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O gótico em O Retrato de Dorian Gray


O famoso escritor Oscar Wilde pode ter sido tudo isso: preso, julgado, condenado, mal falado. Tudo, menos convencional. Seus restos mortais estão hoje no cemitério Père Lachaise, em Paris, onde o que mais nos chama atenção é o tributo registrado para ele: as várias marcas de batons de homens e de mulheres. Ou seja: nem mesmo seu túmulo possui tributos convencionais (especula-se que exista uma multa de 12 mil dólares de quem for pego beijando seu túmulo, mas isso não impediu as marcas de beijos de continuarem a aparecer). 

Sua mais famosa obra foi usada contra ele próprio em seu julgamento em 1895, quando foi condenado por “flagrante indecência” (na época, ter relações homoafetivas ou sugerir isso publicamente era considerado crime). O Retrato de Dorian Gray (The Portrait of Dorian Gray no original) completa 131 anos desde o ano de sua publicação original, em 1890. E continua interessando, sendo lido e sendo “alvo” de pesquisas. Dessa vez, o alvo não está associado a um preconceito intrínseco de uma sociedade conservadora, e sim a um alvo de pesquisas que cada vez mais contribuem para o meio literário. Afinal, estamos falando de um clássico inglês que marcou gerações e também deixou sua marca na filosofia e na arte.

Túmulo de Oscar Wilde (foto: Ann Erling Gofus)

Wilde era um amante das artes: o prefácio de 1891 é basicamente um manifesto em defesa das artes, e um dos seus objetivos com esse seu único romance era criar algo esteticamente belo. Na história, Dorian Gray começa sendo apenas um jovem inocente que chega a Londres e conhece Basil Hallward, o pintor cujas mãos realizarão o grande feito de sua vida, conforme Basil reconhece: a pintura perfeita, o quadro imaculado, do jovem Dorian Gray. Entretanto, junto à trama e aos acontecimentos iniciais, também temos a presença de Lord Henry. Totalmente persuasivo e sarcástico, é essa personagem que irá incitar Dorian a mergulhar em um mundo totalmente sensorial, de prazeres constantes e frequentes, de uma vida cheia de juventude e brilho. Lord Henry é uma das personagens da literatura que talvez mais representa aquele “diabinho do mal” que todos temos em algum lado do nosso ombro. 

Com frases insinuantes como “O único modo de se livrar de uma tentação consiste em se entregar a ela. Resista a ela, e sua alma ficará doente ao ansiar pelas coisas que se proibiu” e “acredito que, se um homem vivesse sua vida por completo, se desse forma a cada sentimento, expressão a cada pensamento, realidade a cada sonho — acredito que o mundo ganharia um tal impulso de alegria que nós esqueceríamos de todos os males do medievalismo e retornaríamos ao ideal helênico ou, quem sabe, a algo ainda mais delicado, mais rico que o ideal helênico”, Dorian dá ouvidos e em poucos anos, não apenas ele se torna uma experiência de Henry, como se torna outra pessoa, completamente diferente daquela do retrato pintada por Basil.

Prefácio de O Retrato de Dorian Gray presente na edição da Ward, Lock & Company de 1891 (foto: British Library)

Essa é uma das leituras de O Retrato de Dorian Gray, mas aqui vamos explorar a presença do gótico no romance, e para explicar essa presença (muito forte, eu diria), de que a obra que estamos falando é uma obra gótica, precisamos primeiro explicar o que seria o termo “gótico”. 

