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A Maldição da Mansão Bly: os labirintos da memória como túmulo


Recentemente, reassisti a Cemitério Maldito (Pet Sematary, no original), filme de Mary Lambert adaptado a partir do romance de Stephen King, O Cemitério. Nele, temos uma trama sombria que lida com os limites até onde uma pessoa poderia ir durante o processo de luto. É uma história densa e assustadora - não tanto pelo sobrenatural que ali reside, mas sim pela tristeza profunda que a permeia, uma tristeza tão forte que torna plausível a horrorosa ação do personagem principal. Embora as narrativas divirjam em muitas coisas, os temas de morte, luto e apego estão presentes tanto no filme quanto na mais recente série de Mike Flanagan, A Maldição da Mansão Bly (cujo título original é The Haunting of Bly Manor). 

Adaptada de A Outra Volta do Parafuso, livro de Henry James, A Maldição da Mansão Bly gira em torno dos irmãos Miles (Benjamin Evan Ainsworth) e Flora (Amelia Bea Smith), órfãos que, há dois anos, moram em Bly, a mansão de seu tio, onde costumavam passar o verão. Desde a morte dos pais das crianças, Henry Wingrave (Henry Thomas), o tio, não vai mais a Bly, tampouco entra em contato direto com os sobrinhos. Para tal, ele conta com as pessoas que trabalham na propriedade: Hannah (T'Nia Miller), a governanta, Owen (Rahul Kohli), o cozinheiro e Jamie (Amelia Eve), a jardineira. Mas Henry precisa de uma nova babá para as crianças e é aí que começa a série, com Dani (Victoria Pedretti) preparando-se para a entrevista de emprego, na vaga de au pair

Os leitores do livro já terão percebido a essa altura que há uma diferença fundamental entre ele e a série. Flanagan decidiu trazer o enredo da mansão assombrada para a década de 1980, mais especificamente 1987. Mas os elementos principais permanecem ali, inclusive a estrutura dessa ser uma história contada numa roda de conversa, entre amigos que estão trocando histórias de assombração. 

Tudo começa num jantar de ensaio de casamento. Personagens sem nomes surgem na tela e um deles brinda aos noivos, falando sobre a natureza do amor. Amar é estar disposto a perder. Mas, mais tarde, quando todos ali estão reunidos trocando histórias, há uma em especial que é contada com muita atenção, pois dialoga perfeitamente com a essência daquele dia: a perda do amor e o medo do esquecimento - e os limites ultrapassados em nome disso. 

Uma mulher cujo nome não sabemos (Carla Gugino) começa a contar a história, que aconteceu há vinte anos antes, dos orfãos de Bly e da au pair, Danielle. Mas não se enganem: essa é uma história de assombração, mas também de amor. 

Existe uma concepção errônea acerca do gótico. Há quem diga que é gótico aquilo que assusta e está dentro de determinado padrão estético. Entretanto, o gótico, enquanto gênero, lida com diversos elementos narrativos, estando muitas vezes centrado numa história de amor. Até porque o sentimento é um bom motivador para uma boa assombração. A perda gera marcas profundas em pessoas e em lugares. E a perda de um amor pode causar uma ruptura muito intensa. 

Uma boa história de fantasmas não precisa ser focada nos sustos ou em efeitos de jump-scare. Colocar o foco em como atormentamos a nós mesmos durante a vida e após a morte é tão assustador - e talvez até mais perturbador - do que um espírito aparecendo repentinamente. Um fantasma é um ser assombrado. Podemos ver isso em Insidious quando percebemos que o motivo por que os espíritos ficavam na casa assustando a família não é maligno per se. Eles só queriam escapar de seus próprios infernos, sair daquele túmulo metafórico que construíram com suas mágoas, rancores e apegos. 

Italo Calvino em seu livro As Cidades Invisíveis fala que o inferno dos vivos não é algo que será, mas sim algo que é, que já existe, que construímos estando juntos. Ele ainda complementa dizendo que existem duas maneiras de não sofrer: "A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que no no meio do inferno, não é inferno e preservá-lo e abrir espaço"

Embora não trate de fantasmas ou mesmo seja uma obra de horror, existe algo imensuravelmente assustador na ideia de sermos os responsáveis por nossos próprios infernos e estarmos condenados a revivê-los continuamente. Sempre pensamos que aquilo que nos causa dano vem de fora, vem do Outro. Mas e quando somos o próprio inimigo? E quando somos os causadores de nossos infortúnios - inclusive daqueles do além-túmulo? E quando o túmulo é a nossa casa? 

