Na edição do programa Roda Viva em homenagem aos 70 anos da televisão, o ex-diretor de programação e produção da Rede Globo, Boni, declarou que acredita que a telenovela seja o tipo de produção que ainda segurará a televisão durante muitos anos. Acompanhar personagens que amamos ou odiamos durante seis meses é que nos mantém presos à televisão. Ele não estava errado.
Não é de hoje o caráter extremamente envolvente de uma novela. Em 1965, O Direito de Nascer, radionovela adaptada para a televisão, sacudiu o Brasil. Crianças foram batizadas com o nome do protagonista, Albertinho Limonta. A atriz que interpretava a freira sofredora, Nathalia Timberg, foi canonizada pelo público. Uma festa com 19 mil pessoas foi celebrada no Maracanãzinho para comemorar o fim da novela. Foi um fenômeno de massa em todos os sentidos.
Entender a dinâmica de O Direito de Nascer nos ajuda a perceber os motivos pelos quais a telenovela permanece tão popular, ainda que estejamos na era do streaming. A velha fórmula é sempre atualizada e desperta a questão que atormenta a intelectualidade brasileira: mas, afinal, o que faz de uma novela um produto tão popular? No caso de O Direito de Nascer, a pergunta é ainda mais pertinente, uma vez que a novela contou com duas outras versões: uma em 1978 e a outra em 2001.
É preciso fazer chorar: do folhetim à radionovela
O percurso da telenovela começa no século XIX, mais especificamente na França. Nesse momento, temos o surgimento de uma "cultura de mercado". A oposição entre a cultura de elite (pertencente às classes mais abastadas) e a cultura popular (dos camponeses) se desfaz, o que possibilita o nascimento de "uma cultura popular de massa".
Isso aconteceu por causa da Revolução Industrial que chega à França no Segundo Império. A prensa, a tinta para papel e outras invenções vão sendo aperfeiçoadas, e a criação das linhas férreas possibilita a circulação de periódicos que estavam restritos à capital. De acordo com o livro Telenovela: História e Produção, a literatura de cordel acabou declinando por conta disso.
O folhetim surge em um momento em que a alfabetização cresce muito na França. No Ancien Régime, o nível de alfabetização era de 30% e chega a atingir 90% em 1880. A população camponesa passa a participar da nova ordem social. Percebendo o aumento dos leitores, a tiragem de jornais atinge níveis altíssimos.
É interessante perceber como o folhetim, mesmo antes de tomar a forma como o conhecemos, já tinha um caráter popular. Antes de histórias seriadas, o feuilleton, o rodapé, era usado para os famosos faits divers, as notícias escabrosas que os franceses adoravam ler. Tratava-se de um espaço nada prestigiado do jornal. Em outubro de 1836, o jornal La Presse publicou um romance inédito de Balzac de forma seriada, e assim começou o folhetim. É neste momento que a abordagem dos jornais torna-se empresarial, uma vez que o folhetim vende. Era preciso explorar isso.
No Brasil, o folhetim chegou em 1838, quando o Jornal do Comércio publicou Capitão Paulo, de Alexandre Dumas. A partir dele, diversos folhetins traduzidos começam a aparecer nas páginas dos jornais: O Conde de Monte Cristo, Mistérios de Paris, etc. Um aspecto peculiar sobre o folhetim no Brasil é que, embora se gostasse muito dele, éramos um país que se traduzia muito folhetim, mas que pouco produziu. As condições históricas e sociais do Brasil explicam esse fato. Com níveis muito maiores de analfabetismo, a circulação era bem menor do que na França.
Nossa história salta um século e chegamos aos anos 1930, nos Estados Unidos. É lá que se dá a exploração do rádio como um veículo de comunicação para contar histórias e o advento da soap opera, o modelo que influencia diretamente a criação das telenovelas na América Latina.
Naquela década, o rádio torna-se um meio extremamente popular nos EUA. De acordo com o censo de 1930, 60% das famílias estadunidenses tinham rádio em casa. Por conta do aprofundamento da crise de 1929, também é o entretenimento favorito delas. É aí que entram em cena as agências de propaganda Colgate-Palmolive e Lever Brothers. Pensando nas donas de casa, as maiores consumidoras da família, elas produzem as "óperas de sabão" (soap operas) para vender seus produtos a essas mulheres.
A soap opera, diferentemente das radionovelas e telenovelas latino-americanas, não gira em torno de uma história na qual o leitor vai acompanhando o desfecho semanalmente. Na verdade, não existe um fim. Grey's Anatomy é um grande exemplo de soap opera moderna. A história gira em torno do hospital no qual a doutora Meredith (Ellen Pompeo) trabalha, os personagens mudam, mas o cenário permanece o mesmo. Como toda boa soap opera, Grey's conta com muitas temporadas no ar. Dallas, soap opera que foi ao ar de 1978 até 1991, também é um ótimo exemplo.
