últimos artigos

A salvação pelo poder do amor em Star Wars


Embora muito possa ser dito sobre a forma como Star Wars lida com amor e sexo em sua trama, encontramos nos filmes da saga casais cujas histórias de amor despertam diversos sentimentos, geralmente de carinho e admiração. No entanto, existe um casal que causou muita polêmica dentro e fora do fandom: Rey (Daisy Ridley) e Kylo Ren (Adam Driver), que aqui chamaremos de Reylo

Chamado de abusivo por alguns, que inclusive referem-se ao casal como a clássica personificação da Síndrome de Estocolmo romantizada, Reylo é polêmico por natureza. A história de amor, que tem sua origem no primeiro filme da nova trilogia, O Despertar da Força, suscita sentimentos controversos no público ao mostrar uma jovem que recentemente descobriu a Força apaixonando-se lentamente por um Sith, um antigo Padawan que abraçou o Dark Side e causou dor e sofrimento por onde passou. Muito mais do que enemies to lovers, Rey e Kylo podem ser encarados como a história de uma mulher que apaixona-se por seu captor e tenta transformá-lo, acreditando que ele perceberá o quão errado está e irá para o caminho certo. É compreensível, portanto, que tal casal seja tão fortemente rejeitado. Entretanto, não o rejeito — pelo contrário: Reylo é uma das melhores coisas já que aconteceram em Star Wars

Apesar de seu final trágico sem necessidade e da mensagem que ele passa (vilões podem se redimir, mas não têm o direito de viver para mudar suas histórias), o relacionamento entre Rey e Kylo Ren é muito bonito porque mostra duas pessoas emocionalmente quebradas e em posições de poder, cada uma de um lado da batalha, que precisam lidar com suas escolhas e pesar seus sentimentos. Durante seus breves encontros, o afeto entre ambos vai crescendo e, com ele, o desenvolvimento de seus personagens aprofunda-se. Rey já não é mais apenas uma garota de Jakku esperando por seus pais, tampouco Kylo é somente uma força destrutiva cujas mágoas são canalizadas a serviço de Snoke. Juntos, eles são uma díade da Força mas, mais do que isso, eles conseguem perceber as falhas em suas próprias vidas e a importância do equilíbrio. 


É muito fácil olhar para Reylo e pensar que essa é uma história sobre uma jovem Jedi que, pelo poder do amor, consegue redimir um instável Sith e levá-lo para o lado da luz. No entanto, essa não é toda a trama. É bem verdade que Kylo é conduzido de volta à luz através de Rey, já que finalmente ele sente-se aceito e tem esperanças de haver algum lugar em que possa caber, pois não conseguia voltar para sua família por verdadeiramente acreditar que jamais o compreenderiam, mas não é só ele quem muda. Rey também é profundamente transformada pela conexão com Kylo Ren. Ela, que também sempre esteve à deriva na Galáxia, passa a sentir-se amada e compreendida — e a ver que o caminho não deve ser nem de luz nem de sombras, mas cinzento, em equilíbrio. Ao final de sua jornada, ela torna-se algo novo: nem Jedi à maneira antiga (feliz dia em que Yoda queimou os livros sagrados dos Jedi), nem Sith. Ela abraça a Força e distingue as coisas conforme seu julgamento, ouvindo a si mesma e ao balanço do universo. Mas dificilmente ela teria expurgado seus conflitos e chegado a esse lugar não fosse por seu vínculo com Kylo. 

