do seu passado, ao ponto que, quando isso bate em sua porta, ela não suporta mais.  

É uma personagem cheia de camadas, que desperta no leitor os sentimentos de pena e ódio na mesma medida. Apesar de Blanche aparecer menos que Jane, ela também tem um papel fundamental na história. A personagem esconde um segredo surpreendente, que é revelado próximo ao final do livro, e que, pelos menos para mim, mudou completamente a ideia que eu tinha da personagem. 

Adaptação para o cinema e o teatro 

A obra cinematográfica consegue ser muito fiel ao livro. De uma qualidade extraordinária, arrisco dizer que é bem superior ao livro. Toda atmosfera que ele carrega e a qualidade do elenco principal, composto por Bette e Joan, é impressionante. O filme foi indicado ao Oscar cinco vezes, ganhando apenas o de Melhor Figurino, muito injustamente, porque Bette Davis deu uma aula de atuação com sua performance e merecia levar a estatueta. 

Graças a esse filme nasceu um subgênero do terror, o hagsploitation, que trazia atrizes mais velhas, outrora grandes estrelas da Era de Ouro, fazendo papéis de mulheres mais velhas que eram loucas e doentias. Aqui no Querido Clássico, temos um texto que aborda esse tema e a obra cinematográfica - vale a pena conferir.

Além da versão hollywoodiana, o livro também ganhou uma adaptação brasileira para os palcos, com nomes de peso, como Nicette Bruno (Blanche)  e Eva Wilma (Jane). Quando a peça estreou, no Rio de Janeiro, o papel de Blanche ficou para Nathalia Timberg. O espetáculo ficou em cartaz entre 2016 e 2017 e foi sucesso de critica e público.  

Henry Farrell nos entrega um livro que deu origem a um clássico fantástico, mas que não tem a mesma qualidade, prestigio e potência que o filme, mas consegue entregar o que promete. A história é pequena e a leitura flui com facilidade. O escritor, por meio de suas descrições, consegue conectar ainda mais o leitor à história. O final pode desagradar a muitos, mas eu o acho sensacional por conseguir nos deixar ainda mais perplexos e em conflito com tudo o que aconteceu desde a primeira página. 

O livro foi publicado aqui no Brasil unicamente pela editora Darkside, que fez um trabalho impecável no design da edição. É uma edição linda que consegue esconder a história macabra que o livro entrega.



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Maria Fontenele
Piauiense, nascida em 2000, se arrisca a escrever desde pequena. Apaixonada por reprises de filmes antigos, sonha em viver num musical dos anos 60, mesmo sem saber cantar. Chora ouvindo Scorpions, e tem uma lista tão grande de livros que jura que vai ler tudo antes de morrer.

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