Em O Morro dos Ventos Uivantes, Cathy perambula durante vinte anos pela charneca, sempre rodeando o Heights na esperança de poder voltar para casa, mas condenada por suas próprias palavras de maldição já que, pouco antes de morrer, desejou habitar aquele espaço entre a casa de seu marido e aquela na qual cresceu - assim como escolheu, até o fim, permanecer dividida entre Heathcliff e Linton. Antes de morrer, Cathy entra num delírio no qual não enxerga mais a si mesma nem reconhece as pessoas à sua volta, somente contemplando o passado e revivendo memórias e arrependimentos. Sua escolha a condenou, pois seu apego pela vida que não conseguia assumir lhe fez ficar presa àquele local - atormentando a si e aos outros. "Faz vinte anos que vago pela charneca, faz vinte anos que estou perdida" ela diz a Lockwood, o inquilino de Trushcross Grange, durante sua visita ao Heights. Cathy está condenada a repetir seu sofrimento naquele mesmo espaço. Nem seu corpo deteriora-se: quando Heathcliff abre seu túmulo, décadas após sua morte, ele a encontra "ainda bonita", como um corpo incorrupto. A maldição que jaz sobre Cathy é a da não-morte dentro da morte, é a da casa como túmulo - um túmulo que ela não pode habitar, já que está condenada a reviver seus tormentos, mas pelo qual anseia. 

Não é diferente com os habitantes de Bly. Todos eles, século após século, permaneceram ali atraídos pela centro gravitacional da dor, do luto e do apego de Viola (Kate Siegel), uma mulher que viveu no século XVII, mas que, assim como Cathy, recusou-se a ir embora. Ela permaneceu, porém o tempo apaga tudo, inclusive as memórias conscientes, e o que restou foi o sentimento de posse, de apego e de rancor. É um tormento em si mesmo. Condenada a repetir o mesmo não-dia para sempre, ela tornou-se a Dama do Lago. 

Por isso, o oitavo episódio da temporada é tão importante. Embora seja baseado em outra obra de Henry James, o conto O romance de uns velhos vestidos, saindo do eixo de A outra volta do parafuso, o episódio é central para compreendermos a real maldição de Bly. É algo com que facilmente podemos nos identificar. Quem consegue realmente ter dimensão do quão esquecido será após uma ou duas gerações - ou até mesmo em vida? Viola não é algo maligno ou propositadamente perverso; trata-se apenas de uma mulher que não admitia o esquecimento. Seu marido, sua irmã, sua filha, todos a esqueceram, ela nada mais era do que uma lembrança nefasta que eles não tardaram a afastar. Isso deformou seu espírito, que permaneceu no lago de Bly, onde foi jogado junto com o baú repleto de roupas e joias que pretendia dar à filha quando ela atingisse a idade adulta. 

Ainda que a força gravitacional do espírito de Viola dê a Bly um ar trágico, a natureza assustadora da história não está necessariamente concentrada nela, apenas pode ser explicada a partir de sua trajetória. No entanto, a aterradora verdade que a série nos mostra é que, mesmo que Viola não existisse e os espíritos não tivessem que ficar presos em Bly, eles ainda estariam presos em si mesmos. Peter Quint (Oliver Jackson-Cohen), Rebecca Jessel (Tahirah Sharif), Hannah e até mesmo Henry, Dani e seu ex-noivo, Edmund (Roby Attal), são presos por suas memórias, por tudo aquilo que desejavam fazer, mas não realizaram. Perdidos em devaneios, eles assombram a si mesmos e causam terror a quem os encontra. 

É fácil sentir, à primeira vista, que A Maldição da Mansão Bly não é tão assustadora quanto a sua predecessora, mas talvez isso ocorra porque também é fácil esquecermos o quão assombrados podemos ser por nossas próprias memórias e anseios. Um fantasma não assombra, ele é assombrado, e fantasmas podem ser muitas coisas, até mesmo um arrependimento. Quando permitirmos viver memórias ou medos de forma imersiva, selamos um túmulo e ficamos condenados a repetir nossas tragédias dia após dia. 







Arte em destaque: Mia Sodré
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando Apolo, Dioniso e a recepção dos clássicos em O Morro dos Ventos Uivantes. Escritora, jornalista, editora e leitora crítica, quando não está lendo, escreve sobre clássicos. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

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