A forma como o afeto entre ambos foi conduzida pelo roteiro não romantiza os abusos de Kylo Ren, tampouco o redime de responsabilidade apenas porque ele encontrou a luz através do amor. Pelo contrário: Kylo, após rejeitar o título Sith e tornar-se novamente Ben Solo, literalmente dá sua vida para que Rey continue a viver e salva o dia, auxiliando na destruição definitiva (ou assim esperamos) do Imperador Palpatine (Ian McDiarmid) e dos Sith. Ele paga por seus crimes com sua vida, não possuindo a chance de trilhar um novo caminho. E, antes disso, o romance entre eles nunca é concretizado, já que Rey jamais comprometeria seus princípios para estar com ele — ainda que o ame. Ela conhece muito bem o poço profundo da escuridão que habita em Kylo. Sabe que ele pode sair dali com alguma ajuda, mas certamente não está disposta a sacrificar tudo em que acredita para ficar com ele. Essa me parece uma narrativa saudável de um amor entre pessoas que não deveriam apaixonar-se, mas apaixonaram-se. Kylo Ren é realmente um vilão — embora esteja mais na linha do anti-herói Byroniano do que de um vilão tradicional — e, como tal, ele precisa arcar com seus atos (ainda que seria preferível ele ter sido julgado como criminoso de guerra e condenado a uma pena de alguns anos, porém que fosse dada a ele a oportunidade de uma verdadeira redenção, do que acontece ao final de A Ascensão Skywalker). 

Mostrar uma Rey que aceita seus sentimentos por ele, mas reconhece o fato de ele ser problemático em todos os sentidos, é uma escolha responsável na saga. Rey não pega na mão dele quando ele oferece a possibilidade de deixarem tudo o que é antigo morrer — Jedi ou Sith — para que ambos possam governar a Galáxia e transformá-la em algo novo. Nisso, Rey ressoa a integridade de Padmé (Natalie Portman) quando conversa com um jovem Anakin sobre as questões do governo e defende a democracia, chamando a atenção do objeto de seu amor para suas tendências ditatoriais. Amar uma pessoa não é eximi-la de seus problemas, e as mulheres em Star Wars sempre pareceram saber disso, ainda que os homens tenham mais dificuldades nesse aspecto. Mas, novamente, eles costumam ser os personagens problemáticos, com conflitos entre bem e mal, que tentam salvar o dia — e as pessoas a quem amam — através do ódio ao invés de escolher o caminho da luz. 

Star Wars sempre flertou com a narrativa do poder do amor como salvação. Mas, até a última trilogia, o amor romântico não havia conseguido conquistar tal façanha primariamente almejada por Anakin Skywalker (Hayden Christensen). Tudo o que ele queria era salvar sua amada, Padmé, da morte pressagiada — e, para tal, foi capaz de abrir mão de seus princípios Jedi em nome de uma possível salvação no poder Sith. O erro de Anakin foi não ter compreendido que a escolha do Dark Side possui consequências e elas nunca são boas. A salvação do amor não ocorreria dentro do caminho Sith. Anakin só teve um momento de redenção em sua morte, quando ajuda Luke, aceitando seus sentimentos e salvando seu filho. Mas o amor romântico ele já havia perdido há muito tempo — e a saga nos mostra claramente que vilões não são autorizados a mudar de rumo, mesmo que se arrependam e deixem para trás o caminho sombrio. 

A jornada Skywalker é toda permeada por tal narrativa — o amor nos salvará? De pai para filho para neto, as gerações precisam lidar com o mesmo tema até que ele seja resolvido, como se fosse uma maldição. E, embora Luke (Mark Hamill) também possua sua jornada nessa trama, não sabendo lidar com o amor familiar, com seus desejos sexuais por sua própria irmã e com o peso de ser um herói da Resistência e não sentir-se capaz para tal, são Anakin e Ben quem começam a terminam tal trajeto, unindo suas vidas em paralelos da mesma força motriz. 

Kylo Ren passa os dois primeiros filmes da nova trilogia tentando ser Darth Vader. Ao contemplar a máscara destruída do avô, ele lamenta não possuir sua força e promete a si mesmo e ao espírito de Vader terminar o que ele começou. Obviamente, ele não sabia como tais palavras seriam proféticas, porém de uma forma completamente diferente da que ele pensou quando as proferiu. Mas ele não é Darth Vader, ele é um Anakin magoado. Enquanto a decisão de Anakin para juntar-se ao Dark Side foi baseada no medo da perda do amor, Kylo já havia perdido o amor — ou assim pensava. Há cerca de dez anos, como um dos comandantes da Nova Ordem, Kylo refugiou-se com os Sith por não encontrar lugar em sua própria família. Rejeitado por seu tio, Luke, que quase o assassinou por enxergar nele o conflito com a Força, tendo pais que não lhe deram grande atenção e sentiam, em parte, medo dele por verem no filho muito de Vader, Ben Solo sempre foi um outsider. Associado à figura do avô desde criança, é nele que Ben, não surpreendentemente, que acaba se inspirando — de uma forma completamente distorcida. 

