No último domingo, Olivia De Havilland, uma das maiores atrizes da Old Hollywood, nos deixou. Ela ficou mais conhecida por seu papel como Melanie, em E o Vento Levou, mas também foi a responsável por uma lei que deu melhores condições de trabalho aos artistas. Numa época em que processar o patrão era muito mais perigoso do que agora, ela se arriscou para alçar novos voos em sua carreira.
Em relação à carreira cinematográfica, De Havilland foi uma atriz versátil. Sua partida suscita diversas questões de memória do cinema, e, portanto, nada melhor que homenageá-la falando sobre um filme pouco conhecido, mas que é um clássico do horror e Grande Dame Guignol: A Dama Enjaulada (Lady in a cage).
Lançado em 1964, A Dama Enjaulada segue uma fórmula bastante conhecida naquela época: atriz mais velha, uma estrela da Old Hollywood, colocada em uma situação extrema. Tudo começou em 1962, quando O Que Terá Acontecido a Baby Jane? chocou plateias do mundo ao mostrar o lado mais grotesco e caricato daquelas mulheres, que outrora foram símbolos sexuais. Agora, para a audiência, não passavam de rostos envelhecidos.
O Grande Dame Guignol, de acordo com Peter Shelley, é um cinema da decrepitude. Nele, o espectador é confrontado com as rugas, o suor, o pânico e os gritos daqueles antigos símbolos de beleza. Existia um certo sadismo nas plateias que iam assistir Joan Crawford decapitando o marido e a amante ou Barbara Stanwyck sofrendo nas mãos do marido. Mas de onde surgiu esse movimento, afinal? E o que ele é?
Na época em que esses filmes foram lançados, não se tinha ideia de que se estava criando um movimento cinematográfico. Foi o historiador Charles Busch quem criou o termo "Grande Dame Guignol". O Grand Guignol foi um grupo de teatro do começo do século XX, que encenava espetáculos baseados em contos de Edgar Allan Poe. A experiência era tão visceral e, de certa forma, assustadora, que as pessoas chegavam a desmaiar. Já a denominação "Dame" vem do status dessa palavra, do que ela representa, ou seja, as damas de Hollywood. É o glamour que vem atrelado ao horror.
Os filmes do Grande Dame Guignol foram possíveis por várias razões, mas gostaria de destacar uma bastante importante: o envelhecimento das protagonistas desses filmes. Olivia de Havilland, Bette Davis, Barbara Stanwyck e tantas outras foram descartadas tão logo completaram 40 anos. Todas elas andaram como párias, quase mortas-vivas, durante os anos 1950, conseguindo trabalhos em filmes meia-boca, embora haja uma pequena quota de bons filmes.
O Grande Dame Guignol deu a oportunidade para que elas pudessem voltar a trabalhar e consolidar a carreira em um novo gênero. No entanto, me parece bastante simbólico o tipo de filme no qual elas retornaram: sádicos e apavorantes. É como se a velhice não pudesse ser dissociada do horror, no sentido de que ela é uma maldição para as mulheres. Os filmes dos quais essas atrizes participaram mostram isso, diretamente ou não.
A Dama Enjaulada conta a história de Cornelia Hilyard (Olivia De Havilland), uma senhora que operou o quadril recentemente e que, por isso, precisa usar um elevador dentro de casa. Ela mora com o filho, Malcolm (William Swan) e, quando a história começa, descobrimos que ele pretende ir embora de casa e abandonar a mãe.
Antes de Randall escrever a famigerada carta, dizendo que está abandonando a mãe, percebemos algo de estranho naquela relação. Para começar, eles se chamam de "darling" (querido em português) e, por conta disso, só descobrimos depois de dez minutos que são mãe e filho. O tempo inteiro existe uma insinuação de que a relação é incestuosa. Além disso, também fica clara a influência de Cornelia sobre o filho. Ela pede, mas de um jeito autoritário e, ao mesmo tempo, doce, e ele acata. Quer dizer, até aquele dia.
Outro detalhe bastante interessante dessa relação é que o filho é gay. Em momento algum isso é verbalizado, mas existem os famosos estereótipos de Hollywood: o garoto não tem namorada, vive debaixo da saia da mãe e nutre um interesse por coisas finas e caras. É interessante perceber que, quando o filme se torna uma orgia animal, a homossexualidade é levantada com todas as letras. Como se, naquele momento, pudéssemos escancarar o que estava dentro do armário.