Outra diferença crucial entre a soap opera e as radionovelas/telenovelas latino-americanas é o "fazer chorar". Para uma radionovela latino-americana ser boa, ela tinha que fazer o ouvinte se debulhar em lágrimas. A verve latino-americana está muito mais ligada ao melodrama, à oposição entre bem e mal, ricos e pobres. O próprio autor de O Direito de Nascer, Félix Caignet, começou a ter mais sucesso quando deixou os folhetins de detetive e passou a se dedicar às radionovelas água com açúcar.
Para terminar as origens da telenovela, não poderíamos deixar de citar Cuba. Alguns autores, como Reynaldo González, afirmam que esse país é o berço da telenovela. De fato, Cuba já era muito desenvolvida no teatro de rádio. O folhetim também era muito forte por lá. Por conta de interesses de expansão, podemos perceber uma influência dos EUA na radiodifusão cubana, o que também explicaria o fato de Cuba ter sido o primeiro país latino-americano a exportar suas novelas. Não é à toa que Félix Caignet era cubano.
O Direito de Nascer: sucesso em dose dupla
Assim como nos EUA e em Cuba, a primeira radionovela brasileira, A predestinada, é financiada por uma agência de propaganda que administrava a conta da Colgate-Palmolive. Essa seria a tônica até o momento em que a televisão seria capaz de ter dinheiro em caixa para não depender de terceiros.
A radionovela seguia a fórmula melodramática e folhetinesca sobre a qual nos debruçamos anteriormente. Além disso, também havia uma forte inclinação de mercado na criação desses produtos. A ideia era atingir a dona de casa. Alguns estudos defendem que as narrativas das radionovelas eram feministas, já que eram voltadas às mulheres, mas particularmente não concordo.
Dentro da lógica de mercado, a mudança de patrocinadores também mudou bastante os caminhos da radionovela no Brasil. Anteriormente, as telenovelas eram patrocinadas por lojas brasileiras, como a Camisaria Progresso e a Perfumaria Lopes. Quando agências de publicidade que administravam a conta de grandes empresas de fora, como a Gessy-Lever, entram no jogo, elas criam seus próprios departamentos de rádio. Passam a controlar o elenco, a trama, tudo o que diz respeito à radionovela.
É nesse contexto que se insere O Direito de Nascer, um de nossos primeiros fenômenos de massa quando falamos sobre meios de comunicação. Em 1952, na edição 0034 da revista Manchete, já encontramos reportagens sobre Félix Caignet. Naquela época, O Direito de Nascer já havia lhe rendido um milhão de dólares, além de já ter passado pelos seguintes países: Brasil, Porto Rico, Venezuela, Colômbia, Peru, Equador e México.
Caignet, por si só, era um autor fenômeno. Na mesma reportagem para a Manchete, ele nos conta que as igrejas, em Cuba, mudavam o horário do culto para que os fiéis pudessem assistir à missa. Eles não estavam fazendo isso porque não queriam perder sua outra radionovela, As Aventuras de Chan Li Po. Nesse período, Félix também interpretava o detetive Chan Li Po. Fenomenal.
Se o sucesso de que Félix gozava era grande com Chan Li Po, O Direito de Nascer foi tremendamente maior. Na época da novela radiofônica, os peruanos agrediram um ator que interpretava um mau-caráter na radionovela. No Rio de Janeiro, maridos brigavam com as esposas por causa de O Direito de Nascer. Tudo isso em uma época sem redes sociais.
É interessante pensar nos motivos para a radionovela O Direito de Nascer fazer sucesso. O próprio autor nos dá a pista:
"O público latino se interessa pelos temas que levam um fundo moral."
Isso reforça o que dissemos acima sobre a popularidade do melodrama na América Latina. A radionovela, e depois a telenovela, precisava de uma verve moral, na qual mocinhos vencem os vilões, na qual o bem triunfa sobre o mal. É como se isso restaurasse todos os males do mundo, nem que seja por alguns segundos.
Quando O Direito de Nascer é adaptada para a televisão, pela TV Tupi, o fenômeno popular é o mesmo, embora o contexto social e histórico seja bastante diferente. Em 1965, quando a novela entra nos lares dos espectadores, ela já goza de uma popularidade que, uma década antes, não era possível.