Ambos são muito parecidos. Para Anakin, o amor está associado a medo e poder. Ele teme, primeiramente, perder sua mãe, Shmi. Depois, sua esposa, Padmé. O modo sóbrio dos Jedi, que rejeitam sentimentos pessoais, não poderia ser absorvido por Anakin, um jovem adolescente repleto de sonhos com uma mãe que ele não via há anos, que fora abandonada em Tatooine. Ele também não conseguiria lidar com a tragédia da perda da mãe sem o auxílio de Padmé, a única pessoa que lhe tratava como igual, por quem não se sentia menosprezado. Nesse ambiente, é muito fácil entender por que o amor nasceu entre eles. 

O Código Jedi é repleto de proibições e, dentre elas, existe uma que é crucial na Saga Skywalker: os Jedi não têm permissão para formar relacionamentos românticos. Palpatine, sabendo disso, aproxima-se cada vez mais de Anakin e manipula o jovem aprendiz para que seu amor por Padmé o leve de uma vez por todas ao Dark Side. O medo da morte, da perda de mais alguém, da pessoa que realmente o aceita e enxerga, faz com que Anakin deixasse seus sentimentos mais perigosos aflorar, e eles ganharam terreno fértil nas mãos de Palpatine. 

O sofrimento pela perda do amor também atormenta Kylo Ren. Quando ainda era um aprendiz de seu tio, Luke Skywalker, o jovem Ben Solo sentiu-se traído e horrorizado com o tanto que era odiado por aquele a quem amava e seguia quando Luke tentou assassiná-lo, pensando que o sobrinho já havia decidido ir para o Dark Side. O elemento da profecia é muito forte na saga, mas, embora algumas verdades possam ser reveladas através das visões de um Jedi, as interpretações são suficientemente falhas e causam grandes consequências. As profecias em Star Wars são paradoxos que, por serem acreditadas, levam às suas concretizações. O dom da visão do futuro é um jogo arriscado que os Jedi jogam sem perceber que é mais destrutivo ater-se ao que pode acontecer do que ao que está acontecendo. Foi isso que os levou à queda — em mais de uma maneira. Anakin era o Escolhido, revelado através de uma profecia. Kylo não era o Escolhido de sua geração, mas tornou-se coadjuvante da própria vida por intermédio do medo e das más decisões de sua família, que preferiu dar ouvidos a visões e julgamentos realizados através da Força do que a um menino que só estava tentando seguir seu caminho, com sua família, mas que não pôde fazê-lo porque ninguém foi realmente responsável por ele. 


Claro, isso não o exime de culpa. Ben Solo, enquanto Kylo Ren, cometeu atos terríveis. Mas é triste pensar na maneira como isso poderia ter sido evitado caso os Jedi não fossem tão arrogantes e intolerantes e tratassem as pessoas como pessoas — com falhas, erros e capazes de redenção. Embora eles preguem isso, não o praticam realmente, o que fez com que personagens como Anakin e Kylo se desviassem para o Dark Side, que os recebeu de bom grado. Kylo Ren é o personagem mais emocionalmente complexo de Star Wars e reduzi-lo a problematizações sobre ele ser um vilão abusivo que tem seu momento de heroísmo é fazer pouco de sua trajetória. Embora J. J. Abrams tenha estragado a própria saga com um final que não faz jus a tudo aquilo que havia sido trabalhado até então, é preciso olhar para o relacionamento entre Kylo e Rey como o que ele é: um encontro de duas pessoas solitárias, duas almas na Força, que verdadeiramente enxergam uma à outra. 