Depois de o filho ir embora, Cornelia fica sozinha em casa e, por conta de uma queda de energia, fica no escuro. Logo, ela não tem como sair do elevador. Ela começa a apertar o botão de emergência, mas ninguém ouve. O barulho atrai Repent (Jeff Corey), um mendigo que vive de pilhagens. Ele entra na casa e percebe que existe uma mina de ouro. Cornelia é rica e sua casa é cheia de objetos refinados e valiosos. Ele decide chamar Sade (Ann Sothern), uma prostituta, para fazer a limpa lá.
No entanto, os planos dos dois são frustrados quando um trio de jovens segue Repent e entra na casa, assumindo a pilhagem. São dois homens, Randall (James Caan) e Essie (Rafael Campos), e uma mulher, Elaine (Jennifer Billingsley). Ao contrário de Repent e Sade, eles não querem apenas roubar a casa. Querem destruir tudo, até que não sobre nada daquela opulência. Assim, começa a "orgia animal" do filme.
A Dama Enjaulada choca por conta de sua violência. É uma violência explícita e sem motivo, de todas as formas. Cornelia simboliza o intocável, o belo, e Randall e seu bando são o feio e o grotesco. Quando esses dois elementos se chocam, existe uma fusão entre beleza e horror. Randall chega mesmo a flertar com Cornelia e, no absurdo daquela situação, parece algo incrivelmente bonito e terrível ao mesmo tempo. Também é o choque entre o novo e velho. Cornelia é uma mulher mais velha, ou seja, seu tempo está acabando, enquanto Randall é jovem e musculoso. Um dos dois precisa morrer para o outro viver. A tensão do filme concentra-se em ambos, porque a maldade maior vem de Randall, que deseja matar Cornelia, mesmo que ela represente algo indefeso. É como se não pudesse haver beleza neste mundo. Um mundo corroído e podre, algo que é deixado à mostra em diversos momentos do filme, começando pelos créditos.
Outra leitura que podemos fazer entre o conflito entre Cornelia e Randall é a do fim de uma era do cinema e o nascimento de outra. Em 1964, o cinema começava a dar seus primeiros passos em direção à Nova Hollywood, com filmes que já não eram mais atrelados a grandes estúdios. Cornelia, e tudo o que ela representa, inclusive a atriz que dá vida a ela, simboliza algo que já estava em desuso. As maneiras de Olivia durante o filme são afetadas, é uma atuação que esbarra no caricato, porque, de certa forma, era o que se fazia na Old Hollywood. O refinamento de Olivia serve muito a Cornelia. Quando Randall arrota para ela, é como se ele estivesse mostrando que aquele é o cinema que estava por vir. Personagens arrotavam, faziam cocô e eram pessoas. Tudo o que a Old Hollywood tentava ocultar por meio da criação de estrelas.
A Dama Enjaulada também quer nos fazer pensar em nosso lado animal e mais cruel. Até que ponto podemos nos considerar racionais? Somos mesmo racionais? O filme parece insistir o tempo todo em mostrar notícias ruins. Cornelia liga seu radinho e ouve tragédias. No começo da trama, também são veiculadas notícias do fim do mundo. É o fim de nós mesmos? Cornelia qualifica seus invasores como "animais", porque não há racionalidade em suas ações. Será mesmo? O ódio daquele a quem sempre foi negado absolutamente tudo não é justificado? São questões que o filme nos apresenta.
Para mim, o ponto que mais chama atenção é o sofrimento feminino. Ao contrário de tantas obras que endeusam o sofrimento das mulheres, esse filme faz o movimento contrário. Há um sadismo ao mostrar Olivia De Havilland tão frágil e exposta, a ponto de vislumbrarmos o suor que desce por seu colo. São imagens que destroem a visão imaculada que tínhamos dela até então. É desconfortável assistir a esse filme, sinto como se o sofrimento e a loucura fossem a única via possível para mulheres que envelhecem.
Por conta da imagem imaculada que as pessoas tinham das estrelas da Old Hollywood, A Dama Enjaulada foi mal recebido na época. A crítica Hedda Hopper chegou a se perguntar por que ninguém ateava fogo ao filme. No entanto, quando olhamos pelo retrovisor, percebemos uma tentativa de falar sobre a violência em todas as suas facetas, além de se perguntar: "Para onde estamos indo?". Hoje, A Dama Enjaulada nos mostra que não estamos muito longe de 1964. Pelo contrário, estamos mais próximos do que imaginamos.
Adorei!
ResponderExcluirAcho super interessante esse gênero por sua ambiguidade: ao mesmo tempo em que as mulheres eram subestimadas essa também foi a única forma que essas atrizes tinham para continuar trabalhando, o que não deixa de ser, de certa forma, um ato de resistência.