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Medo e deslumbramento na tumba: o fascínio gótico pela morte


Desde o início das produções literárias no mundo, de Shakespeare a Homero, poetas e amantes da arte de escrever se debruçam sobre os mistérios que rodeiam a essência humana: consciência, emoções, os segredos do inconsciente, a vida, e, claro, a morte. Ela está presente, construindo seus tormentos nos fundos da consciência do ser humano, desde antes das primeiras eras do Antropoceno, quando não existia tal coisa como a escrita, e o ato de comunicar se dava pelas representações visuais deixadas nas cavernas.

Visto que o ser humano, como refletiu o filósofo Todd May em sua obra Death (The Art of Living), é a única espécie no planeta que tem consciência de sua mortalidade, a morte ocupa na mente uma fonte de angústias que se concretizam nas criações artísticas, e literárias.

Como uma simples palavra pode carregar consigo um universo do desconhecido, tal como uma entidade, é por si só um mistério, e as formas encontradas para desvendar este universo se perpetuam em instituições que moldam a sociedade tanto quanto a própria morte. Diferentes culturas, entretanto, veem diferentemente a influência da morte em sua formação. Foquemos então na cultura ocidental para compreendermos como a entidade Morte atuou na produção literária clássica em um movimento cuja essência está na imaginação em torno dela.

A Morte como ela é


O historiador Philippe Ariès, em seu estudo História da Morte no Ocidente, categoriza as representações da Morte no ocidente ao longo do tempo como: morte domada; morte de si; morte do outro; e morte interdita. Na morte domada, também chamada de morte medieval, o indivíduo era prevenido de sua morte, geralmente por interferência divina, e aceitava seu destino de braços abertos. Além disso, uma característica marcante era a presença de rituais e homenagens fúnebres para o morto. A morte de si mesmo contempla semelhantes características, e tem como essência a descoberta de si na morte, o reconhecimento de si. É também neste período, no segundo momento da Idade Média, que o ser humano passa a se preocupar com o que acontece após a sua morte, passando não a temê-la, mas sim o que ela precede.

A morte do outro é fruto dos séculos XVIII e XIX, e mostra a Morte como fonte de desejo; agora ela é um fenômeno brutalmente arrebatador, belo e esperado, e voltado para o outro. A morte interdita traz uma representação mais próxima à atual realidade, meio que invisibilizando este fenômeno, pois agora a Morte é algo a ser evitado, vergonhoso, um empecilho. A morte interdita busca apagar a morte do imaginário humano para que este esqueça o que é finitude, apenas lidando com a crise do fim quando este chega para bater o ponto.

A vida como horror


Philippe Ariès remonta a morte do outro em meados do século XVIII, quando a Morte deixa de ser produto do Destino e passa a ser produto de ânsias e ambições, uma forma de se unir ao amor separado por ela. Uma série de representações ao longo dos séculos anteriores remontando o amor à morte - a junção de Tânatos e Eros, figuração de amantes trágicos que tiveram na morte seu encontro - contribuíram para esta mudança de ares.

O novo fascínio em relação à Morte moldou um dos maiores movimentos artísticos da História - o Romantismo. O Romântico, diz Airés, é complacente com a Morte. Tanto que a morte do outro também pode ser chamada de morte romântica. Mas muito além de atuar como uma força que separa e reúne alma em seu âmago, a Morte se apresenta para os escritores como sujeito de experimentação para obter respostas que a realidade não é capaz de dar.

O Gótico, então, se apresenta como um subgênero de contra-cultura no próprio Romantismo, possuindo algumas características básicas do movimento, mas se dedica principalmente a uma narrativa muito mais introspectiva, psicológica e ambígua. No Gótico, criou-se outro tipo de herói - o byroniano, um que se distancia do mocinho e enfrenta um conflito com sua própria mente, um possível progenitor do nosso anti-herói. Ao perceber o ser humano como seu próprio mal, o Gótico explora em suas obras o terror psicológico e o sublime.

Partimos então para um dos maiores clássicos da literatura gótica, um dos marcos do terror e o primeiro filho da ficção científica: Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1818) se aventura por questões do pós-humanismo, ética e superação dos limites da vida e da morte. Perseguido pelo fantasma da morte da mãe, o prodígio naturalista Victor Frankenstein se dedica a erradicar a morte da humanidade. O resultado do seu trabalho, entretanto, foi uma criatura nascente da putrefação de corpos mortos que, em virtude do abandono de seu criador, transforma seu legado em carnificina. O aviso que Mary Shelley nos dá é claro: memento mori, não se derrota a Morte. Em vez de eliminá-la, Victor cria seu próprio assassino, que drena sua alma pelo medo, aos poucos, morrendo pelo terror de estar vivo.