Quando Kylo Ren mata seu pai, Han Solo (Harrison Ford), em um dos momentos mais chocantes dos filmes, ele o faz porque percebe seu pai como uma fraqueza. Como ama o pai, não pode deixá-lo vivo — esse é o pensamento de Kylo, distorcido pelos sussurros de Snoke desde que ele era criança. Não é diferente de outras narrativas de contos de fadas, como a de Regina Mills (Lana Parrilla) em Once Upon a Time. Regina, que também possui um alter ego que veste como capa quando se volta para o mal, a Rainha Má. E ela, assim como Kylo, matou seu pai por amá-lo e concentrou seus sentimentos para conseguir mais poder. Da mesma forma, ela não consegue seu final feliz com a pessoa a quem ama — mas, pelo menos, ela não foi morta pelo diretor em nome de uma justiça estranha. 

Enquanto o Código Jedi diz que “não há paixão, apenas serenidade”, o Sith declara que “a paz é uma mentira, através da paixão ganho força”. A diferença é que enquanto os Jedi são incentivados a canalizar os sentimentos para um estado onde não há favoritos ou questões pessoais, apenas a Força e a justiça, os Sith são levados a deixar que esses sentimentos fluam em torrentes distorcidas de maldade e ambição. Mas ninguém é mau aos próprios olhos — nem Kylo, que se enxergava como o herói de sua história. Isso é bem mostrado quando ele, ao assassinar Snoke, oferece a mão para Rey e propõe que eles deixem tudo o que era antigo morrer para que uma nova era possa nascer, uma era onde ambos, em equilíbrio, poderão governar. Ele verdadeiramente não entende qual é o problema nessa afirmação, já que viu maldade e destruição em ambos os lados. Para Kylo, não há lugar no mundo que não seja ao lado de Rey. 


Palpatine convence Anakin a trair os Jedi utilizando a história de Darth Plagueis. A lenda diz que ele, um Lorde Sith, adquiriu poder suficiente para trazer as pessoas de volta à vida, mas não conseguiu trazer a si mesmo. Anakin, atormentado pelos sonhos que tinha com uma Padmé morrendo no parto, se deixa seduzir pela ideia de utilizar a Força para manipular vida e morte e salva Palpatine. Mas Padmé morre e ele não tem mais um lugar no mundo, nem entre os extintos Jedi, nem entre os Sith, tornando-se um ser isolado, um comandante do Dark Side, mas mais robô do que homem sem seu motivo de viver. 

Ben Solo, no entanto, consegue fazer o que seu avô não conseguiu. Ele, após romper com o Dark Side, jogando seu sabre-de-luz fora e se despojando do alter ego Kylo Ren, tenta ajudar Rey a destruir um Palpatine morto-vivo de todas as formas, inclusive dando sua vida em seu lugar ao usar sua Força Vital para ressuscitá-la. Assim, ele utiliza o poder do amor enquanto Jedi para salvar a mulher a quem ama. Sua morte pode ser consequência disso, mas não sabe-se ao certo o que lhe aconteceu, já que ele simplesmente desapareceu — à maneira Jedi de morrer —, sem, no entanto, virar um Fantasma da Força. Pode bem ser que Ben Solo tenha se transformado em outra coisa, rompendo um ciclo de maldição pelo amor tanto entre Jedi quanto em sua própria família. Rey é todos os Jedi, mas os Jedi já não existem — só existe ela, uma guerreira solitária, uma Jedi Cinza, com sentimentos. 

Agora, com Rey, não existem mais Jedi ou Sith, e sim alguém em equilíbrio com a Força. O poder do amor venceu — e Ben Solo estará para sempre com ela, pois eles são o mesmo. 


Arte em destaque: Mia Sodré 
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

  1. Que texto fantástico!!! Para mim, fica claro que Reylo é o Romeu e Julieta moderno, com ambos sendo separados por brigas do passado e eventualmente se unindo. Não é por menos que eles tem um final trágico, mas Ben representa os Skywalkers que Rey aprende a aceitar no último filme. O próprio George Lucas já comentou que Star Wars é meio novelão e eles representam isso.

    O J.J Abrams simplesmente se consolidou como o cineasta mais dedicado em manter o legado clássico do Lucas por meio de mais um casal que se cativa inicialmente, ainda que separados por algo, com a diferença sendo que o Ben escolhe o lado da luz no final. Simplesmente apoteótico.

    ResponderExcluir
  2. Que texto maravilhoso e super bem construído!! Adorei

    ResponderExcluir

Formulário para página de Contato (não remover)