O gótico 

Na verdade, é até difícil de definir exatamente o que é “gótico”, pois o termo tem mudado muito ao longo dos séculos, e ele pode ser várias coisas ao mesmo tempo. Na literatura, ele surgiu com a publicação em 1764 de O Castelo de Otranto, de Horace Walpole. Castelos em ruínas (o chamado locus horribilis), lugares decadentes, com algo misterioso e fora do normal, predominavam as primeiras histórias góticas na Inglaterra. Mais tarde, conforme o tempo foi passando, o gótico também foi mudando: antes o sentimento grandioso que o terror das obras causava agora davam lugar também ao terror psicológico, dentro de ambientes domésticos, onde o “mal” estava na própria família. Hoje, temos o gótico presente até mesmo nos centros urbanos, por exemplo em It — A Coisa, de Stephen King

Mas o importante é lembrar que o gótico, na maioria das vezes, representou (e ainda acredito que representa) a decadência das coisas e das pessoas, ou seja, aquilo que é “sujo” e “vulgar” de que todos temos um pouco (e justamente por essas questões que antigamente o gótico não tinha uma boa recepção na sociedade e ascendeu somente entre os românticos do “mal do século”). Dorian, em O Retrato de Dorian Gray, perde a noção da vida ao tentar se entregar somente às sensações, imitando a arte em sua pura essência: mirando apenas no prazer. Dessa forma, o livro, acompanhando a própria vida de Dorian, ganha um aspecto decadente. Como é dito na Introdução Geral da edição da Biblioteca Azul, de 2013, com tradução de Jorio Dauster:

“Uma vida dedicada às sensações e à arte precisa ser vivida de forma plena e aberta, sugere Wilde: mas não devemos nunca esquecer que a arte ‘não tem como objetivo instruir ou influenciar a ação de modo algum’. No instante em que a vida perde a noção de seu propósito e tenta se transformar em sensação ou arte, quando tenta agir guiada inteiramente pela sensação ou pela arte ou se separar dos elementos mais amplos que definem a humanidade como tal, instaura-se uma espécie de corrupção e, em consequência, tanto a vida como a arte inevitavelmente se deterioram”. (p. 42-43)

Da mesma forma que a vida de sua personagem, a de Oscar Wilde também possui um movimento de decadência: Wilde, numa fase de sucesso, processou o pai de um marquês, por quem ele estava perdidamente apaixonado. O pai de Alfred Douglas acusou Wilde de difamação e “sodomia” (Wilde, assim como Dorian, mantinha muitas relações sexuais tanto com homens como com mulheres). Wilde é preso por dois anos por conta disso. Nessa época (final dos anos 1800), a sociedade inglesa era praticamente dividida entre aqueles que condenavam esses atos e aqueles que os praticavam às escondidas. 

O gótico, dentre outras características, possui um caráter libertador de regras e costumes. Ele representa aquilo que não faz parte do “status quo”, e aquilo que tinha esse aspecto mais decadente começava a fazer sucesso: Jack, O Estripador, O Médico e o Monstro e Drácula são alguns exemplos de obras góticas que começam a surgir nessa época, quebrando padrões, mostrando o lado mal das pessoas, da sociedade, a sensualidade, o terror e o horror. 

Oscar Wilde e Alfred Douglas

Por isso mesmo que O Retrato de Dorian Gray causou tanto e, acredito, para aqueles mais conservadores ainda causa: o texto homoerótico que existe (muito insinuado e mais presente e vivo na versão não-censurada) é uma manifestação dessa libertação que nascia com o gótico, e que o gótico permite. É por isso mesmo que alguns trechos do romance são usados contra o próprio Wilde em seu julgamento. E, além dessas questões, deixo pro final a melhor parte: o retrato em si.

O retrato 

Como disse mais acima, existem duas leituras para o romance: aquela em que Dorian escuta muito Henry e se torna outra pessoa, conforme entrega sua vida aos prazeres do corpo, e aquela que encaixa O Retrato de Dorian Gray como parte da literatura gótica. 

Quando Basil Hallward pinta Dorian em uma das primeiras cenas do romance, há uma revelação de que a pintura permaneceria perfeita, jovem e sem defeitos, enquanto ele envelheceria, teria falhas, marcas do tempo e de seus erros. 