A primeira década da televisão foi de tentativa e erro. A programação era ao vivo, não havia departamentos para cuidar de cada setor das produções. Os atores tinham de trazer o próprio figurino de casa, por exemplo. Nessa época, as telenovelas não faziam sucesso, muito porque existia o teleteatro.
O teleteatro era nada mais do que o teatro televisionado. Companhias renomadas de teatro encenavam toda semana um texto diferente, ao vivo. Nathalia Timberg, Fernanda Montenegro, Sérgio Britto e Ítalo Rossi são alguns atores que viveram a experiência de apresentar espetáculos de dramaturgos de renome em emissoras do Rio de Janeiro e São Paulo. O teleteatro era um programa muito elitizado, o cartão de visitas da TV Tupi, por exemplo. Não é à toa que o Grande Teatro Tupi é um dos grandes precursores da linguagem televisiva que conhecemos hoje.
Por conta desse caráter elitizado, não interessava às emissoras investir direito em telenovelas. Elas tinham pouca audiência, se comparadas aos teleteatros. Porém, esse quadro mudaria radicalmente nos anos 60. Com o fim dos teleteatros, começava a era das telenovelas.
Para ilustrar essa mudança, em 1963, tínhamos 1.993 aparelhos de televisão, um crescimento de 333%, de acordo com o livro Telenovela: História e Produção. O surgimento do videotape permite uniformizar a programação nas emissoras, principalmente agora que filiais começavam a aparecer fora do eixo Rio-SP-Porto Alegre.
Jornais e revistas da época chamavam as telenovelas de "doce epidemia". "É uma doença agradável, que se contrai com prazer e alcança foros epidêmicos que ultrapassam a imaginação", dizem os jornais. Nada melhor do que aproveitar esse momento para reviver O Direito de Nascer, não é mesmo?
O Direito de Nascer, a versão para a TV, foi reduzida para 150 capítulos, que tinham duração de cerca de 20 minutos. Vale perceber que, neste momento, a telenovela passa a ser diária; diferentemente do rádio, cujos capítulos eram semanais. Como a TV Tupi sabia se tratar de uma obra muito popular, a escolha para o elenco foi bem criteriosa. Diversos atores fizeram o teste para o papel de Albertinho Limonta, o mocinho, tirado dos braços da mãe, Maria Helena (Nathalia Timberg), e criado por uma ama negra, Mamãe Dolores (Isaura Bruno).
Maria Helena (Nathalia Timberg) e Alfredo Martins (Henrique Martins) |
Outra reportagem da revista Manchete, de 1965, edição 670, nos mostra o potencial de O Direito de Nascer para estourar na televisão. Nela, uma senhora de 94 anos declara que seu sonho é ver as cenas inesquecíveis que ouviu no rádio na televisão. Muitas ouvintes saudosas dos tempos do rádio estavam para lá de ansiosas com a nova adaptação.
Como O Direito de Nascer fez muito sucesso, os patrocinadores pediram que a novela fosse estendida em 50 capítulos. Mesmo que a telenovela desfrutasse de grande sucesso, a televisão ainda não tinha dinheiro para se autofinanciar, portanto o controle permanecia nas mãos dos patrocinadores.
O papel de Maria Helena, que, após perder a virgindade com um rapaz e engravidar, é mandada pelo pai, D. Rafael (Elizio de Albuquerque), para uma fazenda e seu bebê é quase assassinado por um capanga a mando dele, canonizou a atriz Nathalia Timberg, sua intérprete. Para começar, já é possível delinear o moralismo advindo do melodrama: a única alternativa para expiar o pecado da carne é recolher-se em um convento e nunca mais ver o filho. E, talvez, por isso mesmo ela tenha sido canonizada: o público queria um final feliz por aquela mulher que sofria.
Após 176 capítulos, aconteceu a festa de encerramento de O Direito de Nascer no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Como dissemos, 19 mil pessoas estavam lá. Algumas cenas da novela foram encenadas. O público foi ao delírio quando viu Isabel Cristina (Guy Loup) beijar Albertinho Limonta. O delírio chegou ao auge quando Nathalia Timberg apareceu vestida de Sóror Helena. Mais uma vez, podemos ver como a telenovela é um fenômeno muito forte. Atriz e personagem se fundiam.
Mamãe Dolores (Isaura Bruno) e Albertinho Limonta (Amilton Fernandes) |
O Direito de Nascer foi um dos primeiros grandes fenômenos da teledramaturgia no Brasil. Em uma época em que as redes sociais nem existiam, é muito interessante ver como se delineavam os fenômenos de popularidade. Foi a partir dessa novela que a indústria da teledramaturgia caminharia rumo à uma produção em massa, um quase fordismo das novelas.
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