A putrefação do corpo em função da eternidade


Morte significa apodrecer. Vida significa envelhecer. Victor alcança a imortalidade em um corpo formado por cadáveres, uma criatura horripilante cuja aparência foge à descrição de beleza. O corpo perece na morte, mas a juventude permanece intacta. Morrer no Romântico, Gótico, também significa permanecer jovem e belo para toda a eternidade.

Tomado pelo terror de envelhecer e perder sua beleza, Dorian Gray entrega sua alma para permanecer imutável pelo resto de seus dias, tal qual retrato. À medida que o retrato sofre os danos causados pelo declínio da alma hedonista de Dorian, e seu corpo assume a imortalidade de um retrato, ele vence a Morte. Até o perecimento de sua consciência moral enviá-lo à loucura e levá-lo a desferir em si mesmo o golpe mortal que retornou a imortalidade ao quadro e ao corpo sua maldição.

Tanto Mary Shelley com Frankenstein ou O Prometeu Moderno (1818) quanto Oscar Wilde com O Retrato de Dorian Gray (1891), quase um século separados, deixam em suas experimentações góticas uma epifania clara: a Vida não é párea para a Morte… E não é possível alcançar a imortalidade em vida.

A Imortalidade pela Morte


Não é possível alcançar a imortalidade em vida. Isso nos leva a investigar outro parâmetro de imortalidade explorado pelas narrativas góticas. Em ambos os romances de Shelley e Wilde, a Morte - pelo menos em sua forma natural - encarna o belo, enquanto a busca pela imortalidade guia os andantes a um exício putrefo e horripilante, ou seja, ao feio. A morte natural, nos diz os góticos, é triste e melancólica, mas preserva em sua essência a etérea beleza e inocência daquele que perece.

O que acontece, porém, quando a Imortalidade acomete o cadáver que descansa em seu mausoléu?

No folclore europeu, um ser mitológico que alcança a imortalidade na Morte vaga pelas bocas dos vilarejos da Europa Oriental e da Península Balcânica desde os Tempos das Trevas. Na prosa literária, o primeiro a trazer esta figura e ressuscitar o mito no imaginário popular inglês foi o médico John William Polidori com o conto O Vampiro (1819). A pequena prosa ficcional é hoje considerada a gênese das narrativas românticas de vampiro que inspirou outros clássicos que consolidaram esta figura como um dos maiores personagens de terror da história.

O conto traz a figura emblemática do Lord Ruthven, um homem misterioso de beleza encantadora que atrai todos os que estão ao seu redor. Iniciante na aristocracia inglesa que se infiltra nas grandes festas da alta sociedade para buscar suas vítimas, enlouquecendo aqueles que sobrevivem ao seu encontro. O Vampiro (1819) é referência de duas outras clássicas obras: Carmilla, a Vampira de Karnstein (1871) e Drácula (1897). Carmilla apresenta a primeira vampira da literatura, uma mulher estranhamente encantadora e misteriosa que assombra as redondezas da Estíria. Diferentemente de Lord Ruthven, que buscava suas vítimas em encontros sociais e as seduzia tão rápido quanto as conhecia, Carmilla se tornava íntima de suas presas e as matava lentamente.

O mesmo se aplica ao famigerado Drácula, um homem de origens nobres dos Cárpatos que chega a Londres e instaura na cidade um massacre. Podemos assim traçar um breve “arquétipo” vampírico: pessoas acometidas pela Morte que sucumbem ao sobrenatural, sua forma mantendo a bela essência romântica da morte, as feições delicadas, o semblante inocente, mas em seu âmago reside o terrível: são criaturas sedutoras e assassinas, que degradam aqueles ao seu redor.

Os três maiores vampiros da literatura gótica também proporcionam uma epifania clara sobre a entidade, esta força da natureza que é a Morte: a imortalidade de um corpo morto pode até ser alcançada, mas sua alma torna-se algo sombrio e vil, assim como a Criatura e Dorian. Enfim, a literatura gótica ultrarromantiza a morte romântica, cultuando a Morte como uma entidade, uma força infalível e bela que não tarda nas tentativas de superá-la. Não há alma, criatura ou fenômeno sobrenatural que possa pará-la; apenas lembre-se que você é finito.

Referências




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