“Sim, chegaria o dia em que seu rosto se enrugaria e murcharia, seus olhos perderiam o brilho e a cor, seu corpo gracioso ficaria alquebrado e deformado. O escarlate sumiria de seus lábios, o ouro fugiria de seus cabelos. A vida que deveria alimentar sua alma lhe desfiguraria o corpo. Ele se tornaria horrível, medonho e desgracioso”.

Jovem e assustado, Dorian então proclama veemente em voz alta que daria tudo, qualquer coisa, para que ele permanecesse jovem para sempre e não o retrato. Para que o retrato envelhecesse e ele continuasse da mesma forma, para sempre. Todos sabemos que algo de forma sobrenatural acontece: a partir desse momento, Dorian não mais envelhece — pelo contrário, é sua pintura que começa a se deteriorar, ficar feia, causar angústia ao próprio Dorian, mostrando de forma sórdida o que ele estava se tornando por dentro. 

Apenas por dentro, pois por fora ele continuava lindo, conquistando as pessoas, sendo glorificado. Dorian adota uma imagem que depois, até mesmo na cultura mais pop, começa a se difundir: a do vilão que é bonito, galanteador (tal qual os vampiros, conhecidos também por sua sensualidade). Há aqui uma associação entre a beleza e a malvadez, e uma quebra de padrões, típica do gótico: apesar de ter um rosto bonito, Dorian não é bonito por dentro. Ele acaba com seu caráter de bom moço do início do livro, acaba com várias relações e com vidas de pessoas e não sente pena ou remorso. E a medida que ele vai se sentindo assim, ele fica mais bonito, com mais brilho, enquanto seu retrato vai se deteriorando. 

Ben Barnes como Dorian Gray em O Retrato de Dorian Gray (2009)

O poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe tem por uma de suas obras mais primorosas o poema Fausto. Nele, o protagonista de mesmo nome faz um pacto com o demônio em troca de ter uma aparência melhor e mais sabedoria. Fausto amava mais a si mesmo do que aos outros, tal qual Dorian. Se fizermos uma relação entre essas duas obras (que possuem, realmente, uma relação), podemos dizer que Dorian é uma releitura de Fausto e que, sim, Dorian também fez um pacto com o demônio. Trocou sua alma pela sua juventude, porém com a consequência de ver o seu “eu” interno no retrato, o que leva ao seu inevitável destino final, na última cena do romance. 

Esse não-envelhecimento não é explicado e nem contestado durante a narrativa, por isso, podemos fazer a leitura de que o que aconteceu com Dorian realmente faz parte de um fenômeno sobrenatural, que ronda sua vida e o objeto do retrato, pervertendo a ordem e tirando a organização das coisas e do mundo como ele é. E esse aspecto fantasioso não é visto só por Dorian, mas também por Basil, que  da mesma forma possui um destino horrível: 

“— Quer dizer que você acha que só Deus pode ver uma alma, Basil? Afaste o pano e verá a minha.
As palavras haviam sido ditas com frieza e crueldade.
— Você está louco, Dorian, ou representando um papel — resmungou Hallward, franzindo a testa.
— Não vai? Então vou ter de fazer eu mesmo — disse Dorian, arrancando a cortina de haste e a atirando no chão.
Um grito de horror escapou dos lábios do pintor ao ver, na luz débil, a horrenda figura que lhe sorria maliciosamente. Havia algo naquela expressão que o repugnava, que lhe dava asco. Deus meu! Era o rosto de Dorian Gray que ele estava vendo! (...) Mas quem pintara aquilo? (...) A ideia era absurda e, no entanto, o amedrontou.”

Referências: 

  • SVOBODOVÁ, Ivan. Gothic Presence in The Picture of Dorian Gray. Bachelor Thesis. 2016.
  • BOTTING, Fred. Gothic. Routledge. 1996.
  • WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Editora Biblioteca Azul. 2013. 


Texto: Giovanna Bilhalva 
Imagem de destaque: Mia Sodré 

Giovanna
Gaúcha, leitora, colunista, estudante de Letras, recente dona de um Instagram literário e atualmente rendida à fofura dos gatos.

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